"Fraterno entre humanos e com natureza: a salvação da Terra",
apela Leonardo Boff
Aquilo que para os olhos do mundo só se tornou
possível nos últimos anos, com os documentos e declarações de papa Francisco, o
teólogo brasileiro Leonardo Boff já fazia desde os anos 80 e 90: mesclar
teologia com ecologia. Ou, nas palavras dele, fazer ecoteologia da libertação.
Em entrevista à DW, Boff diz que a consolidação
inaugural dessa forma de teorizar questões e propor soluções para o mundo, sob
o prisma ambiental, se deu com seu livro Ecologia: grito da Terra, grito dos
pobres, cuja primeira edição data de 1995. "Nele, tento desenvolver as
várias tendências da ecologia em diálogo com as modernas ciências",
comenta.
Frequentemente citado por vaticanistas como
consultor do papa para assuntos do tipo, o teólogo brasileiro é humilde ao
lembrar que Francisco tem também "outras contribuições" e
"outras fontes de inspiração". Mas segue teorizando a respeito,
aprofundando as questões.
Em Terra Madura, livro que chegou às livrarias
neste mês, Boff propõe que a humanidade abdique da "arrogância de querer
ser Deus" e se coloque no mesmo patamar das demais criaturas.
• Vamos
partir do tema do seu novo livro, Terra Madura. O senhor acredita que um mundo
menos antropocêntrico pode ser a solução para a tragédia climática?
Leonardo Boff: O núcleo principal da crise de nosso
paradigma reside no fato de ter colocado o ser humano acima e fora da natureza,
apresentando-o como dominus, seu mestre e dono. Os pais fundadores dessa visão
de mundo, [os filósofos] Francis Bacon, Kepler, Descartes e outros, entenderam
a Terra como uma realidade meramente extensa e sem propósito, posta a serviço
do ser humano, que poderia fazer dela o que quisesse.
O eixo estruturador dessa leitura da realidade foi
a vontade de poder, e o poder entendido como capacidade de dominação da Terra,
dos povos — da África, América do Sul e parte da Ásia —, das classes, da
natureza, da matéria […] e da vida, até seu código genético. Imaginou-se o
pequeno deus na Terra. Essa postura criou a tecnociência, como o grande
instrumento de dominação. Trouxe inegáveis vantagens para a vida humana, como o
antibiótico e outras comodidades para a vida. Mas simultaneamente criou o princípio
de autodestruição com armas químicas, biológicas e nucleares, com as quais pode
exterminar a si mesmo e destruir toda a vida humana no planeta, sem deixar
ninguém para contar a história.
A outra alternativa seria ter entendido o ser
humano como parte da natureza, por ter a mesma origem do barro originário da
Terra e, o que sabemos hoje cientificamente, pelo fato de possuirmos o mesmo
código genético de base junto com os demais seres vivos: os mesmos 20
aminoácidos e as mesmas quatro bases nitrogenadas. Tal constatação o faria
sentir-se irmão e irmã de todos os demais seres vivos, como foi visto pela
Carta da Terra [declaração de princípios éticos para uma sociedade justa] e
pelas duas encíclicas ecológicas do papa Francisco [Laudato Si', de 2015; e
Fratelli Tutti, de 2020]. Todos irmãos e irmãs: entre os humanos e entre todos
os demais seres vivos da natureza. Esse paradigma do frater está sendo proposto
como alternativa ao dominus. Se for tomado a sério e se for entendido como
outro paradigma de relacionamento, terno e fraterno, entre os humanos e estes
com toda a natureza, significaria o caminho de salvação da Terra viva e,
talvez, o futuro de nossa civilização.
• O
senhor foi apontado como um dos consultores do papa Francisco, principalmente
quando ocorreu a publicação da encíclica Laudato Si'. Acredita que há uma
convergência entre os dois, no sentido de que ambos partem do cristianismo e
repensam o papel do homem frente à natureza?
Há duas novidades na encíclica Laudato Si'. A
primeira é [que se trata de] um texto dirigido a toda a humanidade, e não
somente aos cristãos. O papa deu-se conta da urgência da questão ecológica,
claramente expressa na Fratelli Tutti com esta grave advertência: "estamos
no mesmo barco: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva". A segunda
novidade reside no fato de ter assumido os resultados mais seguros das ciências
da vida e da Terra e tê-los assumido como fio condutor de todo o discurso, estruturado
numa ecologia integral e não meramente verde: ambiental, política, econômica,
cultural e espiritual. Como afirmaram eminentes ecólogos: com esse texto o papa
se colocou na ponta da discussão ecológica mundial. O papa bebeu de várias
fontes, possivelmente de um livro meu com o qual teria inaugurado uma
ecoteologia da libertação já nos anos 80. Nele, tento desenvolver as várias
tendências da ecologia em diálogo com as modernas ciências. Mas o papa
assimilou outras contribuições e de outras fontes de inspiração, também daquela
tipicamente cristã.
• Essa
preocupação ecológica fez do papa o primeiro sumo pontífice a demonstrar
publicamente preocupações ambientais, inclusive valorizando eventos como a
Conferência do Clima da ONU (COP). Nesse sentido, ele é um papa que desce do
outrora onipotente trono de Pedro e dialoga com outros de igual para igual? Ou
isso é resultado do senso de urgência que o tema exige?
Não devemos esquecer que o papa Francisco se
inscreve dentro da teologia da libertação de vertente argentina, [corrente
católica] que enfatiza a libertação do povo oprimido e da cultura silenciada.
Esse tipo de teologia, através do papa Francisco, chegou ao centro da
cristandade, representada pelo Vaticano e pelos discursos do próprio pontífice.
Característica da teologia da libertação, em suas várias vertentes, é sempre
partir da realidade concreta, do ver. Em função desse "ver", [ele]
tem dialogado com as várias ciências, do humano, do social, do antropológico e
da questão dos sistemas de produção, especialmente do capitalismo, responsável
maior pelas desigualdades sociais.
Esse ver exige um julgar analítico sério a partir
das ciências e também a partir dos dados bíblicos e teológicos. Daí se deriva a
parte mais importante que é o agir, de forma libertadora e não apenas
reformista. O papa articula suas intervenções sempre dentro deste rito
metodológico. Por isso, possui boa informação e conhecimento dos vários dados
científicos. Raramente produz um discurso somente para o interno da Igreja, mas
sempre articulando-se com a realidade do mundo, com sua complexidade, conflitos
e esperanças. Isso é novo com referência aos documentos pontifícios que se
baseavam praticamente sempre nas fontes internas da fé cristã, da Bíblia, da
tradição teológica e especialmente da tradição dos pronunciamentos pontifícios.
Eis uma das razões por que este papa é ouvido pelo
mundo secular. Ocupa-se e preocupa-se mais com os destinos da humanidade, do
planeta Terra do que simplesmente com os problemas internos da Igreja. Por essa
razão seu propósito era participar na COP28 em Dubai para oferecer sua
colaboração acerca do grave problema do aquecimento já irreversível do planeta
Terra. [Depois de confirmar que participaria, Francisco cancelou a ida ao
evento por problemas de saúde.]
• O
senhor acompanhou as discussões do Sínodo sobre a Amazônia? O quanto avançou e
o quanto poderia ter avançado mais?
O simples fato de ter convocado um Sínodo sobre a
Amazônia especificamente nos dá a dimensão do interesse do papa Francisco pelos
destinos do futuro da Terra viva. Sabe que o equilíbrio climático e a
perpetuidade da vida sobre este planeta dependem, em grande parte, como é
tratado o imenso bioma amazônico. Este recobre oito países e sua preservação é
fundamental para o futuro da vida humana. Simultaneamente, colocou também a
questão da evangelização: como fazer um encontro com as centenas de etnias de povos
originários, com suas tradições e sabedoria ancestral com a mensagem
evangélica?
Sua tese de base é sempre que esses povos devem
incorporar no quadro de suas culturas a mensagem cristã, assim como fizeram os
gregos e os romanos, nos inícios do cristianismo, que deram origem ao que é
hoje a Igreja Católica. Sua intenção originária era que homens casados e
aprovados pela comunidade, os viri probati, fossem ordenados e pudessem
presidir as comunidades como o fazem os padres atualmente. Mais adiante pensou
em mudar, ao invés de viri probati, se mudasse para personae probatae [pessoas
aprovadas], o que abriria caminho para a ordenação de mulheres ao sacerdócio.
Havia até prometido aos bispos vivendo na Amazônia que suscitaria esta questão
no Sínodo. Mas logo deu-se conta da resistência fortíssima de membros do
governo central da Igreja […] e de outros grupos mais conservadores. Isso
poderia gerar uma divisão na Igreja. E desistiu da ideia.
• Como
entusiasta e participante ativo do Fórum Social Mundial, sobretudo das
primeiras edições, como o senhor vê o papel desse espaço hoje, neste mundo cada
vez mais polarizado e com figuras extremistas surgindo em diversos países?
Vejo com pesar que os Fóruns Sociais Mundiais estão
perdendo cada vez mais força. Isso se deve a uma discussão interna nunca
resolvida: seria um encontro dos movimentos sociais mundiais para trocarem
experiências ou seria um espaço para conjuntamente tomarem algumas decisões no
sentido de se confrontarem com o sistema de dominação mundial pela ordem
capitalista? Está prevalecendo a primeira versão. Isso tem desanimado a muitos
grupos que veem anuladas as ações que obrigariam os poderosos do mundo a colocar
na sua agenda a temática mundial dos pobres, dos excluídos e portadores de
alternativas ao paradigma vigente. Mesmo assim, tem valido a pena, pois todos
se dão conta de que devemos resistir, denunciar e rejeitar as propostas dos
donos do poder e do dinheiro, que não tomam em conta o destino de grande parte
da humanidade.
O
negacionismo é expulso da universidade. Por Moisés Mendes
Professores, estudantes e servidores de todas as
áreas da universidade pública brasileira já têm base de inspiração para tomar
decisões contra gestões autoritárias, a partir do que aconteceu na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
A comunidade acadêmica de uma das maiores
universidades brasileiras decidiu mandar o reitor embora. Se o Ministério da
Educação confirmar o que foi decidido pelo Conselho Universitário da UFRGS na
semana passada, o professor Carlos André Bulhões Mendes deve deixar a reitoria
um ano antes de completar o mandato.
Outras universidades sequestradas pelos abusos do
bolsonarismo terão a mesma determinação, se estiverem enfrentando situação
semelhante?
A UFRGS vai se livrar de um gestor acusado de
desrespeitar instâncias consultivas e deliberativas, impor ‘reformas’ sumárias
nas estruturas de áreas da educação e ser pouco transparente em suas decisões.
A UFRGS está se livrando, como consta no relatório
de 90 páginas encaminhado ao MEC, de um gestor que se revelou autoritário e
omisso e também foi negacionista em meio à pandemia.
O negacionismo pode parecer um detalhe entre tantos
desmandos que o conselho examinou, mas foi o que também deu essência à gestão
em julgamento. A UFRGS era comandada por um líder com atitudes que negavam a
ciência.
Parece esdrúxulo, mas é isso mesmo. Uma universidade
federal vem sendo gerida desde setembro de 2020 por um reitor que afrontou
orientações elementares sobre medidas de contenção da pandemia.
O engenheiro civil Carlos André Bulhões Mendes é
acusado de ter determinado a extinção do Comitê de Covid da universidade e
permitido que o acesso à UFRGS, no retorno ao trabalho presencial, fosse aberto
a quem não se vacinou.
Mendes entendia que, por não ser lei, o passaporte
vacinal não deveria ser exigido. Era evidente a intenção de acompanhar as
orientações de Bolsonaro.
Mendes e a vice-reitora Patrícia Pranke foram
escolhidos pelo negacionista-chefe de Brasília como os últimos, por votação
interna, de uma lista tríplice. Tinham o aval do deputado Bibo Nunes (PL) e da
minoria da direita acadêmica.
O conselho decidiu agora que eles devem abandonar
seus cargos. Foram 60 votos a dois, com três abstenções. A decisão poderia ser,
como acontece nessa e em outras áreas, resultado do confronto de entendimentos
sobre governança e transparência.
É bem mais do que isso, até porque alguns desmandos
foram encaminhados à análise do Ministério Públicos Federal. O Conselho
Universitário decidiu que a UFRGS deve interromper os danos do autoritarismo
que a extrema direita impôs também à universidade pública por seus prepostos de
dentro e de fora do campus.
E aqui digo eu: a comunidade acadêmica finalmente
se livrou do bolsonarismo (depois de outras tentativas, ainda no governo
fascista), agora por deliberação do conselho como instância superior, para
salvar a alma da UFRGS e seu histórico de resistência.
Durante a ditadura, mais de 40 professores foram
mandados embora da UFRGS pelos expurgos sumários dos generais. Quantos seriam
expurgados se Bolsonaro tivesse sido reeleito, talvez não com os mesmos
métodos, mas pelas mais variadas formas de perseguição e aniquilamento?
Que o reitor e a sua vice se defendam em Brasília,
até porque a bioquímica e pesquisadora Patrícia Pranke, doutora em genética e
biologia molecular, terá a chance de falar das discordâncias de fundo com
Mendes.
E como ficam outras universidades e espaços da
educação tomados por capatazes de Bolsonaro que exercem o poder absoluto como
se gerissem extensões do gabinete do ódio? A UFRGS mostrou o caminho.
O bolsonarismo derrotado na eleição e na tentativa
de golpe não pode continuar impondo seus métodos de destruição da educação,
muito menos dentro das universidades públicas.
Fonte: Deutsche Welle/Brasil 247
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