O dilema médico que deixa muitos pacientes
sem tratamento para dor
Quanto dói?
Parece uma das
questões mais simples da medicina e da saúde. Mas, na verdade, esta pode ser
uma pergunta muito difícil de se responder com objetividade.
Imagine um médico que
tem dois pacientes fazendo caretas e usando palavras parecidas para descrever
as suas dores. O médico pode ter certeza de que eles estão sentindo o mesmo
nível de dor?
E se um deles tiver o
hábito de subestimar seu sofrimento? E se um deles sentir dor há muito tempo e
estiver acostumado a ela? E se o médico tiver certos preconceitos que fazem com
que ele acredite mais em um paciente do que no outro?
A dor é um inimigo
difícil de combater e de medir – e, por isso, difícil de se tratar.
A dor pode ser um
importante sinal de angústia e deixar de investigá-la pode fazer perder a
oportunidade de salvar uma vida. Ou pode ser algo muito menor.
Mesmo sendo uma
experiência universal, a dor continua sendo um grande mistério – e,
especialmente, a tarefa de determinar quanta dor alguém está sentindo.
"Entendemos muito
mal a dor", afirma a cientista da computação Emma Pierson, da Universidade
Stanford, nos Estados Unidos, pesquisadora das dores.
"Particularmente,
o fato de que os médicos humanos ficam frequentemente atordoados para descobrir
por que um paciente sente dor indica que o nosso conhecimento médico atual da
dor é muito fraco", afirma ela.
O padrão-ouro atual da
análise da dor depende do próprio relato dos pacientes sobre como eles se
sentem. Em diversos locais, é utilizada uma escala numérica (na qual 0 é
ausência de dor e 10 é a dor mais forte) ou um sistema de rostos sorridentes.
"A primeira etapa
do tratamento adequado da dor é medi-la com precisão e este é o desafio",
afirma Carl Saab, líder da equipe de pesquisa da dor da Clínica Cleveland, em
Ohio, nos Estados Unidos.
"Atualmente o
padrão de atendimento é baseado nos 'rostos sorridentes' que permeiam as salas
de pronto atendimento." Para Saab, este sistema pode ser confuso para os
pacientes e especialmente problemático para tratar crianças e pacientes não comunicativos.
A segunda questão é
acreditar na avaliação do paciente. Um estudo concluiu que existe uma noção
generalizada de que as pessoas tendem a exagerar o nível de dor que estão
sentindo, embora poucas evidências indiquem que esse exagero seja algo comum.
Sem uma forma objetiva
de medir a dor, surge um espaço para que o preconceito influencie as decisões
dos médicos.
"A dor tem um
impacto particularmente grande sobre as populações carentes e a dor deles,
muitas vezes, costuma ser ignorada", afirma Pierson.
Infelizmente, falsas
crenças sobre as dores são comuns entre os médicos.
Em 2016, um estudo
concluiu que 50% dos estudantes de medicina e médicos residentes brancos nos
Estados Unidos mantinham ideias falsas e muito perigosas sobre as pessoas
negras e suas experiências de dor.
Outro estudo concluiu
que quase a metade dos estudantes de medicina ouviu comentários negativos sobre
pacientes negros dos seus colegas mais velhos e o nível de viés racial desses
alunos aumentou significativamente nos seus quatro primeiros anos de aprendizado
médico.
Esse preconceito data
das tentativas históricas de justificar a escravidão, como falsas alegações de
que as pessoas negras teriam pele mais espessa e diferentes terminações
nervosas.
Agora, pacientes
negros nos Estados Unidos têm 40% menos chance de terem suas dores tratadas do
que os pacientes brancos. E os pacientes hispânicos têm 25% menos chance do que
os brancos de terem suas dores tratadas.
A discriminação racial
não é a única forma de preconceito que influencia o tratamento das dores.
Existe também o viés relativo às "mulheres histéricas", que ainda é
muito conhecido na medicina, particularmente em relação à dor.
Uma análise de 77
estudos separados revelou que termos como "sensível" e
"reclamona" são mais frequentemente aplicados aos relatos de dor
pelas mulheres.
Um estudo realizado
com 981 pessoas concluiu que as mulheres que chegam com dores ao pronto
atendimento têm menos chance de receber algum remédio para a dor e precisam
esperar 33% mais tempo para receber tratamento do que os homens.
Além disso, quando
homens e mulheres relatavam níveis de dor similares, os homens recebiam
medicamentos mais fortes para tratamento.
As expectativas
sociais sobre o "comportamento normal" de homens e mulheres são a
causa desses padrões, segundo Anke Samulowitz, que pesquisa viés de gênero na
Universidade de Gotemburgo, na Suécia.
Para ela, esses
preconceitos geram "diferenças clinicamente injustificadas na forma em que
homens e mulheres são tratados pelos médicos".
Samulowitz ressalta
que existem, às vezes, motivos reais para que homens e mulheres recebam
tratamentos diferentes para uma questão de saúde específica.
"Diferenças
associadas a hormônios e genes, às vezes, podem causar variações, por exemplo,
na medicação para a dor", segundo ela. "Mas nem todas as distinções
observadas no tratamento de homens e mulheres com dores podem ser explicadas
por questões biológicas."
• O avanço da tecnologia
Será que as novas
tecnologias podem ajudar a fornecer uma forma de superar o preconceito e o viés
em torno da dor na medicina?
Diversas inovações
estão sendo desenvolvidas para preencher essa lacuna, oferecendo uma
"leitura" objetiva da gravidade da dor de uma pessoa. Estas
tecnologias dependem de se encontrar "biomarcadores" da dor –
variáveis biológicas mensuráveis correlacionadas a essa experiência.
"Sem
biomarcadores, não conseguiremos diagnosticar e tratar adequadamente a
dor", explica Saab. "Não conseguiremos prever a probabilidade de
alguém com lesões agudas nas costas adquirir dores crônicas resistentes ao
tratamento e não poderemos monitorar objetivamente a reação a terapias
inovadoras em testes clínicos."
Existem diversos
possíveis biomarcadores. Pesquisadores de Indiana, nos Estados Unidos,
desenvolveram um exame de sangue para identificar quando é ativado um conjunto
muito específico de genes envolvidos na reação corporal à dor. Os níveis desses
biomarcadores poderão indicar não só que alguém tem dor, mas a sua intensidade.
A atividade cerebral
poderia ser outro biomarcador útil.
Quando estava na
Universidade Brown, nos Estados Unidos, Saab idealizou com sua equipe uma
técnica que mede o fluxo e refluxo de um tipo de atividade cerebral conhecido
como ondas teta. A equipe concluiu que essas ondas aumentam durante a dor.
Saab também descobriu
que a administração de analgésicos reduz a atividade teta para os níveis
normais.
Desde então, o
trabalho da equipe vem sendo reproduzido independentemente por outros
laboratórios. Mas Saab acredita que a avaliação da dor com base nas ondas teta
será mais um método de medição da dor e não uma substituição dos métodos
atuais.
"Nunca
conseguiremos saber ao certo como alguém se sente, seja em relação à dor ou
outro estado mental", afirma Saab.
"O relato verbal
do paciente deve sempre permanecer como a 'verdade básica' para a dor. Imagino
que isso seja utilizado como diagnóstico auxiliar, especialmente em casos em
que os relatos verbais não são confiáveis: crianças, adultos com estado mental
alterado, pacientes não comunicativos."
Saab faz distinção
entre a dor aguda, que funciona como alarme ("e, neste caso, não devemos
ignorá-la") e a dor crônica.
Às vezes, uma análise
mais detalhada da lesão ou condição que causa a dor pode ajudar a tornar os
tratamentos melhores e mais razoáveis.
A classificação de
Kellgren e Lawrence, proposta pela primeira vez em 1957, examina a severidade
das mudanças físicas dos joelhos causadas pela osteoartrite.
Mas uma das críticas a
este sistema é o fato de que pacientes com baixa renda ou grupos minoritários,
muitas vezes, sentem dores mais intensas devido a essa condição. Isso traz um
duplo golpe para esses indivíduos.
"Como essas
medidas de intensidade têm forte influência para [decidir] quem terá o joelho
operado, os grupos carentes podem ser subencaminhados para cirurgia",
afirma Pierson.
Pierson e seus colegas
da Universidade Stanford desenvolveram um novo algoritmo que pode analisar essa
questão.
"Usamos uma
técnica de aprendizado profundo para procurar, no raio X do joelho, elementos
adicionais relevantes para a dor que o médico pode não estar vendo e que podem
explicar as dores mais fortes em pacientes carentes, treinando um algoritmo de
aprendizado profundo para prever a dor a partir dos raios X do joelho",
explica a pesquisadora.
"Então, você pode
imaginar, basicamente, o uso desse algoritmo para ajudar a definir melhor as
cirurgias, sinalizando para o médico: 'você disse que este paciente não tem
lesões físicas do joelho, mas aqui está uma indicação no raio X de que pode haver
– não quer dar outra olhada?'"
O algoritmo ainda irá
levar um tempo para chegar ao mundo real, segundo Pierson. Existem desafios a
serem superados que são comuns em todo o campo da inteligência artificial na
medicina, como o desenvolvimento e treinamento de humanos e algoritmos para que
trabalhem bem em conjunto.
Mas ela está animada
por ver que o seu algoritmo encontra sinais no joelho que preveem a dor e podem
ajudar a reduzir o problema. Para Pierson, este trabalho destaca o potencial da
IA para diminuir o preconceito na assistência médica.
"Sou
frequentemente levada para questões em que o conhecimento médico é claramente
inadequado e prejudica especialmente as populações historicamente ignoradas
pela medicina, como as minorias raciais e as mulheres", comenta ela.
Mas Pierson observa
que algoritmos como o seu não irão resolver todos os problemas da osteoartrite
do joelho.
"Não é que o
nosso algoritmo faça algum trabalho mágico fantástico de prever a dor",
explica ela. "Mas estamos comparando com o conhecimento básico da dor, que
é muito ruim, e uma avaliação de intensidade que foi desenvolvida décadas atrás
em populações britânicas predominantemente brancas – e não é tão difícil
melhorar com base nesses pontos de partida."
Anke Samulowitz
destaca que utilizar a tecnologia para reduzir o preconceito também pode trazer
suas próprias dificuldades. Existe, por exemplo, a questão do viés na aplicação
da tecnologia.
"Cerca de um
quinto da população em geral é afetada por dores moderadas a severas",
explica ela. "A maior parte dessas pessoas procura tratamento médico na
assistência primária. Será que todas elas terão medição da dor por imagem
cerebral ou haverá parcialidade na seleção?"
"Pesquisas
demonstram que homens recebem mais prescrições de exames somáticos do que as
mulheres, enquanto mais mulheres são encaminhadas a psicólogos. Existe um risco
de viés de gênero para definir quem terá a medição objetiva da dor."
Apesar dos desafios à
frente, Saab acredita que existe sede de mudanças no campo da dor. "Os
médicos estão dizendo, 'veja, não podemos basear nosso fluxo de trabalho
clínico nisso, não é assim que devemos praticar a medicina'."
"Quando você tem
alta temperatura, você usa um termômetro. Quando tem alta pressão sanguínea,
você examina as concentrações no sangue. Neste caso, as pessoas chegam com dor
e mostramos a elas rostos sorridentes."
Fonte: BBC Future
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