O atrelamento de
governos conservadores com um racismo ideológico no Brasil não é mera retórica.
As presidências de Michel Temer e Jair Bolsonaro efetivamente rebaixaram ou
mesmo eliminaram políticas públicas de redução das desigualdades raciais no
país. E a saúde é um campo privilegiado para observar o reforço do racismo
institucional neste período.
Não à toa, o governo
Lula promoveu uma reorganização institucional para tentar recuperar o terreno
perdido. A antiga Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial foi
transformada em ministério, desempenha um papel de articulador de diversas políticas
de equidade ao lado de outros ministérios e representantes do movimento negro
foram alçados a importantes posições no governo.
Diante do novo quadro,
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) produziu um número inteiro de
sua revista voltado à Saúde da População Negra. “Com essa ação, a equipe
editorial do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Abrasco considerou contribuir
para o arcabouço de publicações científicas que tratam das iniquidades
étnico-raciais na saúde, dos impactos do racismo na saúde da população negra e
da necessidade de enfrentamento de uma epistemologia branca ou supostamente
neutra”, explicou Ionara Magalhães de Souza, do Grupo de Trabalho Racismo e
Saúde da Abrasco.
Fisioterapeuta, mestre
em saúde coletiva e especialista em desigualdades étnico-raciais, Ionara é
autora, ao lado de Edna Maria de Araújo e Aloísio Machado da Silva, do artigo
Tendência temporal da incompletude do registro da raça/cor nos sistemas de informação
em saúde do Brasil, 2009-2018, que acompanha a evolução do processo de inclusão
de dados de raça e cor nos prontuários dos usuários do SUS, estabelecida a
partir da criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra
(PNSIPN), em 2009.
Na entrevista ao Outra
Saúde, Ionara explica a importância deste registro nas fichas de saúde dos
brasileiros. “A discriminação de informações segundo raça/cor nos dados de
saúde da população oportuniza traçar o perfil epidemiológico étnico-racial da
população brasileira, construir indicadores, identificar necessidades
específicas de cada grupo étnico-racial, acompanhar a evolução de desfechos de
interesse, dimensionar e monitorar os impactos do racismo e avaliar a qualidade
da atenção à saúde das diversas populações”, destacou.
A pesquisadora
ressalta que a PNSIPN foi ativamente desmantelada nos governos anteriores. Além
dos evidentes efeitos na vida dos mais pobres que a política de Estado mínimo
reconhecidamente gerou, houve uma ativa predisposição em descartar a produção
de conhecimento a respeito das desigualdades raciais.
“Tivemos, nesse hiato,
governos conservadores, com agendas de desmonte das conquistas democráticas,
não implicados com os direitos humanos e indiferentes à saúde da população
negra, vide o desmantelamento da Secretaria Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial e a extinção do Comitê Técnico de Saúde da População Negra.
Tivemos profundos retrocessos nas políticas de igualdade racial no país”.
O hiato ao qual se
refere é justamente em relação à produção informações sobre saúde da população
negra. Isso porque em outubro passado o Ministério da Saúde publicou a segunda
edição do Boletim Epidemiológico da Saúde Negra, cuja edição inaugural data de
2015. Não casualmente, a implantação da PNSIPN estagnou, especialmente nas
regiões e estados mais pobres, justamente onde se encontram maiores proporções
de população preta, parda e indígena.
“Paradoxalmente, essas
regiões concentram dificuldades e iniciativas menos frequentes para o
gerenciamento da qualidade da informação e, historicamente, apresentam pior
qualidade de dados. Com efeito, a geração de dados deficitários, inconsistentes
e não confiáveis inviabiliza a formulação de indicadores de saúde, a produção
de estudos epidemiológicos e compromete a formulação de políticas públicas e a
qualidade da atenção à saúde para populações historicamente vulnerabilizadas”,
resumiu.
Desta forma, o elogio
ao atual governo não é uma mera questão de ufanismo ou alinhamento ideológico.
O governo Lula, ainda que sob limites de financiamento de políticas públicas
que combatam as iniquidades sociais históricas, efetivamente promove uma agenda
que deve produzir melhorias na vida e na saúde das maiorias sociais não
brancas.
“Depois de 15 anos de
instituída, acredito que a Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra encontra-se em novo ciclo, fase de implementação e avaliação. No novo
governo Lula, estamos acompanhando ações jamais vistas. A saúde da população
negra tem sido pautada no Plano de Governo , temos uma Assessoria para Equidade
Racial em Saúde no Ministério da Saúde, temos observado um esforço no que diz
respeito ao desenvolvimento de ações interministeriais, envolvendo o Ministério
da Saúde, Ministério da Igualdade Racial e Ministério dos Direitos Humanos e
Cidadania e provocando outros ministérios, a fim de transversalizar a pauta
saúde da população negra”, sintetizou.
>>> Confira a
entrevista:
• Em linhas gerais, o que a revista
Ciência e Saúde coletiva, em edição voltada à saúde da população negra, traz de
novo aos debates e formulações críticas para as políticas de saúde pública?
O Dossiê Temático
Saúde da População Negra propõe ampliar a visibilidade acerca das iniquidades
étnico-raciais em saúde e fomentar redes de colaboração em nível nacional e
internacional e, assim, fortalecer a Política Nacional de Saúde Integral da
População Negra (PNSIPN) e o Sistema Único de Saúde. Com essa ação, a equipe
editorial do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Abrasco considerou contribuir
para o arcabouço de publicações científicas que tratam das iniquidades
étnico-raciais na saúde, dos impactos do racismo na saúde da população negra e
da necessidade de enfrentamento de uma epistemologia branca ou supostamente
neutra.
Essa edição provoca o
racismo institucional que dificulta ou impede a difusão do conhecimento
científico e tecnológico nessa temática. Muitos aspectos levantados no dossiê
são abordados em dois boletins epidemiológicos lançados pelo ministério da
Saúde. Das formulações críticas, destaca-se o posicionamento político mediante
publicação dessas produções que ensejam a equidade em saúde.
• Quais as motivações a respeito do seu
artigo “Tendência temporal da incompletude do registro da raça/cor nos sistemas
de informação em saúde do Brasil, 2009-2018?” Por que você faz o referido
recorte de tempo e quais as descobertas essenciais reveladas no artigo?
Sou integrante do
Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdades na Saúde da Universidade
Estadual de Feira (UEFS), onde desenvolvemos ações e produções científicas
nessa perspectiva. Ademais, fui orientanda de Edna Maria de Araújo, reconhecida
como um dos nomes que encamparam a luta pela saúde da população negra no país.
Esse artigo compôs um dos trabalhos do doutoramento. A nossa expectativa
consistia em contribuir, em alguma medida, para a implementação da Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). O período considerou o
ano de implementação da PNSIPN que preconiza a inclusão do quesito cor nos
instrumentos de coleta de dados adotados pelos serviços públicos, conveniados
ou contratados com o SUS, a utilização do quesito cor para a produção de
informações epidemiológicas, a fim de apoiar a gestão e aprimorar a qualidade
dos sistemas de informação em saúde.
As questões essenciais
do artigo consistem na possibilidade de dimensionamento das desigualdades
étnico-raciais a partir do preenchimento do campo raça/cor, proporção de
preenchimento ruim e grau de incompletude mais acentuado para algumas doenças e
agravos e regiões. De modo geral, há uma tendência decrescente da proporção da
incompletude do registro da raça/cor na maioria das doenças e agravos. No
artigo, enfatizamos que o preenchimento do campo raça/cor não se trata de uma
questão meramente técnica, mas política; buscamos problematizar o processo de
coleta e registro de dados, evocar responsabilidades e, principalmente,
destacar as consequências da incompletude e implicações do preenchimento do
campo raça/cor para equidade em saúde.
Ademais, evidencia-se
dificuldade na incorporação desses dados para o processo de gestão em saúde.
• E qual a linha evolutiva deste
preenchimento de dados de raça/cor?
Em linhas gerais, no
período analisado, podemos afirmar que há uma tendência descrente da
incompletude do quesito raça/cor nos sistemas de informação analisados, ou
seja, denota-se melhoria no preenchimento do campo a partir da análise de
tendência temporal.
• Afinal, qual a importância da
discriminação de informações de raça/cor nos dados de saúde da população? Como
eles podem incidir na elaboração de políticas públicas?
Atrelado à
obrigatoriedade e relevância do preenchimento, cumpre destacar a importância da
desagregação dos dados por raça/cor nas análises epidemiológicas. Isso porque,
pretos e pardos, embora constituam a população negra e apresentem similaridade
em contextos socioeconômicos, experimentam diferenciais em algumas causas de
morte, por exemplo.
A discriminação de
informações segundo raça/cor nos dados de saúde da população oportuniza traçar
o perfil epidemiológico étnico-racial da população brasileira, construir
indicadores, identificar necessidades específicas de cada grupo étnico-racial,
acompanhar a evolução de desfechos de interesse, dimensionar e monitorar os
impactos do racismo e avaliar a qualidade da atenção à saúde das diversas
populações.
Tais dados podem
dimensionar as condições de saúde de grupos populacionais específicos e, assim,
fundamentar políticas públicas na medida em que subsidiam as atividades de
gestão, planejamento, programação, monitoramento e avaliação das políticas de
saúde, atividades assistenciais; direcionam a alocação de recursos e o
financiamento da saúde e, assim, contribuem para a efetivação dos princípios e
diretrizes do Sistema Único de Saúde. Esses dados podem evidenciar a
institucionalização do racismo nas práticas e serviços de saúde, revelar
disparidades no acesso e na qualidade da assistência em saúde.
• Seu estudo também revela disparidades
regionais, com maior déficit de informações em regiões onde a proporção de
negros, pardos, mestiços e indígenas é até maior. Por que isso ocorre?
Paradoxalmente, essas
regiões concentram dificuldades e iniciativas menos frequentes para o
gerenciamento da qualidade da informação e, historicamente, apresentam pior
qualidade de dados. Com efeito, a geração de dados deficitários, inconsistentes
e não confiáveis inviabiliza a formulação de indicadores de saúde, a produção
de estudos epidemiológicos e compromete a formulação de políticas públicas e a
qualidade da atenção à saúde para populações historicamente vulnerabilizadas.
• No ano passado, o governo publicou a
segunda edição do Boletim Epidemiológico Saúde da População Negra, cuja
primeira edição é de 2015. Como e por que, em seu entendimento, se dá esse
hiato?
Tivemos, nesse hiato,
governos conservadores, com agendas de desmonte das conquistas democráticas,
não implicados com os direitos humanos e indiferentes à saúde da população
negra, vide o desmantelamento da Secretaria Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial e a extinção do Comitê Técnico de Saúde da População Negra.
Tivemos profundos retrocessos nas políticas de igualdade racial no país.
Inquestionavelmente, os maiores avanços no campo Saúde da População Negra
ocorreram nos Governos Lula e Dilma.
• Como avalia a Política Nacional de Saúde
Integral da População Negra neste novo governo Lula? Que ações o governo e o
ministério da Saúde poderiam priorizar?
Depois de 15 anos de
instituída, acredito que a Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra encontra-se em novo ciclo, fase de implementação e avaliação. No novo
governo Lula, estamos acompanhando ações jamais vistas. A saúde da população
negra tem sido pautada no Plano de Governo , temos uma Assessoria para Equidade
Racial em Saúde no Ministério da Saúde, temos observado um esforço no que diz
respeito ao desenvolvimento de ações interministeriais, envolvendo o Ministério
da Saúde, Ministério da Igualdade Racial e Ministério dos Direitos Humanos e
Cidadania e provocando outros ministérios, a fim de transversalizar a pauta
saúde da população negra.
Nessa direção, em
dezembro de 2023 foi criada a Portaria nº 2.198 que institui a Estratégia
Antirracista para a Saúde, cujo Plano de Ação inclui o desenvolvimento de ações
afirmativas, formação antirracista no âmbito SUS; produção e monitoramento de
indicadores raciais nas ações de saúde, e o direcionamento de recursos com
vistas à promoção da equidade em saúde. Pode-se destacar também a retirada do
campo 99 (ignorado) dos sistemas de informação em saúde.
Mais recentemente, por
meio do Decreto Nº 11.996, o Governo institui o Comitê Técnico Interministerial
de Saúde da População Negra, ou seja, grupo interministerial para elaborar
plano de ação, com vistas a fortalecer a Política Nacional de Saúde Integral da
População Negra, além de monitorar e avaliar políticas, ações e estratégias. Em
suma, penso que temos um movimento impulsionador de fortalecimento da Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra com ampliação das políticas de
proteção social e enfrentamento das desigualdades raciais em curso.
Fonte: Por Ionara Magalhães de Souza em entrevista a Gabriel Brito, para Outra Saúde
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