segunda-feira, 26 de agosto de 2024

O doce pernambucano que nem os pernambucanos conhecem

Uma fruta pequena, amarela, com caroços achatados e que divide opiniões quando se trata da aproximação do sabor. A guabiraba – ou gabiroba, como é chamada em outras regiões – é pouco conhecida pelos moradores do Recife, porém muito presente na Zona da Mata Norte de Pernambuco. Em Paudalho, a 45 quilômetros do Recife, a família Assis é responsável por manter viva a receita que transforma a frutinha em um doce que se tornou a iguaria tradicional da região.

A receita está na família há, pelo menos, 100 anos, herdada de João Firmino Viana Guedes, pai de Maria do Socorro de Assis, de 81 anos, que transmitiu os conhecimentos sobre a guabiraba para filhas e netos. “Eu fui vendo, fui crescendo e fui me dedicando. Eu era muito teimosa e tenho as mãos todas queimadas do doce. Então eu sempre quis aprender e, hoje, o que eu aprendi serviu para o futuro de alguém”, relembra a matriarca.

Afastada da produção por causa da idade, ela acompanha a filha, Isabel Guedes, de 56 anos, a única que permaneceu na atividade e, atualmente, se dedica para manter viva a memória do doce. “Hoje eu sou feliz e quando chega essa época (de colheita) ‘bole’ muito comigo, eu lembro de muita coisa. O tempo que eu vivi da minha infância que foi toda dentro do doce vai passando como um filme na minha cabeça”, reforça Socorro.O período de safra da guabiraba é bem curto, vai de março ao início de maio, o mais tardar.

Isabel é costureira – profissão herdada da mãe – e nessa época do ano, se divide com o marido, Damásio Teófilo, 56 anos, para produzir a iguaria. A depender da demanda, eles recebem ajuda de filhos e sobrinhos na colheita. Já a venda dos potes de doce é feita em conjunto por toda a família, quando todos contribuem para a divulgação e distribuição. Como resultado desse esforço coletivo, foi criada a marca Linda Flor da Mata, nome escolhido em homenagem ao primeiro verso do hino da cidade.

•                                          Segredo de família

Mas quem vê o doce pronto, sendo vendidos nos potes plásticos, não imagina como o processo é trabalhoso: são aproximadamente seis horas para o produto ficar pronto. Eles começam o trabalho às 5h da manhã, percorrendo os sítios dos amigos para pegar as frutas, que só estão boas para colheita quando caem do pé. No dia da nossa visita, quatro gerações da família participaram da colheita. Mesmo no final da safra, o solo ao redor da árvore estava cheio de frutos.

Segundo os Assis, a quantidade de frutos varia ano após ano, a depender do clima. No ano passado, por exemplo, a safra foi pequena e se produziu apenas 25 potes de doce, enquanto neste ano, a produção já passou de 500 potes. A árvore costuma florir entre novembro e dezembro, com as frutas começando a cair no mês de março, mas esse ano a família teve uma surpresa. “Foi muito precoce, começou a cair no mês de fevereiro. Foi surpresa mesmo, porque a gente só espera para o final do mês de março, aí vai até maio, mas como agora começou a cair em fevereiro, provavelmente no final de abril não vai ter mais”, explica Isabel.

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A planta é nativa brasileira e pertence à família das Myrtaceae, mesma da goiaba e do araçá. Muito presente na Mata Atlântica e no Cerrado, possui ao menos 15 espécies espalhadas pelo país, de acordo com o livro “Frutas no Brasil nativas e exóticas (de consumo in natura)”, de Harri Lorenzi e Marco Túlio Côrtes de Lacerda.

A espécie presente em Paudalho é a Campomanesia xanthocarpa, também conhecida como gabiroba arbórea, que pode variar de quatro a 15 metros de altura.

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Existem algumas especificações para o preparo do produto. Uma curiosidade é que, para manter a cor padrão, parecida com a cor do mel, é necessário fazer o doce no mesmo dia em que a fruta é colhida. Quanto mais dias passam, mais escuro o doce fica. É na casa de Isabel, no Loteamento Primavera, que o preparo acontece. Lava, espreme, coa com duas peneiras, mistura com açúcar e leva ao fogo de lenha, mexendo sem parar por horas até chegar ao ponto.

Todo esse processo, só quem domina é a família Assis. Hoje, as vendas são uma forma de perpetuar o legado de seu João Firmino. “A gente não tinha ideia de fazer o doce para vender, a gente fazia para presentear, mas os amigos foram gostando, e dizendo: ‘faz pra vender que o doce de vocês é bom’. Foi aí que a gente começou a ter um novo olhar para resgatar mais a história da família”, conta Isabel.

•                                          Enchente quase destrói a tradição

A receita do doce não é uma exclusividade dos descendentes de João Firmino, afinal tanto ele quanto seus irmãos aprenderam a técnica com os pais. Com a família tomando outros rumos e as gerações passando, eles possuem primos e parentes de graus distantes que também fazem o doce, mas não o comercializam.

Seu Guedes, como era conhecido, perdeu todo o material de trabalho e pertences em uma enchente do rio Capibaribe que atingiu a cidade nos anos 70. Com isso, parou a produção e venda do produto. Foi por isso que, inicialmente, filhos e netos passaram a produzir apenas para parentes e amigos, o que acabou preservando os segredos da receita. As vendas voltaram em 2009.

A mesma enchente levou todos álbuns de fotografias da famílias.

“Da parte da minha mãe, ficamos bastante tempo parados sem fazer pra fora. A outra parte da família, não, eles continuaram. Até então, o doce tem esse conhecimento que ele tem agora graças a eles que continuaram, através da sobrinha do meu avô. Por isso que a tradição não se perdeu”, afirma Isabel.

•                                          Brasileiros só conhecem de 20 a 30% das frutas do país

Ao contrário do que muitos pensam, a guabiraba não é apenas um bairro do Recife, que recebeu esse nome por causa das árvores da fruta que existiam naquela área, como é apresentado na pesquisa do projeto Interagindo com a História do Seu Bairro, parceria da Fundação Joaquim Nabuco com o Programa Manuel Bandeira de Formação de Leitores.

Presente na mata atlântica e no cerrado, a fruta possui uma grande variedade de espécies e nomes, cada região apresenta uma característica específica. A engenheira agrônoma Rosimar Musser dos Santos, especialista em fruticultura e professora aposentada da Universidade Rural de Pernambuco, ressalta o potencial produtivo da fruta para além do doce. A casa dos Assis é uma amostra desse potencial: quando a equipe do MZ esteve lá, experimentou sorvete e geleia, mas Socorro e Isabel afirmaram que também é possível fazer licor.

A guabiraba é rica em qualidade nutricionais e propriedades medicinais, como explica Rosimar: “quando se trata de uma fruta como essa, que pertence a um grupo de frutas como a goiaba e o araçá, que são ricas em vitaminas vitamina C, vitaminas do complexo B, a vitamina B3 que é a niacina. Tudo isso é importante para o nosso organismo, para nossa resistência, para a nossa digestão e para absorção de outros nutrientes”.

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A niacina, ou ácido nicotínico, ajuda a regular o metabolismo, participa na produção de hormônios e mantém a saúde das células, além de atuar como antioxidante.

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“Você vê que a planta tem diferentes comportamentos. Tipo de planta, tamanho de planta, a própria madeira também é uma coisa muito boa para usar. Ela tem uma resistência boa. Então pode usar tanto na produção madeireira mesmo, na fabricação de móveis, mas pode usar para cabos de ferramentas. Ela é uma madeira com boa resistência, se tratando das que são árvores”, continua.

No entanto, o potencial da espécie vem sendo pouco explorado. Nem mesmo pela ciência, pois são poucos os pesquisadores que se propõem a estudar a planta e poucas são as pessoas que a conhecem, a não ser as que vivem das regiões com grande presença da espécie. De acordo com a especialista, “ela ainda tem um caráter extrativista, vai lá no mato, pega os frutos e faz alguma coisa. Ela ainda não chegou na fase de fazer mudas e enxertar e depois plantar, porque exatamente não tem esses estudos ainda, para fazer um enxerto em qualquer coisa, você precisa saber o que vai enxertar”.

No país existe uma grande variedade de frutas desconhecidas ou conhecidas apenas pela população de uma região específica. “Na fruticultura, a gente costuma dizer que, de 0 a 100, não passa de 30% tudo que a gente conhece de fruta. A grande maioria são ilustres desconhecidas. Tem algumas que já são cultivadas, vendidas e processadas lá pela Amazônia, mas a gente não tem a menor ideia, ficam restritas em uma região”, relata.

“Tem várias outras que ninguém sabe para que lado vai, mas as pessoas cultivam e já ganham dinheiro com isso, e a gente não tem a menor ideia. Não são poucas não. Então, no universo do que nós brasileiros conhecemos de frutas e consumimos muitas delas, fica entre 20 e 30%, eu estou colocando esse número na melhor da hipóteses”, conclui.

 

Fonte: Marco Zero

 

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