A cultura do judeu da diáspora
Antes do Holocausto,
os judeus de origem europeia (ashkenazim), que falavam yiddish,
representavam 90% dos judeus no mundo (hoje representam 80%), os demais
eram sephardim e mizrahim. Os judeus ashkenazim,
durante a diáspora, desenvolveram uma cultura humanista, internacionalista e
pacifista, que pode ser conferida na pujante literatura yiddish gerada entre as
últimas décadas do século XIX e a primeira metade do século XX.
Em meio à cultura
ocidental, o pacifismo judeu era considerado sinônimo de fraqueza e de pouca
virilidade. Esses judeus, que sempre se posicionavam contra as desastrosas
guerras entre os países europeus, foram vítimas de pogroms, submeteram-se a ser
escravos do III Reich e caminharam pacificamente para o matadouro. Contudo,
Jean-Paul Sartre escreveu que a brandura dos judeus, utilizados como bode
expiatório, frente às injustiças e à violência era a verdadeira marca da
grandeza do povo judeu.
O Plano de Partição da
Palestina foi aprovado pelas Nações Unidas em 1947 como uma alternativa para o
assentamento dos judeus sobreviventes que estavam alojados nos campos de
refugiados na Europa. Para os países membros das Nações Unidas era mais conveniente
a criação de um Estado judeu na Palestina do que autorizar a imigração desses
judeus sobreviventes para seus respectivos países.
Na formação do Estado
de Israel, ao se empenharem em sobrepujar a passividade com que os judeus
enfrentaram os pogroms e o Holocausto, os israelenses decidiram soterrar o
yiddish, a milenar língua materna dos judeus ashkenazim, e declarar
a língua sacra, o hebraico, como idioma oficial. Em Israel, a tradição
humanista, internacionalista e pacifista dos judeus da diáspora, junto com a
sua língua, o yiddish, foi banida.
Era necessário criar o
novo judeu, o judeu nacionalista e viril, capaz de expulsar 80% dos palestinos
do território que passou a ser Israel, para garantir uma maioria judia no país;
e submeter militarmente os 20% dos palestinos que foram autorizados a permanecer
em Israel, bem como os refugiados e os palestinos da Cisjordânia e da Faixa de
Gaza. Os judeus de Israel são chamados de sabras (frutos do
cacto, figos da índia), grossos e espinhentos por fora e, como gostam de
acreditar, macios e doces por dentro.
Na década de 1950,
dezenas de milhares de judeus sobreviventes do Holocausto que haviam imigrado
para Israel a partir de 1948, não se adaptando à cultura do novo judeu
israelense, resolveram abandonar a Terra Prometida. Milhares de israelenses,
por obra do destino, aportaram em terras brasileiras, imigração deveras
desconfortável para os judeus sionistas brasileiros.
Essa aliyah às
avessas, até hoje, não encontra registro na história da imigração judaica pela
Confederação Israelita do Brasil – CONIB.
O yiddish, uma língua
com uma riqueza cultural mágica, autêntica, cheia de cores, aromas e sabores,
sempre foi mesmo uma língua sem estado. A pátria dos judeus da diáspora era o
livro, a Torah, e sua única arma sempre foi a caneta. Nos anos
1950, o primeiro-ministro David Ben-Gurion proibiu formalmente a nomeação de
oficiais com sobrenomes yiddish para as forças armadas e para o corpo
diplomático, forçando a substituição dos sobrenomes yiddish para sobrenomes
hebraicos.
Em Israel, falar
yiddish nas ruas era mal visto, quase uma contravenção. O poeta Menke Katz,
depois de ter sido conduzido à prisão em Israel por falar yiddish com seu filho
na rua, fez as malas mais uma vez e voltou para os Estados Unidos.
Mas os judeus nos
Estados Unidos, que sempre foram considerados pacíficos, tolerantes e pouco
viris na sociedade agressiva e competitiva norte-americana, resolveram
enaltecer os “heroicos” israelenses, trair a cultura do judeu da diáspora e
abraçar a cultura do novo judeu sionista, lutador viril, durão e armado até os
dentes. Pankay Mishra, em artigo postado no site A Terra é
Redonda, analisa o empenho tanto dos sionistas como dos nacionalistas hindus em
substituir suas pregressas experiências de humilhação por uma cultura heroica.
Israel deu início a
uma ofensiva militar em Gaza após 7 de outubro de 2023. A OTAN, hipocritamente,
se empenha em um cessar fogo enquanto a guerra segue em Gaza, com o povo
palestino sendo exterminado, e a vida em Israel segue seu curso normal,
comércio, restaurantes e bares abertos, adultos indo trabalhar e crianças
frequentando as escolas. Esta guerra é uma farsa, é uma chacina.
Em 1982, as Nações
Unidas, por 123 votos a favor, nenhum contra e 22 abstenções, condenaram o
massacre de Sabra e Chatila declarando-o um ato de genocídio. A Corte Suprema
de Israel considerou o Ministro da Defesa responsável pelo massacre e
recomendou a sua demissão. Seria possível imaginar, como uma reação ao massacre
de Sabra e Chatila, uma ofensiva palestina em Tel Aviv que a deixasse aos
escombros, como está hoje reduzida a Faixa de Gaza? Imaginar o extermínio de
milhares de homens, mulheres e crianças israelenses na proporção das atuais
mortes perpetradas pelo exército israelense em Gaza? Para os países membros da
OTAN, a mera imaginação de uma ofensiva palestina no calibre da ofensiva
israelense é mais aviltante que a efetiva ofensiva militar em andamento em
Gaza.
Em 2016, a IHRA
(Aliança Internacional para a Memória do Holocausto) divulgou uma Definição Prática de Antissemitismo, que inclui “negar ao povo judeu o seu direito à
autodeterminação, por exemplo, afirmando que a existência do Estado de Israel é
um empreendimento racista”. Vários países membros da OTAN aderiram à definição
de antissemitismo da IHRA, substituindo judaísmo por sionismo e se empenhando
em silenciar as vozes dissidentes em apoio à causa palestina, perseguir
professores, pesquisadores e acadêmicos, cancelar palestras, exposições,
eventos, shows, desconvidar pessoas para receberem prêmios etc.
Em 2020 vários
acadêmicos, jornalistas e intelectuais palestinos e árabes expressaram suas
preocupações com a definição de antissemitismo da IHRA. Em agosto de 2023, a centenária organização judia norte
americana The Workers Circle rompeu com as demais organizações judaicas nos Estados Unidos por discordar da definição de
antissemitismo da IHRA. Em março de 2024, o governador do Estado de São Paulo
achou por bem aderir à Definição Prática de Antissemitismo da IHRA.
O moderno sionismo
político nasceu no final do século xix, mas era muito pouco expressivo até a
ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha. Parte significativa dos judeus
europeus aderia ao ideário socialista; e parte significativa imigrava para os
Estados Unidos. O Bund, a União Geral dos Trabalhadores Judeus na Lituânia,
Polônia e Rússia, fundado em 1897 no seio do Império Czarista, constituiu-se em
um expressivo movimento em prol da democracia e do socialismo.
O Bund era
internacionalista e abertamente antissionista. Entre 1881 (início dos pogroms
no Império Russo) e 1914 (início da Primeira Guerra Mundial), três milhões de
judeus abandonaram o Leste Europeu, dois milhões dos quais imigraram para os
Estados Unidos. Jerusalém, para a grande maioria dos judeus, permanecia sendo a
Jerusalém Celeste, espiritual, messiânica, o paraíso, a Terra Prometida para a
qual, durante o Pessah, anualmente, se dizia querer ir “no próximo
ano”, l’shana haba’ah b’Yerushalayim.
O moderno sionismo
político e a criação do estado de Israel como um estado judeu sempre foi
matéria controversa, tanto entre judeus laicos como no meio religioso. Para o
judaísmo, a unanimidade é considerada estúpida e é recriminada.
Ø Primo Levi, judaísmo e sionismo
Primo Levi, judeu que
participou do Movimento de Resistência Italiano, foi encaminhado para Auschwitz
em 21 de fevereiro de 1944. Primo Levi e outros prisioneiros acamados foram
abandonados em Auschwitz, que foi libertado pelo Exército Vermelho em 27 de janeiro
de 1945. As Nações Unidas estabeleceram o dia 27 de janeiro como o dia
internacional em memória das vítimas do Holocausto.
Se questo
è un uomo (se isto é um homem), as memórias de
Primo Levi em Auschwitz, foi publicado já em 1947, mas ficou mofando por onze
anos até se transformar no grande clássico da vasta literatura do Holocausto.
Embora defendesse a existência de Israel, Primo Levi era extremamente crítico à
política do governo do país, era contra os assentamentos e a favor da
desocupação da Cisjordânia e de Gaza. Em 1982, participou ativamente dos
protestos contra a invasão do Líbano e o massacre de Sabra e Chatila.
Em 1984, Primo Levi
concedeu uma entrevista a Gad Lerner, Israel, se isto é um Estado. Indagado se não estaria havendo mudanças nos valores de
tolerância da geração de judeus da diáspora para novos valores de uma geração
de israelenses, Primo Levi respondeu, “O que você descreve faz parte de um
futuro previsível. Acredito que cabe a nós, judeus da diáspora, lutarmos contra
esse futuro. Lembrar a nossos amigos israelenses que ser judeu significa outra
coisa, guardar com respeito a tradição judaica da tolerância. Claro que estou
ciente de que estou tocando aqui num ponto crucial, e esta é a questão: onde
está o centro de gravidade do judaísmo hoje?” E continua, “Como judeu da
diáspora, que se sente muito mais italiano do que judeu, eu preferiria que o
centro de gravidade do judaísmo ficasse fora de Israel… acredito que a
principal corrente do judaísmo está mais bem preservada em outros lugares do
que em Israel.”
Mas, apesar de Primo
Levi preferir e acreditar que o centro de gravidade do judaísmo estava voltando
para a diáspora, o judeu da diáspora no pós-guerra vinculou a sua identidade a
Israel, como se a segurança dos judeus em todo o mundo dependesse de Israel. Os
judeus, pode-se dizer, substituíram o judaísmo pelo sionismo. Em 1985, em
visita aos Estados Unidos, Levi causou mal-estar entre os judeus
norte-americanos ao declarar que “Israel foi um erro em termos históricos”.
Primo Levi faleceu em 1987, oficialmente por suicídio, aos 67 anos de idade.
Em 1947, as Nações
Unidas haviam aprovado a criação de Israel em território palestino e a maior
parte dos israelenses e dos judeus da diáspora não sabe ou não quer saber que,
para garantir uma maioria judia no país, 80% dos palestinos que habitavam a região
foram expulsos ou fugiram da zona de combate, foram impedidos de retornar às
suas casas e cidades e vivem apátridas há três gerações em campos de refugiados
nas fronteiras de Israel; e que a instalação dos primeiros assentamentos nos
territórios ocupados data dos governos trabalhistas “de esquerda”.
Tal qual a tolerância,
o pacifismo do judeu da diáspora foi substituído pelo militarismo e os
israelenses se orgulham muito de suas consecutivas vitórias militares e da
contenção da população palestina. Sete milhões de palestinos vivem hoje
prisioneiros na Palestina histórica e outros sete milhões vivem na diáspora
palestina, a maior parte na condição de apátrida. Mas agora, para todos os
efeitos, tudo começou em 7 de outubro de 2023, o que “justifica” a atual
ofensiva militar a Gaza.
A maior parte dos
israelenses e dos judeus da diáspora, que vive hoje maldizendo palestinos,
árabes e muçulmanos, também não sabe ou não quer saber que o antissemitismo
sempre se manifestou essencialmente no mundo ocidental cristão; e que a
convivência entre judeus, palestinos, árabes e muçulmanos anterior ao moderno
sionismo político sempre foi pacífica. Pankay Mishra cita, entre outros, Primo Levi, Jean Améry e o consagrado filósofo
israelense Yeshayahu Leibowitz, que já em 1969 denunciava a “nazificação” de
Israel.
As organizações
sionistas da diáspora estão hoje empenhadas em silenciar as manifestações de
protesto à atual ofensiva militar a Gaza, em especial as vozes judias
dissidentes, traidoras do sionismo e, de acordo com o seu entendimento,
traidoras do judaísmo, “judeus que odeiam a si mesmos”. Várias exibições do
maldito documentário norte-americano “antissemita” Israelism,
dirigido por Erin Axelman e Sam Eilertsen, vêm sendo canceladas desde a sua
estreia em 2023 e principalmente após o 7 de outubro.
Embora ainda uma
minoria, cresce a resistência de jovens judeus ao establishment judeu
norte-americano, “parem de mentir para nós”. Organizações como Jewish
Voice for Peace e IfNotNow orientam seus jovens
militantes em como se relacionar com seus pais sionistas. Os sionistas da
diáspora, contudo, entendem o crescimento das manifestações em defesa do povo
palestino como manifestações antissemitas, enquanto o povo palestino, “utilizado
como escudo” e “responsável coletivamente” pelas ações do Hamas, segue, num
crescente, sofrendo um massacre veiculado em cores e em tempo real.
Fonte: Por Samuel
Kilsztajn em A Terra é Redonda
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