Projeto Querino: a contra-história do
Brasil
Em agosto de 2022, foi
lançado o Projeto Querino, idealizado e coordenado pelo jornalista Tiago
Rogero, com apoio do Instituto Ibirapitanga e produzido pela Rádio Novelo. O
projeto, segundo informações do próprio site, envolveu mais de 40 profissionais
e conta com 8 episódios no formato de Podcast e uma série de reportagens na
Revista Piauí. O Projeto Querino foi lançado nos 200 anos da independência
brasileira e buscou marcar uma disputa de sentidos políticos e ideológicos da
data e da própria compreensão histórica da nacionalidade brasileira.
Não sei se os
idealizadores e executores do projeto têm afinidade com abordagens teóricas e
historiográficas como as de Walter Benjamin e E. P. Thompson. O fato é que toda
construção argumentativa caminha no sentido de uma história à contrapelo ou uma
de história dos de baixo, buscando questionar consensos, “verdades”
consolidadas e narrativas oficializadas pelo poder público burguês. Essa
história a contrapelo, porém, tem um marcador específico no seu olhar sobre o
Brasil: é uma abordagem sobre o Brasil contada desde a perspectiva da população
negra.
Tecnicamente, o
podcast é impecável. O trabalho de pesquisa histórica e jornalística é soberbo
e chama atenção. Na minha experiência, a cada episódio, fazia em média seis
anotações de fatos históricos ou documentos que não conhecia e nos quais iria
me aprofundar depois. Como minha tese de doutorado versa, também, sobre a
questão negra no Brasil, visitarei muitas vezes o Projeto Querino para
consultas, pesquisas e reflexão. Estamos na presença de um dos melhores
materiais com que já tive contato sobre uma história do Brasil contada tendo
como norte a questão negra – e uma própria releitura do que é central na
construção histórica da nação brasileira.
Recomendo vivamente a
todas as pessoas interessadas na história brasileira, na luta antirracista e na
perspectiva de construir outro Brasil, que escutem e leiam os materiais do
Projeto Querino. Feito esses mais que merecidos elogios e recomendações, passamos
a certos incômodos e aspectos que considero um problema.
A contra-história do
Brasil idealizada por Tiago Rogero, ao destacar o papel da população negra
escravizada na construção do Brasil e sua riqueza, bem como o grau de abandono
e ausência de reparação no Escravismo Tardio (1850-1888) e no pós-abolição, simplesmente
passa ao largo da questão central: a propriedade da terra. Embora o podcast, em
vários momentos, fale da questão da terra, é sempre um tema lateral,
secundário, de pouca importância. A negação da educação, o fechamento de
oportunidades no mercado de trabalho, as condições do mercado de trabalho (como
no caso das trabalhadoras domésticas), as ideologias de inferiorização da
população negra e a ausência de políticas públicas para o povo negro (como no
âmbito da saúde), é que recebem atenção central no podcast.
Não custa lembrar que
quando ocorreu a Abolição, o Brasil era um país eminentemente agrário. A terra
era o principal meio de produção. Essa situação permanece durante boa parte do
século XX. O acesso à terra era, assim, o principal fator de desigualdade de
renda, riqueza e poder. Foi assim em 1888, e, com diferenças substantivas, a
monopolização da terra segue um fator central na explicação das desigualdades
do Brasil. Famosos e importantes abolicionistas, como André Rebouças
(1838-1889), viam na reforma agrária um fator fundamental de reparação
histórica para a população negra e a mudança radical da estruturação do Brasil
Nação.
A reforma agrária,
como sabemos, nunca aconteceu no Brasil. O censo agrícola de 1940 registrava
que 48,31% das áreas agricultáveis do Brasil estavam nas mãos de 1,46% dos
proprietários de terra. Em 2017, o censo agrícola brasileiro afirmava que 48%
das terras com 1000 hectares ou mais estavam nas mãos de 1% dos proprietários
rurais. Relacionar a “herança da escravidão” com a monopolização da terra, e a
reparação histórica com uma radical reforma agrára e urbana, não faz sucesso e
desagrada potenciais financiadores (empresas e ONGs) da luta antirracista.
Falar em educação ou política de cotas, por exemplo, como necessário para
remediar a “herança da escravidão” e a dívida histórica do Brasil para com a
população negra encontra um amplo consenso – com exceção de setores da
extrema-direita brasileira. O mesmo não acontece, é claro, quando se toca na
questão da propriedade!
Clóvis Moura, no seu
mais importante livro, Dialética Radical do Brasil Negro, diz que o “problema
do negro brasileiro não é apenas o do racismo existente contra ele [...], mas
um problema que passa pela sua integração social, econômica, cultural e psicológica
ao seio da nação e à sua desmarginalização como cidadão”; a partir disso, diz
Clóvis, “por exemplo, durante a passagem do centenário da Abolição, muitos
trabalhos foram publicados, alguns de protesto radical sobre o seu significado,
no entanto nenhum movimento foi feito pelas entidades negras no sentido de
democratizar a sociedade brasileira - étnica, social e economicamente -, por
meio da exigência política de fragmentação da grande propriedade fundiária, o
que integraria milhões de negros hoje marginalizados em face da altíssima
concentração da propriedade fundiária entre nós” (MOURA, 2020, p. 304 - Editora
Anita Garibaldi).
Clóvis Moura, nesse
livro lançado em 1994, criticava o movimento negro que focava nos aspectos de
competição na dinâmica do mercado capitalista, cobrando “igualdade de
oportunidades”, sem colocar em questão o dinanismo estrutural do capitalismo
dependente brasileiro. Décadas depois, a crítica de Clóvis se encaixa
perfeitamente para a perspectiva política do Projeto Querino. O horizonte de
democratização antirracista que aparece nas falas de Tiago Rogero (narrador do
podcast) não toca na questão da propriedade, o que significa, em última
instância, uma capacidade limitada de alterar os rumos do conflito
redistributivo (disputa na circulação da riqueza socialmente produzida) no
país.
Essa contradição fica
latente na perspectiva sobre a classe dominante – chamada de elite no podcast.
Durante os episódios somos o tempo todo lembrados que essa “elite” surgiu a
partir da escravidão, construiu sua riqueza a partir da escravidão e mantém sua
riqueza tendo o racismo como um dos fundamentos. Ou seja, nos palácios e
cristais da “elite” brasileira, vamos sempre achar sangue negro. Contudo, desta
constatação, deriva algo curioso: o objetivo político não é derrotar ou
“destruir” essa elite, mas estabelecer uma democracia de fato, sem racismo, com
“igualdade de oportunidades”. Embora não dito abertamente, no final, o
horizonte “emancipatório” é uma convivência igualitária com a “elite”.
Novamente, conscientemente ou não, essa perspectiva é mais bem aceita nos
salões da burguesia brasileira que a ideia de derrotar e destruir a classe
dominante brasileira, herdeira da escravidão e alimentada pela exploração
capitalista-racista de hoje.
Para falar do terceiro
ponto, insisto em algo: não sei se a perspectiva adotada foi proposital. Não
estou avaliando intenções, mas analisando fatos. E um dos fatos é que no
Projeto Querino, por todos os meios possíveis, se evita citar as correntes
teórico-políticas com força no Brasil no período pré-hegemonia do Partido dos
Trabalhadores. Clóvis Moura é citado apenas como sociólogo, sem que seja
mencionado que ele era comunista e fez uma análise marxista da questão negra no
Brasil. Guerreiro Ramos é citado, mas sem abordar sua militância no antigo PTB,
o trabalhismo e o nacionalismo defendido pelo autor. Laudelina Campos Melo é
mais que citada. É destaque de um episódio. E o episódio começa e termina sem
citar os anos de militância comunista de Laudelina.
No episódio sobre
saúde e a criação do SUS, não é explicado as origens históricas da reforma
sanitária, o peso de perspectivas socialistas na criação do SUS ou o papel de
lideranças como o comunista Sérgio Arouca. Na prática, é evitada toda citação a
partidos, ideologias e lideranças que não sejam Lula, Dilma, Benedita da Silva,
PT, governos petistas etc. Simplesmente não temos referências ao nacionalismo
trabalhista (tendência de Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez, Abdias do
Nascimento, Joel Rufino dos Santos etc.), ao comunismo (Clóvis Moura, Edson
Carneiro, Carlos Marighella, Wilson Barbosa etc.) e a temas de muito peso para
os intelectuais negros e suas organizações no século XX, como a questão
nacional e o imperialismo.
É sintomático, também,
que na reivindicação por uma democracia sem racismo e por igualdade de
oportunidades, não sejam citadas as palavras neoliberalismo, fascismo,
imperialismo, privatizações, austeridade etc. O horizonte político do podcast
caminha numa estrada em que é fácil conseguir um consenso, com exceção, repito,
da extrema-direita. Aposto, por exemplo, que tirando o bolsonarismo e seus
satélites, ninguém vai discordar da frase “enquanto houver racismo, não haverá
democracia” (frase da Coalizão Negra por Direitos). A Rede Globo, por exemplo,
concordaria com essa frase sem problemas – ao passo que defende privatizações,
ataques aos direitos trabalhistas e previdenciários, austeridade e Teto de
Gastos, o agronegócio e os monopólios estrangeiros etc.
Em suma, enquanto
material jornalístico, pedagógico e de pesquisa, o Projeto Querino é uma das
melhores novidades da história recente do Brasil. Enquanto horizonte político,
o projeto expressa todas as limitações presentes nos setores majoritários do
movimento negro brasileiro, incapazes de levar a sério a clássica reflexão de
Malcolm X e tirar as consequências políticas disso: “não há capitalismo sem
racismo”.
Fonte: Por Jones
Manoel, em Opera Mundi
Nenhum comentário:
Postar um comentário