O doce
pernambucano que nem os pernambucanos conhecem
Uma
fruta pequena, amarela, com caroços achatados e que divide opiniões quando se
trata da aproximação do sabor. A guabiraba – ou gabiroba, como é chamada em
outras regiões – é pouco conhecida pelos moradores do Recife, porém muito
presente na Zona da Mata Norte de Pernambuco. Em Paudalho, a 45 quilômetros do
Recife, a família Assis é responsável por manter viva a receita que transforma
a frutinha em um doce que se tornou a iguaria tradicional da região.
A
receita está na família há, pelo menos, 100 anos, herdada de João Firmino Viana
Guedes, pai de Maria do Socorro de Assis, de 81 anos, que transmitiu os
conhecimentos sobre a guabiraba para filhas e netos. “Eu fui vendo, fui
crescendo e fui me dedicando. Eu era muito teimosa e tenho as mãos todas
queimadas do doce. Então eu sempre quis aprender e, hoje, o que eu aprendi
serviu para o futuro de alguém”, relembra a matriarca.
Afastada
da produção por causa da idade, ela acompanha a filha, Isabel Guedes, de 56
anos, a única que permaneceu na atividade e, atualmente, se dedica para manter
viva a memória do doce. “Hoje eu sou feliz e quando chega essa época (de
colheita) ‘bole’ muito comigo, eu lembro de muita coisa. O tempo que eu vivi da
minha infância que foi toda dentro do doce vai passando como um filme na minha
cabeça”, reforça Socorro.O período de safra da guabiraba é bem curto, vai de
março ao início de maio, o mais tardar.
Isabel
é costureira – profissão herdada da mãe – e nessa época do ano, se divide com o
marido, Damásio Teófilo, 56 anos, para produzir a iguaria. A depender da
demanda, eles recebem ajuda de filhos e sobrinhos na colheita. Já a venda dos
potes de doce é feita em conjunto por toda a família, quando todos contribuem
para a divulgação e distribuição. Como resultado desse esforço coletivo, foi
criada a marca Linda Flor da Mata, nome escolhido em homenagem ao primeiro
verso do hino da cidade.
• Segredo
de família
Mas
quem vê o doce pronto, sendo vendidos nos potes plásticos, não imagina como o
processo é trabalhoso: são aproximadamente seis horas para o produto ficar
pronto. Eles começam o trabalho às 5h da manhã, percorrendo os sítios dos
amigos para pegar as frutas, que só estão boas para colheita quando caem do pé.
No dia da nossa visita, quatro gerações da família participaram da colheita.
Mesmo no final da safra, o solo ao redor da árvore estava cheio de frutos.
Segundo
os Assis, a quantidade de frutos varia ano após ano, a depender do clima. No
ano passado, por exemplo, a safra foi pequena e se produziu apenas 25 potes de
doce, enquanto neste ano, a produção já passou de 500 potes. A árvore costuma
florir entre novembro e dezembro, com as frutas começando a cair no mês de
março, mas esse ano a família teve uma surpresa. “Foi muito precoce, começou a
cair no mês de fevereiro. Foi surpresa mesmo, porque a gente só espera para o
final do mês de março, aí vai até maio, mas como agora começou a cair em
fevereiro, provavelmente no final de abril não vai ter mais”, explica Isabel.
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A
planta é nativa brasileira e pertence à família das Myrtaceae, mesma da goiaba
e do araçá. Muito presente na Mata Atlântica e no Cerrado, possui ao menos 15
espécies espalhadas pelo país, de acordo com o livro “Frutas no Brasil nativas
e exóticas (de consumo in natura)”, de Harri Lorenzi e Marco Túlio Côrtes de
Lacerda.
A
espécie presente em Paudalho é a Campomanesia xanthocarpa, também conhecida
como gabiroba arbórea, que pode variar de quatro a 15 metros de altura.
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Existem
algumas especificações para o preparo do produto. Uma curiosidade é que, para
manter a cor padrão, parecida com a cor do mel, é necessário fazer o doce no
mesmo dia em que a fruta é colhida. Quanto mais dias passam, mais escuro o doce
fica. É na casa de Isabel, no Loteamento Primavera, que o preparo acontece.
Lava, espreme, coa com duas peneiras, mistura com açúcar e leva ao fogo de
lenha, mexendo sem parar por horas até chegar ao ponto.
Todo
esse processo, só quem domina é a família Assis. Hoje, as vendas são uma forma
de perpetuar o legado de seu João Firmino. “A gente não tinha ideia de fazer o
doce para vender, a gente fazia para presentear, mas os amigos foram gostando,
e dizendo: ‘faz pra vender que o doce de vocês é bom’. Foi aí que a gente
começou a ter um novo olhar para resgatar mais a história da família”, conta
Isabel.
• Enchente
quase destrói a tradição
A
receita do doce não é uma exclusividade dos descendentes de João Firmino,
afinal tanto ele quanto seus irmãos aprenderam a técnica com os pais. Com a
família tomando outros rumos e as gerações passando, eles possuem primos e
parentes de graus distantes que também fazem o doce, mas não o comercializam.
Seu
Guedes, como era conhecido, perdeu todo o material de trabalho e pertences em
uma enchente do rio Capibaribe que atingiu a cidade nos anos 70. Com isso,
parou a produção e venda do produto. Foi por isso que, inicialmente, filhos e
netos passaram a produzir apenas para parentes e amigos, o que acabou
preservando os segredos da receita. As vendas voltaram em 2009.
A
mesma enchente levou todos álbuns de fotografias da famílias.
“Da
parte da minha mãe, ficamos bastante tempo parados sem fazer pra fora. A outra
parte da família, não, eles continuaram. Até então, o doce tem esse
conhecimento que ele tem agora graças a eles que continuaram, através da
sobrinha do meu avô. Por isso que a tradição não se perdeu”, afirma Isabel.
• Brasileiros
só conhecem de 20 a 30% das frutas do país
Ao
contrário do que muitos pensam, a guabiraba não é apenas um bairro do Recife,
que recebeu esse nome por causa das árvores da fruta que existiam naquela área,
como é apresentado na pesquisa do projeto Interagindo com a História do Seu
Bairro, parceria da Fundação Joaquim Nabuco com o Programa Manuel Bandeira de
Formação de Leitores.
Presente
na mata atlântica e no cerrado, a fruta possui uma grande variedade de espécies
e nomes, cada região apresenta uma característica específica. A engenheira
agrônoma Rosimar Musser dos Santos, especialista em fruticultura e professora
aposentada da Universidade Rural de Pernambuco, ressalta o potencial produtivo
da fruta para além do doce. A casa dos Assis é uma amostra desse potencial:
quando a equipe do MZ esteve lá, experimentou sorvete e geleia, mas Socorro e
Isabel afirmaram que também é possível fazer licor.
A
guabiraba é rica em qualidade nutricionais e propriedades medicinais, como
explica Rosimar: “quando se trata de uma fruta como essa, que pertence a um
grupo de frutas como a goiaba e o araçá, que são ricas em vitaminas vitamina C,
vitaminas do complexo B, a vitamina B3 que é a niacina. Tudo isso é importante
para o nosso organismo, para nossa resistência, para a nossa digestão e para
absorção de outros nutrientes”.
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A
niacina, ou ácido nicotínico, ajuda a regular o metabolismo, participa na
produção de hormônios e mantém a saúde das células, além de atuar como
antioxidante.
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“Você
vê que a planta tem diferentes comportamentos. Tipo de planta, tamanho de
planta, a própria madeira também é uma coisa muito boa para usar. Ela tem uma
resistência boa. Então pode usar tanto na produção madeireira mesmo, na
fabricação de móveis, mas pode usar para cabos de ferramentas. Ela é uma
madeira com boa resistência, se tratando das que são árvores”, continua.
No
entanto, o potencial da espécie vem sendo pouco explorado. Nem mesmo pela
ciência, pois são poucos os pesquisadores que se propõem a estudar a planta e
poucas são as pessoas que a conhecem, a não ser as que vivem das regiões com
grande presença da espécie. De acordo com a especialista, “ela ainda tem um
caráter extrativista, vai lá no mato, pega os frutos e faz alguma coisa. Ela
ainda não chegou na fase de fazer mudas e enxertar e depois plantar, porque
exatamente não tem esses estudos ainda, para fazer um enxerto em qualquer
coisa, você precisa saber o que vai enxertar”.
No
país existe uma grande variedade de frutas desconhecidas ou conhecidas apenas
pela população de uma região específica. “Na fruticultura, a gente costuma
dizer que, de 0 a 100, não passa de 30% tudo que a gente conhece de fruta. A
grande maioria são ilustres desconhecidas. Tem algumas que já são cultivadas,
vendidas e processadas lá pela Amazônia, mas a gente não tem a menor ideia,
ficam restritas em uma região”, relata.
“Tem
várias outras que ninguém sabe para que lado vai, mas as pessoas cultivam e já
ganham dinheiro com isso, e a gente não tem a menor ideia. Não são poucas não.
Então, no universo do que nós brasileiros conhecemos de frutas e consumimos
muitas delas, fica entre 20 e 30%, eu estou colocando esse número na melhor da
hipóteses”, conclui.
Fonte:
Marco Zero
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