“A escola
militarizada é a escola que nega as diferenças”, afirma professora da UnB
“Não
tenho dúvida de que a militarização é um espaço de disseminação ou de
impedimento de que a nossa sociedade seja livre para traçar debates
importantes”. A afirmação é de Catarina de Almeida Santos, professora da
Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora da Rede Nacional de Pesquisas
sobre Militarização da Educação.
Durante
o V Encontro Nacional das Promotoras e Promotores de Justiça de Educação, que
aconteceu na Procuradoria Geral da República em Pernambuco, no Recife, a
pesquisadora participou de uma mesa de debates sobre as escolas Cívico
Militares, e alertou como este modelo de ensino fere princípios constitucionais
fixados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e pelo Plano
Nacional de Educação.
Também
presente no debate, o promotor João Paulo Faustino, do Ministério Público de
São Paulo falou sobre o processo que corre no Superior Tribunal Federal para
impedir que a Lei Complementar Estadual 1398/2024-SP, que institui o programa
de escolas Cívico Militar no estado de São Paulo, seja implementada.
“O
nosso entendimento, do grupo de atuação especial de educação, é da absoluta
inconstitucionalidade dessas leis e do próprio modelo cívico-militar. Eu diria
que, além de uma afronta histórica ao processo de redemocratização, esse tipo
de tentativa de introduzir na instituição escolar valores que são próprios das
corporações militares, afronta o que o ministro Ayres Brito, ex-ministro do
Supremo Tribunal Federal, chamava de mega-princípio da democracia. Quer dizer,
a escola constitucionalmente prevista é uma escola das liberdades, da
diversidade, da pluralidade e é um lugar onde as crianças, adolescentes,
precisam aprender o exercício da democracia pela experiência”, afirmou o
promotor.
Em
2019, o governo Bolsonaro criou o Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares
(Pecim), que permitia a transição de escolas públicas para o modelo
cívico-militar e propunha que educadores civis ficassem responsáveis pela parte
pedagógica, enquanto a gestão administrativa passava para os militares. De
acordo com dados do Ministério da Educação (MEC), até 2022, cerca de 200
escolas aderiram ao programa, o que representa aproximadamente 0,1% do total de
escolas públicas do país, que tem 178,3 mil instituições, segundo o Censo
Escolar. Porém, em julho de 2023 o governo Lula encerrou o programa.
O
Governo Estadual de Pernambuco não chegou a adotar o Pecim, mas alguns
municípios aderiram ao modelo de escola cívico-militar e três escolas
municipais implantaram o programa. São elas: Escola Municipal Natividade
Saldanha e Escola Municipal Vereador Antônio Januário, ambas em Jaboatão dos
Guararapes e Escola João Batista Cruz Barros, em Arcoverde.
A
promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio e Defesa da Educação do
Ministério Público de Pernambuco, Isabela Bandeira, afirma que o MPPE fiscaliza
o modelo de ensino cívico-militar e os municípios que optam por implementá-lo:
“se o promotor tiver conhecimento e entender que aquele modelo de escola, de
alguma forma, pode ferir as diretrizes da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da
Educação], ele pode abrir um procedimento e investigar se está havendo ou não
alguma ilegalidade”.
A
Marco Zero entrevistou Catarina de Almeida dos Santos sobre as escolas
cívico-militares no Brasil e a ilegalidade deste modelo de ensino.
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Confira os principais trechos:
• Como
surgiu a Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação e como ela
tem atuado?
Catarina
de Almeida Santos – A gente trabalha muito com a questão da garantia do direito
à educação e a militarização das escolas é um processo de impedimento da
garantia desses direitos .Então, além de pesquisar o tema, a gente trabalha
muito para impedir que o processo se expanda e desmilitarizar as nossas escolas
e olhar, inclusive, todas as violências e violações que a gente tem tido no
país decorrente desse processo de militarização.
A
militarização da educação no Brasil começa lá no final da década de 90. E ela
começa, sobretudo, ali no estado de Goiás, depois vai se expandindo. A partir
de 2019, com a criação, com o decreto que criou a Subsecretaria de Fomento às
Escolas Cívicas e Militares no Ministério da Educação e depois com a criação do
Programa Nacional das Escolas Cívicas e Militares, esse negócio ganhou uma
outra dimensão e começou a se expandir muito. E aí, a gente entendeu que o tema
precisaria também ser estudado e muito mais pessoas se interessaram pelo tema,
tanto na imprensa como na sociedade, como também nas instituições de pesquisa.
A
gente está falando de entender não só o que está acontecendo dentro das
escolas, mas de cobrir em quais lugares a gente tem escola militarizada. Quando
a gente estava falando das redes estaduais, você tem 27 redes que aderiram a
este modelo, mas quando você está falando dos municípios, você tem quase 6 mil.
Então, para a gente era muito importante que não só a gente estivesse
pesquisando, levantando dados sobre isso, mas que também houvesse pessoas
entendendo nas localidades, nos diferentes territórios, como é que isso estava
acontecendo. Por isso nós criamos a rede.
• Você
acredita que o governo Bolsonaro e o debate da “Escola Sem Partido”
contribuíram para uma expansão das escolas cívico-militares?
Na
verdade, o movimento da Escola Sem Partido vem antes do próprio Bolsonaro.
Digamos que o Bolsonaro veio construindo essa lógica do nome, dessa ideia que
está por trás desse bolsonarismo, que desencadeou, inclusive, na sua eleição.
Porque
o Escola Sem Partido, os fundamentos, as discussões que estão por dentro do
Escola Sem Partido, essa é a escola que não toma partido, não é uma escola sem
partido no sentido de ser partido político, essa é a escola que não toma
partido das violências e violações que atravessam o nosso país. Essa é a escola
que, em tese, no fundo, é uma escola de partido único, é uma escola do partido
do conservadorismo, da conservação da estrutura da nossa sociedade violenta,
com muita violência de gênero, de orientação sexual, com muita violência de
raça. Então, é uma escola que não pode debater os temas que atravessam a nossa
sociedade no sentido de superar essas violências e violações de direitos. E ela
começa muito com a lógica de impedir o trabalho da educação sexual nas escolas,
com a ideia, trazendo para o amplo discurso da ideologia de gênero, de que a
educação sexual traria mamadeira de piroca para as escolas, que menino não
seria mais menino, menina não seria mais menina. É esse imbróglio todo que eles
foram criando em torno do Escola Sem Partido, e que, inclusive, deu muita
visibilidade ao Bolsonaro e aos seus grupos.
No
fundo, a militarização é um dos braços da lógica do conservadorismo. A
militarização, o Escola Sem Partido, o homeschooling, esses debates
conservadores todos, estão tudo dentro da mesma lógica, que é de conservar
essas estruturas de sociedade. E aí, obviamente, que quando você tem a frente
da gestão do Estado brasileiro, alguém com essas defesas, e que traz essas
discussões para o campo da política nacional, esse processo da militarização e
do conservadorismo se expande.
• Nós
podemos dizer então que a escola é um espaço de embates importantes para
pensarmos em uma construção mais progressista para o país?
A
educação básica pública brasileira tem quase 40 milhões de estudantes. Isso é
quase um quarto da população brasileira. Então, se a gente soma a isso os
profissionais de educação e os familiares, a gente pode dizer que a sociedade
brasileira funciona em torno da escola. Se essa escola pública funciona, ela
coloca em xeque essa estrutura de sociedade que a gente tem. Se essa escola
pública debate questões raciais, questões de gênero, as questões de
desigualdade social, desigualdade de gênero, essa escola vai formar pessoas que
não vão se conformar com essa estrutura de sociedade. Não tenho dúvida de que a
militarização é um espaço também de disseminação ou de impedimento de que a
nossa sociedade seja livre para traçar debates importantes.
Então,
aqueles que querem conservar essa estrutura de sociedade, eles se organizam
para controlar a escola. E aí ela vai ser controlada no meio das avaliações de
larga escala, com a ênfase de que a escola está para obter resultados no IDEB
[Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] e não para formar pessoas, aí
vem militarização, aí vem homeschooling, aí vem escola sem partido, aí vem
instalação de artefatos, de identificadores faciais, câmaras de vigilância.
Então, tem todo um processo de controle da escola, de controle dessa escola, da
juventude, das crianças e jovens que estão nessa escola, do que se pode ou não
pode trabalhar nessa escola, que tem a ver com manter a estrutura da nossa
sociedade, que é misógina, que é racista, que é patriarcal, que é socialmente
desigual, que é de concentração de renda, de poder.
Quando
a gente está falando da militarização das escolas ou da escola sem partido, a
gente está falando desse movimento de controlar a escola pública no Brasil, se
eu não posso fechar a escola pública, eu começo a selecionar de diferentes
formas quem fica dentro dela, como fica, o que estuda, o que não estuda.
• Diante
disso, quais seriam então os riscos sociais da militarização das escolas
públicas?
A
escola pública, sobretudo, é uma escola sempre em disputa. O processo educativo
está sempre em disputa. E aí, sempre que eu aponto os problemas das escolas
militarizadas, eu sempre digo que não é que as outras escolas estejam
tranquilas e funcionando como elas devem ser. Mas elas estão sempre sendo
disputadas. Você tem as crianças, os jovens e os adolescentes, você tem um
grupo de professores brigando dentro dessas escolas. Você vai ter todos esses
grupos também com ideias conservadoras, não apenas educadores progressistas,
mas as ideias estão ali disputando. Quando a gente chega na escola
militarizada, ela é uma escola muito mais controlada. Ela é uma escola em que
se tenta interditar o debate e interditar a disputa.
Qual
é o nosso grande debate na escola pública? É para que essa escola seja a escola
que inclui. Essa escola que se adapta para atender os diferentes. Não é que ela
já esteja fazendo isso, a gente está brigando para que ela faça. E para ela
fazer isso, ela precisa inclusive de mais professores com formação inicial e
continuada, concursados e não cheios de contratos precarizados, e sim com
condições de trabalhar. Para fazer essa escola que atenda aos diferentes, essa
escola precisa ter condições.
A
escola militarizada faz o inverso. Ela estabelece um modelo de escola e as
outras pessoas e os estudantes precisam se adequar a ela. Aqueles que não se
adequam não podem ficar nessas escolas. Então, ela é o oposto da escola
pública. A escola militarizada é a escola que nega as diferenças, é a escola
para aqueles que se adaptam. E se adaptam a um modelo pré-estabelecido de
comportamento, de corpo, de cabelo, de vestimenta, de modelos de aprendizagem.
Então, ela deixa de ser a escola de todos os públicos. E ela vai ser a escola
de um público muito específico, que é o oposto da escola pública, que abrange
todos os públicos.
Não
por um acaso os grupos que defendem a militarização das escolas e as escolas
sem partido atacam o próprio Paulo Freire. Porque o Paulo Freire sempre
defendeu a pedagogia da autonomia, pedagogia do oprimido. Então, é tudo aquilo
que eles não querem que aconteça.
• Por
que este modelo de ensino deve ser configurado como ilegal no Brasil?
Porque
quem estabelece as diretrizes nacionais de educação é a União. A lei que a
gente tem, não tem escola militarizada. A escola militarizada é uma espécie de
modalidade educativa e criar modalidade educativa é da competência da LDB, que
é de competência da União.
Então,
a gente não tem lei nacional que tenha a previsão de escola militarizada. Por
isso, os estados e municípios não poderiam criar escolas militarizadas. Se a
gente quiser pegar uma jurisprudência, por exemplo, o STF determinou aos
estados e municípios que criaram homeschooling que essas leis são
inconstitucionais. E são inconstitucionais porque eles não têm poder, não é
competência deles criar modalidades educativas. Então, se eu quiser aplicar a
mesma jurisprudência para a militarização, vai no mesmo sentido. É uma
modalidade educativa e os estados e municípios não têm competência para fazer
isso.
Porém,
os estados e municípios estão fazendo isso, alguns com leis aprovadas nas Casas
Legislativas e os outros por portaria, por termos de cooperação. Então, vão
criando as coisas sem nenhuma base legal nisso. Inclusive, a lei de São Paulo
está suspensa, até que o STF julgue a constitucionalidade ou não do processo de
militarização. O que esperamos é que a resolução deste caso possa abrir
precedentes para outros casos no Brasil.
Fonte:
Marco Zero
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