MILITARES
TENTAM APROVEITAR CRISE NA ABIN PARA CRIAR ÓRGÃO DE SEGURANÇA CIBERNÉTICA
LIGADO AO GSI
AS FORÇAS
AMADAS têm enxergado a investigação da Polícia Federal sobre um esquema de
espionagem ilegal na Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, como uma
oportunidade para retomar o controle de atividades de inteligência. A crise fez
com que os militares voltassem a investir na criação da Agência Nacional de
Segurança Cibernética, a ANCiber, um órgão que seria vinculado ao Gabinete de
Segurança Institucional, o GSI.
O projeto
tem sido debatido na caserna desde o início do governo do Lula e já havia sido
enviado para análise da Casa Civil da Presidência da República no final do ano
passado. Depois de ver o texto parado por alguns meses no Palácio do Planalto,
membros das Forças Armadas têm se movimentado para fazer o projeto andar
Especialistas
e integrantes do próprio governo apontam que uma agência para tratar do tema é
uma iniciativa positiva, mas enxergam problemas graves no atual formato
proposto pelo GSI. Um dos grupos que mais tem se incomodado são os agentes da
Abin. Um deles, ouvido sob anonimato, disse que o fato de a agência ser
vinculada ao GSI significa uma tentativa de “remilitarização” de atribuições da
agência, já que a política de segurança cibernética, hoje, é uma das
atribuições do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para a Segurança das
Comunicações, um dos setores mais importantes da Abin.
O GSI nega
a tentativa de militarização – prefere falar em “conceito de
Cooperação-Regulação-Controle”. “Todos os setores da sociedade atuantes na
proteção cibernética e manutenção da resiliência nacionais agiriam de forma
sinérgica e coordenada pela ANCiber, inclusive com a contribuição do setor
militar”, disse o órgão, por meio de sua assessori de imprensa. “Cada um desses
atores nacionais possui responsabilidades e atuação perfeitamente delimitadas,
especializadas e dimensionadas em suas competências e capacidades.”
Único
militar a comandar um ministério do governo Lula, o atual ministro do GSI, o
general Marcos Antônio Amaro, nunca escondeu a sua visão militarizada da
inteligência de estado.
Em
junho, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Amaro chegou a sugerir que a Abin, transferida por Lula para a
Casa Civil no início de seu mandato, poderia voltar ao GSI – mesmo que a
possibilidade jamais tenha sido cogitada publicamente. “Se [a Abin] tiver de
voltar, não haverá constrangimento. Se voltar por decisão do presidente, tudo
bem. Estamos prontos para recebê-la. O que precisamos aqui são os conhecimentos
que a agência produz, para prevenir e gerenciar crises. Para nossa segurança, a
segurança prestada ao presidente”, disse.
Além da
Abin, outros órgãos já expressaram preocupação com a dimensão das atribuições
da agência proposta pelo GSI. A secretária de Direitos Digitais do Ministério
da Justiça, Estela Aranha, comentou o tema em
uma audiência pública realizada no Palácio do Planalto, em junho, diante da
presença do general Amaro.
Favorável
à criação da agência, Aranha cobrou sinergia da
futura agência com outros organismos ligados ao tema dentro do Executivo, para
que não ocorram choques de atribuições e que as atribuições do governo federal
não sejam esvaziadas. A secretária apontou que a proposta do GSI trata a
agência não apenas como reguladora, mas também como executora de políticas.
Segundo ela, porém, o executivo federal tem atribuições indispensáveis na
política pública de segurança.
“Quando
analisamos o texto, chamou a nossa atenção que a agência proposta tem papel de
regulação e execução de política. Seria bom entender mais porque há questões de
execução de política cibersegurança que são de competência de administração
direta pela sensibilidade do tema”, declarou Aranha.
·
Brasil é vulnerável e culpa é dos
militares, diz estudo
Um estudo
da organização britânica International Institute for Strategic Studies, o IISS,
publicado em setembro de 2023, revelou preocupações significativas em relação à
segurança cibernética no Brasil. Segundo a publicação, o protagonismo das
Forças Armadas tem influenciado negativamente a capacidade do país em se
defender de ameaças no universo digital.
A pesquisa, que
analisou as capacidades cibernéticas e o poder nacional de 25 países, incluindo
o Brasil, colocou o país na “Categoria Três” em termos de poder cibernético – o
nível mais baixo entre os países analisados, ao lado de outras 14 nações, todas
de médio e pequeno porte.
O Brasil
ficou junto com países como Arábia Saudita, Nigéria, Cingapura e África do Sul.
Os Estados Unidos foram considerados como como único país na “Categoria 1”,
enquanto outras potências, como China, França e Canadá, Austrália e Israel,
ficaram na “Categoria 2”.
Os autores
apontam que, embora o Brasil possua uma infraestrutura de Tecnologia da
Informação e Comunicação bem desenvolvida, uma economia digital sólida e uma
infraestrutura de resposta a incidentes cibernéticos crível, a falta de uma
arquitetura legal cria deformações que levam o país a um nível insatisfatório
de segurança cibernética.
O estudo
destaca a composição predominantemente militar dos quadros do GSI. “Embora de
natureza civil, o GSI tem sido tradicionalmente dominado pelas Forças Armadas,
composta por cerca de 70% de pessoal militar, e seus últimos três diretores
eram ex-oficiais do exército”, diz um dos trechos.
De acordo
com a pesquisa, o impacto das Forças Armadas na estratégia de segurança
cibernética do Brasil tem ofuscado a função da Agência Brasileira de
Inteligência, a Abin, como coordenadora principal e força unificadora nos
esforços de segurança cibernética tanto no setor público quanto no privado.
“É
necessário resolver as tensões institucionais entre os militares e os civis, o
que pode impedir os esforços do Brasil para promover uma abordagem unificada em
direção à resiliência cibernética”, diz o estudo.
A falta de
coordenação entre as diferentes estruturas que compõem a política brasileira de
cibersegurança é um dos pontos de atenção notados pelo IISS. O estudo questiona
a sobreposição de atribuições entre órgãos e as tensões entre civis e
militares, materializada nas disputas entre a Divisão de Segurança da
Informação e Cibernética, do GSI, o Comando de Defesa Cibernética, vinculado ao
Exército Brasileiro, e o Centro de Pesquisa e Segurança Cibernética, da Abin, o
único sob controle civil.
·
Opacidade de militares dificulta
cibersegurança
Em
entrevista ao Intercept Brasil, Pedro Amaral, pesquisador do Instituto de
Pesquisa e Tecnologia do Recife, comentou os planos do GSI com a ANCiber. “A
criação de uma agência nacional de cibersegurança é uma iniciativa
potencialmente positiva, dado os problemas existentes, inclusive de falta de
coordenação e integração. Poderia trazer grandes avanços, também por trazer um
modelo com participação multissetorial. Agências similares são comuns ao redor
do mundo” opinou.
Amaral
enfatizou que a segurança cibernética transcende o âmbito militar, requerendo a
participação de outros setores. “Temos um cenário de opacidade dos órgãos militares que
poderia dificultar políticas de cibersegurança. Além disso, vimos, como no caso
da gestão do [general Eduardo] Pazuello, um militar no Ministério da Saúde
durante a pandemia, a quebra dessa aparente eficiência superior dos militares”.
Sobre a
possível remilitarização de atribuições da Abin, Amaral diz que é preciso
fortalecer as agências e iniciativas existentes. “Cibersegurança e segurança da
informação são temas importantíssimos para a inteligência e garantir a
segurança nacional, sem esquecer da coordenação, integração e cooperação entre
os atores relevantes.”
Amaral
ressaltou a importância de um equilíbrio de poder na governança da
cibersegurança e o papel do governo Lula de mediar as disputas entre Abin, GSI
e Forças Armadas. “É importante que o governo navegue esse cenário sem ceder
poder demais a um ou outro grupo, mas mantendo cada um de acordo com
responsabilidades cabíveis em prol de uma governança equilibrada, eficiente e
democrática do setor de cibersegurança,” concluiu o pesquisador.
Fonte: The
Intercept
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