Valter
Pomar: Miriam Leitão e suas críticas acerca da opinião do PT sobre a China
A
China tem vários problemas, mas neste momento o fuso horário é o mais
angustiante.
Pior
ainda é acordar as 3h da madrugada, cair na besteira de olhar mensagens e
deparar com um artigo da Miriam Leitão. No caso, um artigo acusando o PT de
ajudar a extrema-direita golpista.
Antes
de tratar do grão, confesso que admiro a cara de pau da direita gourmet
brasileira, especialmente de seus funcionários que trabalham em certos meios de
comunicação.
Os
caras trataram o PT a pau e pedra. Contribuíram para o ascenso da
extrema-direita. Mas não perdem a pose e continuam se achando no direito de nos
dar lições.
Isto
posto, proponho olhar a situação de conjunto. Gostemos ou não gostemos, o mundo
está mudando.
Os
Estados Unidos estão declinando. Outras nações estão ascendendo. A questão de
fundo é: o Brasil quer ser uma dessas nações? Ou quer dar um abraço de afogado
nos Estados Unidos?
O
empresariado brasileiro já fez sua escolha. A China é o principal parceiro
comercial do Brasil. Mas a escolha do empresariado aprofunda o modelo
primário-exportador.
Se
queremos outro modelo, é preciso colocar a política no comando. E isso implica
em ter relações partido-partido, não apenas governo-governo.
Na
China, o núcleo do poder é o Partido Comunista. Que, pasmem senhores defensores
da democracia-ao-estilo-ocidental, valoriza a relação com os partidos políticos
de todo o mundo, inclusive os partidos de direita.
É
outra das ironias dos tempos modernos: enquanto nas democracias ocidentais os
partidos políticos vivem um péssimo momento, os comunistas chineses seguem
valorizando essa instituição criada na grande revolução burguesa de 1789.
Esta
é a situação de conjunto: precisamos ter relações com a China, precisamos mudar
o conteúdo dessa relação, precisamos ter relações com o Partido Comunista da
China.
Até
aí, como diria o grande Hobsbawn, acho que até os cientistas políticos seriam
capazes de entender.
A
questão seguinte é: vamos lá para dar lições aos comunistas chineses? Explicar
que não é assim que se faz? Explicar que eles estão fazendo tudo errado desde
1949? Que o modelo que funciona é o nosso? Que o sucesso do Brasil, o esplendor
dos Estados Unidos e a maravilhosa Europa constituem o farol da humanidade?
Na
boa, essa atitude professoral e arrogante é simplesmente ridícula.
Eu
já estive muitas vezes na China e sei o impacto que causa. Sei que às vezes o
impacto é tão grande, que resulta em exageros verbais, bem como no apagamento
de problemas e contradições que os próprios chineses reconhecem.
Por
exemplo: só agora os chineses conseguiram eliminar a pobreza absoluta. Ou seja:
eles mesmo admitem que durante mais de 60 anos, o socialismo realmente
existente na China convivia com a pobreza absoluta.
Ademais,
a opção que os comunistas chineses fizeram – de usar o mercado capitalista, da
forma e na escala que eles utilizam – produz pelo menos três efeitos
colaterais: a desigualdade social, a corrupção e o individualismo.
A
combinação dos três tende a enfraquecer e desmoralizar a autoridade do Partido.
Sem Partido, o Estado e o plano perdem força e o mercado pode deixar de ser
variável subordinada, produzindo desigualdades e podendo, no limite, fazer o
socialismo se converter em capitalismo.
Agora,
qual seria a alternativa? O socialismo-da-pobreza? O socialismo-de-caserna?
Outras alternativas, que vislumbramos, que desejamos, mas que ainda não
conseguimos materializar?
Podemos
ter qualquer opinião a respeito, mas o que não podemos é desconhecer o fato de
que a China se tornou, ainda bem, uma variável predominantemente positiva na
atual situação mundial.
Isto
posto, vamos ao grão: do ponto de vista da Miriam Leitão e, também, do ponto de
vista dos Estados Unidos, a China seria uma ditadura. Isso procede?
Depende.
No sentido brasileiro do termo, certamente a China não é uma ditadura. Basta
comparar a ditadura militar e a ditadura Vargas, com a China, para perceber as
imensas diferenças.
Então
a China seria uma democracia? No sentido brasileiro do termo, também não.
Aliás,
os Estados Unidos são uma democracia? Quem realmente manda nos Estados Unidos:
“nós, o povo”? Ou uma plutocracia que literalmente compra os processos
eleitorais?
Acusar
a China de ser uma ditadura não é uma análise, mas também não é apenas um
xingamento.
Prestem
atenção na forma de raciocinar da Miriam Leitão: segundo ela, dizer que o
encontro entre PT e PCCh foi “inspirador” faria o jogo da extrema direita.
Supondo
que isso fosse verdade, faço a seguinte pergunta: dizer que a China seria uma
“ditadura” faz o jogo de quem? A resposta é: interessa aos Estados Unidos e a
seus aliados, que dividem o mundo entre eles e os “autoritários”.
Segundo
Miriam, não faria sentido “sugerir” que há uma
“irmandade
com um partido que governa a China com mão de ferro há 75 anos, que destrói
qualquer oposição que apareça, que controla tudo, a imprensa, as redes sociais,
as empresas, as artes. Um governo que, na última vez em que houve uma
insurgência popular, em 1989, reagiu com um massacre em praça pública, e
reprime ou reverte qualquer tentativa de abertura. Como acontece agora em que
Xi Jinping colocou mais um ferrolho na porta em favor da sua permanência no
poder”.
De
fato, o Partido Comunista da China tem um imenso controle, o que não quer dizer
que controle “tudo”.
Aliás,
não tem nenhuma teoria mais desmoralizada do que a do “totalitarismo”: em toda
parte, inclusive na China, há contradições, há disputas, há conflitos, há luta
de classe, como se viu em 1989, aliás.
Paraíso
não existe, pelo menos não na Terra. Mas, no caso chinês, vale a famosa frase
do Galileu: eppur si muove.
A
China, com todas as suas contradições, avança. E é esse avanço, não as
contradições e problemas inevitáveis, que perturba os gringos.
Miram
Leitão diz que a China não
“pode
ser classificada como país socialista. A economia é dominada pelo capitalismo
de Estado e uma elite cada vez mais bilionária de empresários que aceitam a
simbiose de suas empresas com o regime. Visitar os colossos chineses de
diversas áreas, como a Huawei, é interessante para qualquer pessoa. Estranho é
achar que isso é socialismo”.
A
frase de Miriam Leitão sintetiza o ponto de vista de muita gente, inclusive de
muita gente de esquerda, para quem socialismo e capitalismo seriam
incompatíveis. Se tem um, não tem o outro.
Quem
pensa isso, mas ainda é de esquerda, deveria renunciar definitivamente ao
socialismo. Pois as coisas não mudam do dia para a noite. Uma sociedade
capitalista não vai virar uma sociedade não-capitalista por ato de mágica,
instantaneamente.
Faz-se
necessário um processo, uma transição. Nessa transição, durante algum tempo
continuará a existir capitalismo. Essa concepção, vale dizer, não foi inventada
pelos comunistas chineses. Suas premissas estão nos textos de Marx e Engels,
por exemplo num textinho genial chamado “Crítica ao programa de Gotha”.
Agora,
quem quiser perceber a diferença prática entre o capitalismo e o
socialismo-com-presença-de-capitalismo, basta comparar a evolução da China e da
Índia, desde a década de 1940 até hoje.
Nos
dois países há bilionários, nos países esses bilionários se associam com o
Estado, mas na China o comando está no Estado e o efeito disto se vê na
elevação continuada da vida material e espiritual da população. Aliás, quando é
mesmo que a Índia vai acabar com a pobreza absoluta de sua população?
Claro,
a China não corresponde ao socialismo-de-manual onde alguns talvez tenham
estudado quando foram militantes do Partido Comunista, como Miriam Leitão aliás
foi, algo pelo qual ela merece todo o nosso respeito.
Mas
isto faz tempo. Hoje, para Miriam, “o comunismo, como se sabe, não existe”.
Eu
diria algo parecido, mas diferente: “o comunismo, como sociedade, ainda não
existe. Mas existe como movimento e existe como necessidade.”
Existem,
no mundo inteiro, muitas pessoas que defendem o comunismo. E existe a
necessidade: as imensas capacidades (produtivas e destrutivas) criadas na
sociedade moderna precisam ser colocadas sob controle comum, ou vão nos
destruir.
Entretanto,
concordo com Miriam Leitão que a extrema-direita (e, também, uma parte da
direita gourmet) usa o comunismo como espantalho.
No
que divirjo dela é como combater isso. Explico: o PT não fez um governo
radical, mas mesmo assim a direita gourmet (Miriam inclusive) e a
extrema-direita nos acusaram disso.
Ou
seja: para esta gente, inclusive para Miriam, não é a realidade que conta. Por
isso, não adiantaria nada a Gleisi Hoffmann queimar uma efígie de Marx;
correríamos aliás o risco dela ser acusada de “melancia” (verde por fora e
vermelha por dentro).
Assim,
o que devemos fazer é falar a verdade. E a verdade é que interessa ao Brasil
aprofundar a cooperação com os chineses, interessa ao Brasil que esta
cooperação ajude na nossa reindustrialização, para isso precisamos manter
ótimas relações com o Partido Comunista da China.
Além
de dizer que a China seria uma ditadura, que a China não seria socialista, que
o comunismo não existiria, Miriam Leitão também reclama das críticas feitas
pelo PT contra os Estados Unidos.
Segundo
ela, fazer críticas aos EUA é natural, mas “fazer críticas em tom mais alto do
que os chineses é ser mais realista do que o rei”.
Fico
na dúvida, ao ler isso, sobre o continente em que vive Miriam Leitão.
Cá
entre nós: se amanhã a China vencer os EUA, os EUA vão continuar existindo. E
vão usar toda a força que tiverem para manter um controle ainda maior sobre o
continente americano.
Por
isso, tanto hoje quanto amanhã, os EUA constituem um problema maior para nós do
Brasil do que para a China. O que torna ainda mais necessário, para o Brasil,
buscar uma aliança com a China.
O
que não nos impedirá de usar, a nosso favor, as contradições que existem dentro
da elite dos EUA, por exemplo entre Biden e Trump.
Miriam
Leitão acha que isso é “antiamericanismo estudantil” e “alinhamento com uma
potência ditadorial”, quando não passa da boa e velha geopolítica.
Acontece
que Miriam Leitão tem lado nessa geopolítica. Por isso, onde nós preferimos
destacar a pressão dos EUA e da OTAN sobre a Rússia, ela prefere destacar a
“culpa” do “autocrata do Kremlin”.
Por
isso ela lembra do Biden presidente que reconheceu nossa vitória em 2022,
enquanto nós também fazemos questão de lembrar do Biden vice-presidente que
ajudou o golpe de 2016 contra a democracia brasileira.
Por
fim: não sei onde foi que Miriam Leitão leu que “os Estados Unidos têm o
monopólio da geração de crises no planeta”.
Seguramente
não foi num texto aprovado pelo PT. O que certamente ela pode ter lido, em
algum texto do PT, é que o capitalismo em geral e os Estados Unidos em
particular estão no centro da crise sistêmica vivida pelo mundo, neste santo
ano de 2024.
Para
chegar a essa constatação não se faz necessário ter um “pensamento
internacional mais sofisticado”, tão ao gosto dos tucanos. Basta o “rudimentar”
método de adotar a prática como critério da verdade.
Termino
por aqui, pedindo desculpas pela falta de revisão, pois em Xiamen já são 6h12
da manhã e o chá está quente.
>>>>
Segue a íntegra do texto comentado de Miriam Leitão
• PT ajuda a versão do adversário
ao defender que tem a mesma proposta do PC Chinês
“A
China é uma ditadura. O PT sempre governou o Brasil democraticamente. Tudo o
que a extrema direita golpista quer é vincular o PT ao autoritarismo, apesar de
ter sido essa mesma direita que tentou golpear as instituições democráticas.
Nos últimos dias, na esteira do histrionismo de Elon Musk, parlamentares
brasileiros ligados a Jair Bolsonaro têm gritado no exterior a sandice de que o
Brasil é uma ditadura. Por que mesmo, num contexto assim, a presidente do PT,
Gleisi Hoffmann, vai a Pequim declarar que seu partido e o PC Chinês têm
afinidades, e afirmar que foi “inspirador” o encontro dos dois partidos?
Visitar
a China, ter bom relacionamento com as autoridades chinesas, ter relações com o
partido governante daquela potência, fazer acordos, isso é natural. O que não
faz sentido é sugerir que há uma irmandade com um partido que governa a China
com mão de ferro há 75 anos, que destrói qualquer oposição que apareça, que
controla tudo, a imprensa, as redes sociais, as empresas, as artes. Um governo
que, na última vez em que houve uma insurgência popular, em 1989, reagiu com um
massacre em praça pública, e reprime ou reverte qualquer tentativa de abertura.
Como acontece agora em que Xi JinPing colocou mais um ferrolho na porta em
favor da sua permanência no poder.
A
deputada Gleisi Hoffmann disse, segundo relato do jornalista Marcelo Ninio: “É
o predomínio do capitalismo que gera um cenário internacional de instabilidade,
crises, guerras e revoltas. Nossos partidos, o PT e o PC Chinês defendem que o
socialismo é essa alternativa. Um de nossos maiores desafios é exatamente de
tornar o socialismo mais influente e mais poderoso em nossos países e também em
escala mundial”.
A
propósito, a China não pode ser classificada como país socialista. A economia é
dominada pelo capitalismo de Estado e uma elite cada vez mais bilionária de
empresários que aceitam a simbiose de suas empresas com o regime. Visitar os
colossos chineses de diversas áreas, como a Huawei, é interessante para
qualquer pessoa. Estranho é achar que isso é socialismo.
O
comunismo, como se sabe, não existe. Apesar disso, tem sido o espantalho eterno
de quem tem intenções ditatoriais no Brasil. Foi essa ameaça que brandiram os
golpistas de 1964, e repetem agora Bolsonaro e seus seguidores. O delírio do
risco comunista é apresentado por pastores de má-fé nas suas igrejas. Falas
como a da presidente do PT serão usadas como prova de que disseram a verdade.
Os
Estados Unidos têm um enorme telhado de vidro e criticá-los também é natural.
Fazer críticas em tom mais alto do que os chineses é ser mais realista do que o
rei. Concluir que os Estados Unidos são o epicentro de todas as crises
internacionais é simplificar o complexo. A boa política externa entende as
complexidades desse mundo há muito tempo multipolar. A Rússia invadiu a Ucrânia
levando uma guerra para dentro da Europa. Isso é conflito gerado pelo fato de
os Estados Unidos não aceitarem a própria decadência? O ditador Vladimir Putin
é também um resultado da crise do capitalismo? Nenhuma culpa recai sobre o
autocrata do Kremlin?
O
governo de Joe Biden parabenizou o presidente Lula meia hora depois de o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter declarado a vitória do atual presidente
no dia 30 de outubro. Jair Bolsonaro levou 38 dias para reconhecer a vitória de
Biden. Bolsonaro conspirou para tentar impedir a posse do eleito, o que
culminou na tentativa de golpe de 8 de janeiro. A direita trumpista tinha feito
ataque semelhante ao Capitólio, dois anos antes, em 6 de janeiro de 2021, para
tentar impedir a posse de Biden. Como tudo isso cabe dentro da visão de mundo
de que os Estados Unidos têm o monopólio da geração de crises no planeta?
Há
uma doença infantil da qual o Partido dos Trabalhadores nunca se curou.
Somando-se os tempos, ele governou o Brasil por quase 15 anos. Já poderia ter
desenvolvido um pensamento internacional mais sofisticado, sem alinhamento com
uma potência ditatorial, e que evitasse o antiamericanismo estudantil. Aqui no
Brasil partido é partido, governo é governo —ao contrário da China, aliás — mas
o que a presidente do PT diz será usado pelos que querem rotular o atual
governo de ditatorial, ou dizer que o espectro do comunismo ronda o Brasil”.
Fonte:
Viomundo
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