Cotas
trans: apenas duas das universidades federais das capitais oferecem vagas
Durante
anos, o professor Marcel Couto frequentou o centro de São Paulo para conversar
com pessoas transgêneras, travestis e não binárias que precisavam de incentivo
para concluir a educação formal. Em 2015, ele criou o cursinho popular
Transformação, que oferece alfabetização, cursos técnicos, profissionalizantes
e preparatórios para o vestibular, com foco neste público. Mais de 100 pessoas
já passaram pelo cursinho e sete conseguiram entrar na faculdade – todas em
instituições privadas.
“Ainda há
uma dificuldade muito grande no acesso à educação superior, especialmente em
instituições públicas”, diz Couto. “Pouca pessoas trans e travestis conseguem
entrar na universidade. Menos ainda conseguem permanecer.”
Apenas
duas das 27 universidades federais das capitais brasileiras reservam cotas para
pessoas trans, travestis e não binárias, de acordo com levantamento feito
pela Agência Pública. A Universidade Federal da Bahia (UFBA) adotou o
sistema em 2019, e a de Santa Catarina (UFSC) no ano passado. A Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), a Universidade Federal de Sergipe (UFS) e a
Universidade de Rondônia (Unir) estão em fase de implantação, que deve começar
no processo seletivo deste ano para ingressantes em 2025.
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Por que isso importa?
- Este
é um levantamento inédito e atualizado. Ligamos para todas as
universidades públicas federais das capitais brasileiras para checar
quantas oferecem cotas trans na graduação e na pós-graduação. O resultado
mostra que ainda precisamos avançar muito para ampliar o acesso de pessoas
trans, travestis e não binárias ao Ensino Superior.
No Brasil,
0,3% dos estudantes de instituições federais se identificam como transgêneras,
segundo o último estudo feito pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações
Afirmativas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2018.
Além da
UFBA, da UFSC e da Unir, outras seis universidades fora de capitais
introduziram cotas para pessoas trans: a universidade de Campinas (Unicamp);
Federal do ABC (UFABC); Estadual da Bahia (Uneb); Federal do Sul da Bahia
(UFSB); Estadual do Amapá (UEAP); e Estadual de Feira de Santana (UEFS). Apenas
a UFSC possui uma política que vai além das cotas – englobando a facilitação do
acesso a bolsas, adaptação da estrutura física (como a adoção de banheiros
inclusivos), ouvidoria para receber denúncias, oficinas de formação para o
corpo docente, entre outros.
A maioria
das instituições de ensino consultadas pela reportagem – 20 das 27 – adotou
parcialmente as cotas para transgêneros, exclusivamente em alguns cursos de
pós-graduação. É mais fácil oferecer cotas no mestrado e doutorado porque a
burocracia é menor. Cada programa tem uma certa autonomia para tomar
decisões – ao contrário da graduação, em que cada passo é definido por um
colegiado de professores, alunos e servidores, o que torna o processo bem mais
lento.
Já as
federais do Acre (UFAC) e da Paraíba (UFPB) são as únicas universidades
públicas de capitais que, até agora, não criaram políticas afirmativas para o
acesso deste público à graduação ou pós-graduação. De acordo com elas, porém,
existe pressão interna para que alguma iniciativa seja tomada – principalmente
dos movimentos estudantis. A oferta de cotas apenas na pós-graduação não
responde ao problema da falta de acesso de pessoas trans, já que a graduação é
a porta de entrada no Ensino Superior.
A lei de
cotas do Governo Federal diz que deve haver reserva de vagas para alunos
negros, indígenas, pessoas com deficiência e de baixa renda nas universidades
públicas. Existem discussões para que pessoas trans e travestis sejam
incluídas, mas nenhuma avançou o suficiente.
No
Congresso, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) apresentou dois projetos de lei sobre o tema –
um propõe a reserva de vagas nas universidades e o outro em concursos públicos.
“As iniciativas visam incluir as pessoas trans e travestis, por meio da
educação e do trabalho digno, em nossa sociedade. Ajudam a resgatar a cidadania
historicamente negada à nossa comunidade”, diz ela, a primeira mulher trans
eleita à Câmara dos Deputados.
·
“É preciso oferecer políticas de
permanência e inclusão”
Mesmo nas
poucas universidades com cotas na graduação, ainda há uma dificuldade em
preenchê-las. Quando a Universidade Federal do ABC (UFABC) adotou o
sistema, em 2019, foram oferecidas 32 vagas para pessoas trans, mas apenas 17
foram preenchidas. Na edição mais recente do vestibular, em 2023, foram 40
vagas e só 23 ocupantes.
Na
avaliação de Cláudia Vieira, Pró-Reitora de Assuntos Comunitários e Políticas
Afirmativas da UFABC, a disparidade que há no número de vagas disponíveis
em relação ao número de matrículas é consequência de um ambiente universitário
que ainda não conseguiu se ajustar totalmente para atender a todas as pessoas,
sem distinção. Na universidade, 1,6% das vagas são proporcionalmente
distribuídas pelo número de vagas disponíveis nos quatro cursos de ingresso,
sendo o Bacharelado em Ciências e Tecnologia (BCT) o curso que mais possui
vagas e consequentemente ingressantes trans e travestis.
“Felizmente
graças ao trabalho conjunto do coletivo de estudantes trans da UFABC e a
pró-reitoria, conseguimos iniciar o processo de dizer a esse público que esse
lugar é também deles. Ofertamos a reserva de vagas por meio das cotas trans do
cursinho popular da universidade até os programas de pós-graduação na tentativa
de acelerar esse processo e ampliar o número de docentes trans, travestis e
não-binárias”, diz.
“Além de
ampliarmos o número de bolsas e auxílios, entendemos a importância de ter esse
público nos espaços de tomada de decisões e liderança, como a professora Ana
Lígia Scott, primeira mulher trans a concorrer à vice-reitoria da UFABC”, diz
Cláudia Vieira. Ela ressalta que, para além de garantir o acesso à
universidade, “é preciso oferecer políticas de permanência e inclusão”. “Ao
contrário disso, essas pessoas até poderão ingressar, mas certamente não irão
se sentir pertencentes o suficiente para concluir o Ensino
Superior”.
Além de
serem alvos recorrentes de transfobia e homofobia, 33% das pessoas trans,
travestis e não binárias que acessam universidades dependem de programas e
bolsas que auxiliem sua permanência, segundo pesquisa do Grupo de Estudos
Multidisciplinares de Ações Afirmativas da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (Gemaa). O levantamento também mostrou que 58% desses
estudantes são negros e 76% têm renda per capita de menos de 1,5 salário
mínimo.
No ano
passado, a estudante de licenciatura em Pedagogia pela Faculdade de Educação
Francisca Silva se juntou à luta pela adesão às cotas trans na graduação da
Universidade de São Paulo (USP). “O reitor olhou para o documento que tínhamos
feito e simplesmente ignorou alegando que não ia discutir o assunto. Nem passa
na cabeça das pessoas que isso pode acontecer em um espaço como a USP, onde o
prestígio instrumental dos rankings internacionais invisibiliza pautas como a
permanência e inclusão”.
Gabriele
Weber, pós-doutora em Física, diz que precisou se esconder para se sentir
aceita dentro do campus da Universidade de São Paulo (USP), durante 35 anos da
graduação até o pós-doutorado. “Não respeitavam meu nome social, os pronomes no
feminino. Fora os olhares e comportamentos velados que a gente não consegue
denunciar. Nem passava pela minha cabeça transicionar nesse período. Só me
senti preparada para sair do armário quando assumi uma posição de liderança.
Mesmo assim, fui excluída de grupos de pesquisa e laboratórios após assumir
publicamente que sou uma mulher”, afirma.
Para ela,
o ambiente universitário é excludente. “Até hoje, o conhecimento científico
pelo qual convivo é comandado, sobretudo, por homens brancos heterossexuais de
classe média e meia-idade. Existe uma construção social para associar as
ciências exatas, no geral, à masculinidade. Romper ou hackear isso é estar
preparada para se submeter a diversos tipos de violências”, diz.
Ø
Brasil tem um assassinato de pessoa trans a
cada 3 dias, aponta relatório
Aconteceu
dentro de casa, por um conhecido. O assassinato de Julia Nicoly Moreira da
Silva, técnica de enfermagem, em julho de 2023, infelizmente se somou a um dado
que voltou a crescer no Brasil no último ano: ao menos 145 pessoas trans foram
mortas no país de acordo com levantamento inédito da Associação Nacional de
Travestis e Transexuais (Antra), divulgado nesta segunda, 29 de janeiro. O
número leva à média de mais de um assassinato a cada três dias. Em 2022, o
total de assassinatos foi de 131, cerca de 10% a menos.
Com 34
anos na época do crime, Silva representa alguns dos perfis mais comuns de
vítimas no Brasil, segundo o levantamento da Antra. A maioria são de mulheres
trans como ela. Quase 80% não chegam a ter 35 anos de idade. E a maior parte
dos crimes acontecem com uso excessivo de violência e requintes de crueldade,
que foi o caso de técnica de enfermagem.
O crime
foi investigado pela Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense como
feminicídio. O suspeito, de 19 anos, foi preso um mês após matar Silva, com a
ajuda de um adolescente que na época tinha 17 anos. Na denúncia, o Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) destacou que “o crime foi praticado
por motivo fútil, uma vez que o denunciado foi impulsionado pelo ódio nutrido
pela vítima em razão desta ser transexual”.
Procurada
pela Pública, a Polícia Civil do Rio de Janeiro disse que “diligências
seguem em andamento para prender o outro criminoso envolvido no crime”.
Este foi o
7º relatório divulgado pela Antra, que reúne dados de assassinato de pessoas
trans desde 2017. O levantamento é feito a partir de dados governamentais, como
o Disque 100 e o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do
Ministério da Saúde, órgãos de segurança pública, processos judiciais e casos
publicados em veículos jornalísticos.
·
Assassinatos de pessoas trans no Rio de
Janeiro e Paraná dobram em um ano
O estado
que mais registrou assassinatos de pessoas trans em 2023 foi São Paulo, com 19
casos. Contudo, Rio de Janeiro e Paraná se destacam entre os que tiveram maior
aumento de mortes desde 2022. Em ambos, o número de assassinatos dobrou de um
ano para o outro.
No Rio,
onde vivia Julia Nicoly Moreira da Silva, foram registrados 16 homicídios no
ano de 2023, contra oito em 2022.Questionado sobre quais são as políticas
públicas disponíveis à população travesti, trans e não-binária, o Instituto de
Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) respondeu que atua na promoção
e garantia dos direitos da população LGBTQIAP+ por meio de programas sociais.
“O Rio Sem LGBTIfobia conta atualmente com 20 Centros de Cidadania LGBTI, que
oferecem todo o suporte necessário com atendimento social e psicológico, além
de acompanhamento jurídico dos casos necessários”, destacou o órgão.
Gab Van,
de 35 anos, é ativista e diretor da Marcha Trans e Travesti do Rio de Janeiro.
Segundo ele, a falta de políticas públicas e o conservadorismo incentivado pelo
governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) colaboraram para o aumento do
número de travestis e trans mortas no estado, pela incitação aos discursos de
ódio.
“Não tem
como falar que essas mortes [de pessoas trans e travestis] não aumentaram
devido ao ódio que o último governo deixou”, disse o diretor, sobre o que pode
explicar a ascensão no número de mortes do estado. “A maioria dessas mortes são
na Baixada, em lugares afastados do centro e que a sociedade não é ensinada e
nem educada [sobre identidade de gênero]”, completou Gab.
Para o
ativista, a vulnerabilidade da comunidade trans, travesti e não-binária não
está só ligada à falta de acesso às políticas públicas, mas também à forma como
a pessoa se identifica. “Quando a gente fala ‘corpo vulnerável’, não estamos
falando da galera [exclusivamente] pobre, mas uma pessoa que, por mais que
tenha estudo ou alguma base, o corpo continua sendo vulnerável”, pontuou.
Já no
Paraná, os homicídios de pessoas trans passaram de seis para 12 no período
2022-2023.
“O comitê
da população LGBT do Paraná tem cobrado muito que se melhore a identificação de
violência, então, talvez o resultado reflita essa melhora na identificação dos
casos, mas, o Paraná tem um histórico muito grande de conservadorismo. O
governador é um apoiador do ex-presidente Bolsonaro. Então, não é difícil
imaginar uma relação desses dados com um discurso conservador e violento”,
critica o coordenador nacional do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades
(Ibrat), Fabian Algarte, que vive no Paraná.
A Pública procurou
pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) do Estado, sob a gestão do
governador Ratinho Junior (PSD), para responder sobre quais políticas públicas
existem para reduzir as mortes de pessoas trans, travestis e não-binárias, mas
não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Os estados
do Piauí e Rondônia também tiveram o dobro de mortes de um ano para o outro,
mas ambos haviam registrado apenas um caso em 2022.
No Brasil,
como um todo, a Antra registrou 36 homicídios de pessoas trans menores de 18
anos nos últimos 7 anos. Quase 80% das vítimas tinham menos de 35 anos de
idade.
Além
disso, a maioria das vítimas é de mulheres trans, e a média de pessoas trans
negras assassinadas é de 78,7% do total.
De acordo
com Gab Van, o Brasil é um país racista, o que reverbera no alto índice de
mortalidade de pessoas trans pretas. Sobre o cenário fluminense, o ativista
destaca: “O projeto de Segurança Pública do Rio de Janeiro é [de] matar jovens
pretos, independente deles serem cis ou trans”.
·
Falta de dados públicos prejudica
informação sobre violência contra pessoas trans
O aumento
na quantidade de homicídios de pessoas trans, apontado pelo levantamento da
Antra, contrasta com a previsão de que os homicídios como um todo no Brasil
tiveram redução em 2023. Segundo projeção do
Ministério da Segurança Pública, a quantidade de assassinatos no país caiu 6%
em relação a 2022.
O
relatório também aponta que há um vazio de dados de crimes contra pessoas trans
no Brasil nas bases de órgãos públicos. “Como vem sendo insistentemente
denunciado desde a primeira edição deste dossiê, a ausência de dados
governamentais é um problema sério que precisa de atenção. Dados sobre essas
violências seguem inexistentes ou insuficientes quando comparadas com o que é
reportado pelos canais de notícias”, destaca o texto.
Apesar dos
dados de crimes, o relatório também destaca como avanços a recriação do
Conselho Nacional pelos direitos da população LGBTQIA+, um novo grupo de
trabalho no Ministério da Saúde para revisar a política de saúde para a
população trans, a criação de uma estratégia nacional de enfrentamento à
violência contra pessoas LGBTQIA+, dentre outras ações. Além disso, neste ano
de 2024, são comemorados 20 anos de visibilidade trans no país.
Fonte:
Agencia Pública
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