quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Josianne Francia Cerasoli: Quem ganha o Fla-Flu da (des)informação?

Esta reflexão começa no futebol. Talvez essa simples frase afaste alguns olhares interessados em informação, e isso comprovaria a hipótese que quero desarrumar. Eu pediria um voto de confiança. Podem apostar que o texto não será sobre tática, escores, “zaga ajustada”, cartolagem, fraudes esportivas nem mesmo zona de rebaixamento – essa ameaça de fim de campeonato que desestabiliza dezembros. Não tratará sequer de apostas. A reflexão é sobre parcialidade, sobre “lugar de voz” e seus efeitos: da incredulidade, muitas vezes duradoura, da prática dos “cancelamentos”, sempre apressados. 

É provável que a parcialidade na comunicação tenha algo a ver com o alcance limitado de cada mídia, já que muitas vezes, por razões técnicas, falavam a públicos circunscritos. O caso da transmissão radiofônica é exemplar, pelo alcance das ondas sonoras em cada frequência ser muitas vezes, digamos, paroquial, mesmo que as pautas e o interesse por elas sejam bem mais amplos.

Isso é especialmente interessante em relação ao rádio e ao esporte. O esporte sempre envolve a disputa e seus desdobramentos: derrotas, vitórias, torcidas, revanches, tabus, rivalidades, versões, questionamento à arbitragem, revoltas, hostilidades e violências até. E talvez poucas estratégias de comunicação possam ser mais eficientes nesses casos que comunicar a públicos restritos, circunscritos aos apoiadores de um dos lados da disputa. Quem chegou até aqui já entendeu que a reflexão é sobre as chamadas “bolhas” de sociabilidade e comunicação. Quero argumentar que nos acostumamos com elas de um modo tão dócil e duradouro que não conseguimos escapar a seus efeitos perversos sem muito esforço. Quero argumentar também que, adestrados por esse costume, mal percebemos que a lógica da comunicação paroquial pode ter tomado escala global com as ferramentas da web na palma da mão, colocando todos nós em risco.

Não seria justo assumir que isso começou com o rádio, nem no contexto do esporte, nem no convívio social e político cada dia mais tensionado. Mas proponho um exercício aqui para pensar sobre os riscos da permanência das bolhas a partir da longa relação entre rádio e futebol, para mostrar um pouco dos modos insidiosos de sustentação de falas sectárias e narrativas parciais, todas perigosamente naturalizadas.

Vamos ao rádio e ao futebol. A partir da década de 1930, o rádio elevou o prestígio e o interesse pelo futebol em várias partes do mundo. No Brasil, desde os anos 1920 era comum nos programas radiofônicos a transmissão de reportagens sobre os jogos. Eram narrativas posteriores, com uma interpretação, portanto. Mas uma transmissão integral e ao vivo ocorre pela primeira vez em 1931, quando o jornalista Nicolau Tuma narrou uma partida inteira, em cada detalhe. O jogo entre as seleções de São Paulo e do Paraná foi transmitido pela Rádio Educativa paulista, narrado lance a lance, gol a gol. Hoje, a narração em tempo real das partidas de futebol parece tão usual e popularizada que não se julgaria necessária a instrução didática de Tuma ao iniciar a partida: “Imagine uma caixinha de fósforo ou um retângulo. Divida ao meio e teremos os dois lados do campo”. Esse capítulo interessante da história da radiodifusão está documentado em muitas pesquisas, lembradas na matéria sobre o Centenário do rádio no Brasil, pela EBC, em 2022.

Entre as muitas tensões imagináveis nessa primeira experiência, certamente uma delas se dissipou quando o placar foi consolidado: 6 a 4 para os paulistas. Narrando para paulistas em uma radiotransmissão de alcance regional, não deve ter sido sem alívio que Tuma fechou a transmissão pioneira. Melhor poder anunciar a vitória. A questão é que o “lugar de voz” parece ter também se consolidado de modo tão frequente que simplesmente nem é relativizado quando as transmissões têm alcance bem mais amplo que o regional. A rádio continua a narrar para um público imaginado, regional, quase tão restrito quanto uma caixinha de fósforo, mesmo quando é revolucionada pelas imagens da transmissão televisiva e via streaming. A narrativa é sempre parcial.

•        A Macaquinha não pode evitar a derrota

Aqui será preciso um curto parêntese lembrando aspectos da cultura futebolística. Se você acompanha, como parte de uma fiel torcida, equipes de futebol muito populares e com alcance massivo, como Flamengo e Corinthians, é bem provável que muito raramente terá se incomodado com a parcialidade das transmissões. Você está na caixinha de fósforo, na bolha imaginada pela narração espelhada pela transmissão radiofônica regional. Ela quase sempre favorece a torcida de maior alcance. Os comentários, que aos poucos passaram a povoar com relativo didatismo as transmissões, acompanham essa parcialidade, e dificilmente analisam aspectos táticos dos dois lados da disputa ou ousam fazer previsões imparciais sobre as mudanças que as equipes deveriam operar para garantir sucesso. A narração e a análise insistirão em falar para a massa mobilizada naquele espetáculo. Se em São Paulo, farão como Tuma: vão se irmanar com os paulistas.

Mas quem acompanha apaixonadamente equipes pequenas, regionais, pouco competitivas ou até em extinção, mesmo se apreciar muito a dinâmica do rádio e se interessar muito por futebol, vai se descobrir em algum momento da partida com mais irritação diante da narrativa do que diante da frágil qualidade da equipe. Uma torcedora da Ponte Preta, como eu, que acompanhou tantos vice-campeonatos com derrotas diante dos chamados “times grandes” certamente já desligou os aparelhos para não ouvir a narração analisando apenas um lado do campo.

Como é difícil estar ao lado de quem não tem “lugar de voz”! E aqui é importante deixar claro que não me refiro a “lugar de fala”, expressão que não escapa nem a polêmicas nem a disputas e radicalismos, tão graves que mereceria outro texto. A questão aqui é o “lugar de voz”, que parece inverter a expressão e resumir a mensagem à suposta expectativa de quem ouve: a voz do lugar. E quando a voz do lugar ressoa na maioria, misturada à paixão de torcida e à sanha capitalista do sem número de patrocínios esportivos explorando essa paixão e essa voz, a Ponte Preta não pode evitar a derrota de ter sua pauta e desejos silenciados. Lugar sem voz. Bolha diminuta e diminuída em cada desconsideração. É exatamente assim que operam os temidos e poderosos algoritmos ativos nas redes sociais, patrocinados por interesses menos ou mais obscuros: inundam nossas telas da voz do lugar, até parecer que não há adversário nem derrota possível, contrariando toda lógica do jogo democrático.

•        Perigo da história única

A parcialidade não é, em si, o problema. A questão é a sensibilidade que se cultiva quando não se assume que a parcialidade existe e age cotidianamente. E claro que rádio e futebol entraram aqui como uma analogia. O que preocupa mais no Fla-Flu da (des)informação é a forma oculta como a parcialidade incide sobre nossas rotinas e o modo perverso como manipula paixões.

E, para isso, quanto mais um suposto jogo de opostos for incentivado, quanto mais o artifício da rivalidade for alimentado, mais a parcialidade encontrará combustível nas paixões, mal disfarçadas de convicções e intolerâncias. É uma lente de Fla-Flu em tudo. Pró-Israel X Pró-Palestina, Kitkat X Bis, ou a última polaridade feita thrend esta semana são apenas capítulos recentes desse percurso que, por analogia, saiu da caixinha no campo do extinto Floresta em 1931: a narrativa da história única.

Não há outro modo de desarmar essa bomba-relógio a não ser examinando de perto seu mecanismo e seus efeitos. Não há vitória quando se anula outra(s) voz(es) ou se “cancela” o outro lado. Em janeiro deste ano, vivemos no Brasil um momento de extrema tensão na qual a narrativa do Fla-Flu foi incendiária – e, a meu ver, continua em brasa. Na época, em uma entrevista sobre os destinos desejáveis e possíveis para nossa vitalidade democrática, pensava, preocupada, nos perigos dos extremismos e das polarizações quando fazem desaparecer o outro da narrativa.

Muito a se pensar e a se construir. Mas um ponto que me intriga há muito tempo está na paradoxal repercussão de uma reflexão fundamental sobre o perigo desse desaparecimento. O Perigo de uma História Única é a primeira palestra feita pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie durante o evento TED Talks, em 2009. Com mais de 35 milhões de visualizações, é um dos 25 mais vistos na plataforma oficial desde o lançamento do projeto de difusão Technology, Entertainment and Design (TED) em 1984. E me intriga pensar o que estariam pensando, de dentro de suas caixinhas, essas milhões de mentes quando a veem dizer: “A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história.”

 

       Para o bem-estar do nosso país, precisamos examinar os fatos, por Claudia Wanderley

 

Para o nosso bem-estar, para o bem-estar de nossas famílias, precisamos fazer juntos e publicamente algumas correções de fatos, e a tecnologia do DNA pode nos ajudar. Precisamos conversar.

Há muitos anos as decisões de ficar em silêncio e ausências de pessoas e acontecimentos na esfera pública me chamam a atenção na vida brasileira. É claro que são objetos abstratos, porque o silêncio não tem um tópico por si, e a ausência também é um operador conceitual, ambos amplamente utilizados no regime militar e mais tarde nos acordos do desenho do processo de anistia. Mas nenhum dos dois tem uma realidade objetiva. A realidade objetiva é que falta algo que a gente sabe que deveria estar presente, e isto que gostaríamos de ver presente, ou discutido, ou cuidado é o mais importante.

Para citar algumas faltas que me tocam, e há várias outras… Não contamos o que houve com as etnias indígenas que estavam nos territórios que foram ocupados, muito menos explicitamos quem eram, o que pensavam, o que houve. A proibição de falar qualquer idioma que não fosse o português dificulta o entendimento da diversidade cultural do país. Durante o período do tráfico de africanos escravizados para o Brasil, havia um ritual de esquecimento feito na saída do continente africano. Ao chegar aqui os africanos eram organizados em grupos que não falavam o mesmo idioma, para não se entenderem e terem maior dificuldade de se organizar em resistência. A promoção da amnésia e do silêncio é uma prática muito familiar para os brasileiros, estratégia da formação do país.

Pergunta Alencastro em 2001: “A sociedade civil impediria hoje um ministro da Fazenda de garantir a um eventual ditador que um texto como o AI-5 pudesse ser “tranquilamente editado”? Pode ser que sim. Na circunstância, a memória dos “desaparecidos” ficaria de fato circunscrita ao luto mal resolvido dos sobreviventes.” E é uma pergunta que ecoa em 2023, considerando com tristeza a situação de genocídio à qual chegamos na pandemia aqui no país, com 700mil mortos de covid-19 e notícias falsas sobre vacinas e medicamentos. Os dados das pessoas mortas por covid precisaram ser levantados por um consórcio independente formado pela imprensa para reagir ao fato de que o governo parou de fazer a contabilidade das vítimas, e foi retirando gradativamente os dados de referência do que estava acontecendo. Mais uma vez, sem os dados, as vítimas desaparecem, os debates públicos vão sendo inviabilizados.

Este ano propus uma mesa de debate no evento de letramento midiático informacional e diálogo intercultural, MILWEEK2023, com o tema Memória, DNA e Censura. Minha hipótese é que boa parte do processo de desinformação que nos assolou no Brasil nos últimos anos tem a ver com a falta de debate público sobre as conjunturas brasileiras e particularmente sobre questões que hoje ligamos ao tema de memória, verdade e justiça. Porque se estamos em contato com as discussões das lideranças dos movimentos de cada região, com as reflexões desenvolvidas na universidade, com a compreensão dos jornalistas das atividades da midia no Brasil, com os filósofos que não estão na carreira acadêmica, mas estão pensando o que está ocorrendo a sua volta (que Michel Debrun, lendo Gramsci, chama de filósofos orgânicos) algumas [des]informações passam a ser imediatamente postas em cheque.

Não cultivar a memória das experiências duras que passamos, assim como não falar da violência do estado, permite que essas práticas se consolidem à sombra de nossa dificuldade de pautar estas questões em um âmbito mais amplo. A triste realidade é que muitas vezes se nós poderíamos falar sobre isso é porque são pessoas próximas, funcionários públicos, empresários, chefes, colegas, até mesmo em alguns casos familiares que participaram de atividades ilícitas ou violentas do regime autoritário. A gente se livra de uma dor de cabeça momentânea ficando quieto, mas de certa forma dá guarita para que essas práticas continuem e se multipliquem de maneira velada do lado da gente. A proposta então é um esforço de dialogar sobre questões que nos habituamos a evitar, neste caso o diálogo como um tipo de prevenção contra a escalada da desinformação, que usa assuntos sensíveis para se espalhar e para nos dividir.

Durante a pandemia, soube que havia um Instituto de Pesquisa de DNA Forense da Polícia Federal em Brasília, encarregado de encontrar pessoas perdidas através do DNA. Pensei em propor no evento uma mesa do coordenador do Instituto com o jornalista que escreveu dois livros considerando a prática de roubo de bebês durante a ditadura militar brasileira. Imaginei que os “bebês” do livro do Prof. Eduardo poderiam  fazer a coleta de DNA com o Prof. Samuel, para poderem reencontrar suas famílias de origem, caso ainda não tenham encontrado.

Meu primeiro pensamento, sabendo desse laboratório, é que todos nós poderíamos fazer as pazes com as mulheres indígenas e homens indígenas que fazem parte de nossa ancestralidade, conhecê-los um pouco mais. Já que não podemos vê-los em nossos sobrenomes, poderíamos vê-los em um banco de DNA, e talvez refazer o desenho de nossa diversidade [linguística, cultural, epistemológica e, porque não?] genética. Também me ocorreu criar uma parceria com a União Africana ou com o movimento de Pan-Africanismo, para que quem tem ascendência africana possa ter uma idéia de suas próprias raízes, mesmo que seja regionalmente ou etnicamente. Isso deveria ser um direito de todos os afro-brasileiros: poder retomar um laço material [estou me referindo à materialidade do DNA, neste caso] com seu continente de origem.

O trabalho que o Prof. Samuel Ferreira desenvolve é bem mais objetivo e prático do que eu imaginei. E ele precisa de voluntários, pessoas que tenham parentes desaparecidos que se apresentem para coleta de DNA. Se você tem um parente desaparecido, deve fazer um boletim avisando do desaparecimento de seu parente sanguíneo, e se apresentar em seu estado para coleta de DNA.  Com o DNA da pessoa que “perdeu” um parente, o laboratório monta sua base de dados, como quando encontramos as cartas iguais em um jogo de memória. Assim, tem o DNA da família coletado. Caso apareça alguém perdido com um DNA afim, a análise avisa da semelhança, e a família é contatada. Por exemplo, se chega a notícia de que há alguém que não lembra quem é, ou que está perdido, ou mesmo no caso de se encontrar um corpo sem identificação, quando coletam o DNA dessa pessoa “perdida” a informação do DNA pode ser comparada com o DNA de um membro da família que já foi coletado, e está na base de dados do laboratório. E assim, a pessoa é reintegrada na família dela.

Estava também o jornalista Eduardo Reina. O Prof. Eduardo escreveu um livro de ficção chamado “Depois da Rua Tutóia” contando a história do sequestro de um bebê por militares durante a ditadura, em São Paulo. Depois escreveu o “Cativeiro sem Fim” que são casos de bebês que foram efetivamente sequestrados no período da ditadura militar no Brasil, que ele pesquisou. É um esforço de trazer essas informações para arena de debates públicos de forma a entendermos melhor o que ocorreu no país através do jornalismo combinado com a literatura. Este trabalho está também em uma exposição sobre o livro “Cativeiro sem Fim” no Museu das Memórias (in)possíveis em Porto Alegre <https://museu.appoa.org.br/site/exposicao-cativeiro-sem-fim/>, e há alguns depoimentos gravados disponíveis, que são muito tristes e também são bacanas porque nos dão a dimensão de como é importante pensarmos nossa história, e cultivarmos nossa memória com todas as dificuldades que temos para fazer isso hoje ainda. Dá uma olhada em como foi a conversa: <https://www.youtube.com/live/YFSwe_FlD4Y?si=7bWHTjvyFoe1ItnE>

Vamos pensar a desinformação no Brasil e pautar juntos fatos que precisamos encarar para o bem-estar coletivo.

 

Fonte: Laboratório da Desinformação

 

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