Representantes da Scania Brasil usam agromilícia para expulsar
camponeses de terras no Mato Grosso
“Ele [o segurança] me
xingava sempre: ‘grileira safada, merece três tiros
na cara’. A gente passava caladinho. E eles lá com as armas nas mãos, rodava a
arma no dedo, às vezes dava um tiro pra assustar”, contou Gisele. “A
última vez eles me atacaram com um revólver, o pessoal juntou, fez um rebuliço.
Era muita ameaça. Ele me falou que se desse um tiro na minha cara não ia
acontecer nada, porque estava protegido, tinha delegado a favor dele, um bom
advogado e que a fazenda podia proteger. E eu era pior que um cachorro,
entendeu?”, relatou Marcos
Os depoimentos foram dados ao Intercept por camponeses de Vila
Rica e Santa Terezinha, municípios da região Araguaia, no noroeste do Mato
Grosso, próxima às divisas do Pará e Tocantins. Dois assentamentos travam uma
batalha contra a Fazenda Fartura por 5 mil hectares de terra.
Segundo o Instituto de Terras do Mato Grosso, o
Intermat, órgão estadual de políticas fundiárias e gestão de informações
cartográficas, a área de conflito pertence ao estado. Ambos os grupos foram ou
são açoitados diariamente por seguranças da ATA – empresa de segurança privada
que atua como uma milícia armada –, contratados por Wilson Lemos de Moraes
Neto, herdeiro do império da Supergasbras.
Ainda que os relatórios do próprio Intermat mostrem
que a fazenda se diz erroneamente donas de algumas áreas públicas, o Fórum da
Comarca de Vila Rica tende a favorecer nas disputas judiciais pela terra a
família Lemos de Moraes, que tem uma longa história de poder na região.
O Intercept consultou
três processos na comarca de Vila Rica sobre o caso e, em todos, o mesmo juiz,
Ivan Lúcio Amarante, deu decisão favorável aos empresários. A
Corregedoria-Geral da Justiça não comentou o caso – apenas esclareceu que
“conforme determinação do Conselho Nacional de Justiça, magistrados se
manifestam sobre casos em andamento apenas no processo”. E informou que todos
os casos são públicos e, por isso, os fundamentos das decisões podem ser
checados no site do PJe.
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Berço de ouro até assumir
grupo Scania
A história de riqueza de Wilson Lemos de Moraes vem
de berço e cresce a partir do seu largo apetite para os negócios. Nos anos
1930, herdou suas primeiras terras da mãe, em Minas Gerais, ainda na
adolescência. Começou a criar gado aos 17 anos, mas precisou vender o rebanho
pouco tempo depois, quando os preços despencaram.
Ele se casou, mudou para São Sebastião do Paraíso,
em Minas Gerais, e comprou uma revendedora da Ford. Também começou a acumular
mais bens: uma fazenda boa para cultivo de café, outra agência de automóveis,
mais uma fazenda. Em 1955, o jovem herdeiro regulamentou e batizou de WLM as
empresas da família, numa sigla própria do seu nome. O grupo atuava no segmento
automotivo, como concessionária da marca Scania, e também no agronegócio.
Naquele ano, ele se aventurou também em um novo
empreendimento: comprou a Paterno & Cia Ltda, que passa a se chamar
Supergaz Engarrafadora e Distribuidora de Gás, em Campinas, interior de São
Paulo, e entrou no comércio de distribuição de gás engarrafado. As
indústrias brasileiras tinham começado a produzir o Gás Liquefeito de Petróleo,
o GLP. Em menos de 20 anos de aberta, com a soma de aquisições de outras
empresas do setor, como a Liquigás e Ultragaz, a empresa se tornou a holding
Supergasbras Indústria e Comércio.
A Supergasbras deixou o portfólio dos Lemos de
Moraes, em 2004, após a venda das
ações para o grupo holandês SHV, por US$ 100
milhões, mas o império segue de pé com a WLM. Segundo consta no site da empresa,
a Fartura Agropecuária S.A. e a Itapura Agropecuária Ltda, que pertencem ao
grupo, acumulam cerca de 100 mil hectares de fazendas entre o sul do Pará e o
noroeste do Mato Grosso. E é ali o cenário dos conflitos fundiários e de
grilagem de terra dos herdeiros.
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Agromilícia e ação na
justiça
Durante a ditadura militar no Brasil, nos anos
1970, as regiões centro-oeste e norte do país tiveram um boom agropecuário. Os
militares defendiam a ocupação e modernização daqueles territórios e ofertavam
terras a preços módicos. Além do legado de destruição ao meio ambiente e
agressões aos povos indígenas, a política abriu espaço para ocupações ilegais.
Isso porque nem todos conseguiram quitar suas dívidas com o estado e as terras
voltaram para o governo. Outras áreas sequer chegaram a ser vendidas.
Só que o descontrole abriu espaço de sobra para os
latifúndios, grilagem de terra e conflitos. “Essas terras públicas, que são
chamadas de terras devolutas, das quais o Mato Grosso é imensamente
constituído, são griladas por grandes grupos agropecuários. Eles fazem um
deslocamento de origem nas escrituras”, me disse um membro da Comissão
Pastoral da Terra de Mato Grosso, que pediu anonimato. “Tem um esquema que,
simplificando, é assim: eles sobrepõem documentos e defendem que determinadas
áreas pertencem à escritura. Mas quando você bate o dado com a imagem de
satélite, vê que a área fica em outro lugar. Essa prática de grilagem é muito
comum aqui”.
Carlos Pelissioli foi um desses homens que não
conseguiu quitar as dívidas. E a área dele, a gleba Pelissioli, ficou à deriva
– mas não por muito tempo. Os Lemos de Moraes logo abocanharam o terreno, de
aproximadamente de 5 mil hectares.
Em 2008, no entanto, camponeses ocuparam a área –
segundo contam, sempre souberam que as terras eram devolutas – e, assim,
iniciaram uma disputa contra os Lemos de Moraes.
Hoje, 300 pessoas se organizam na Associação dos
Pequenos Produtores Rurais de Santa Terezinha e produzem mais de 16 mil litros
de leite por mês, com três resfriadores cedidos pelo programa estadual Mais
Alimento e outro cedido por um laticínio privado. Criam ainda gado de corte,
possuem criatório de peixes e também cuidam de ovelhas e porcos. Plantam ainda
mandioca para subsistência e possuem um pequeno comércio na vila, além de uma
escola local com capacidade para 40 alunos.
Outro assentamento, de 80 a 100 famílias, ocupou
também uma área próxima, ainda na gleba Pelissioli, mas precisou sair às
pressas no final de 2021. Um processo da Itapura Agropecuária Ltda, controlada
pela WLM, contra a Associação dos Produtores Rurais de Agricultura Familiar da
Gleba Esperança do Amanhecer terminou com o despejo de todos – embora o
processo ainda esteja correndo na justiça.
Para enfraquecer os camponeses e retirar os
acampamentos, os bilionários passaram a atuar em uma dupla função. Em uma ponta, contrataram
seguranças do grupo ATA para combater aqueles que consideram “invasores”.
e, na outra, abriram batalhas judiciais contra eles.
Os seguranças contratados pela WLM parecem agir
como policiais ou agentes da lei, conforme consta nos relatos de moradores e de
órgãos de direitos humanos locais, como o Centro de Direitos Humanos Dom Pedro
Casaldáliga e o Conselho Estadual dos Direitos Humanos.
“Há cerca de três meses, a ATA fez apreensões
totalmente irregulares, como a de uma moto nunca mais recuperada pelo
proprietário, exercendo funções de policiais. Colocam fogo criminoso (na
tentativa de nos incriminar)”, narrou em nota a Associação dos Pequenos
Produtores Rurais de Santa Terezinha em setembro de 2022. “Os ditos seguranças
pedem documentos para transeuntes, veículos, apreendem madeira e andam com
veículos totalmente descaracterizados, sem placa, e muitas vezes encapuzados e
armados fora da área de serviço”.
No processo, a empresa de segurança se defendeu
dizendo que só recorre à força física – e às armas – quando é atacada pelos
moradores da gleba. Eles também os acusam de corte e comércio ilegal de madeira
e porte de armas.
Em 2021, a Polícia Federal fiscalizou a atuação da
ATA, e, apesar de não ter encontrado nenhuma irregularidade administrativa,
recomendou algumas mudanças, entre elas “a impossibilidade de restrição de
locomoção de pessoas, bem como a proibição de realização de busca pessoal”.
Alertou ainda sobre as “instabilidade ocasionada por questões fundiárias” e
pela proximidade dos assentamentos aos postos de vigilância da ATA, que poderia
gerar novos confrontos.
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Justiça cega
Gisele, a moradora sob anonimato cujo depoimento
abre essa reportagem, contou que em uma das vezes que passava pela guarita da
ATA, os seguranças deram três tiros para o alto. Assustada, correu para casa.
Ela abandonou o assentamento antes mesmo que a ordem de despejo fosse emitida
pelo juiz Ivan Lúcio Amarante, da 2ª Vara Cível da Comarca de Vila Rica, em
setembro de 2021.
O Intercept localizou o processo da Itapura
Agropecuária LTDA contra a Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Agricultura
Familiar da Gleba Esperança do Amanhecer. Nele, com base em boletins de
ocorrência feitos naquele mesmo ano por seguranças da ATA, Ivan Lúcio Amarante
acatou o pedido de urgência da empresa. Os registros policiais eram, para ele,
prova suficiente que a ocupação havia começado a menos de um ano e, portanto,
como manda a lei, ele poderia agilizar a liminar de reintegração da área antes
de qualquer outro processo referente à posse ser finalizado.
A Defensoria Pública do Estado também não foi
acionada de imediato. A defesa da Itapura Agronegócios, inclusive, se
posicionou contrária à entrada do órgão. “Os fatos apontam que ao invés de
vulneráveis, os invasores são pessoas violentas, agressivas e com potencial
financeiro e político”, escreveu em petição o advogado da empresa, Maurozan
Cardoso Silva.
Curiosamente, Silva já atuou, em 2016, a favor de
supostos posseiros presos em flagrante por ocuparem terras da Fazenda Elagro,
que também pertence ao grupo Fartura Agropecuária SA, de Lemos de Moraes.
Naquela ocasião, segundo consta no inquérito, o advogado alegou que se tratava
de “um grupo de pessoas [que] resolveram ocupar área de terra reivindicada para
reforma agrária e que juntamente com diversas pessoas o Paciente [seu cliente]
para lá acorreu, com o intuito de conseguir um pedaço de terra para trabalhar e
acabou preso, sem que, contra ele, houvesse qualquer imputação penal.”
Segundo fontes ouvidas pelo Intercept, é comum que o poder
financeiro das grandes empresas atraia os advogados, que acabam por mudar de
lado. Ou que atuem legalmente a favor dos posseiros, mas joguem contra seus
clientes, na surdina, dizem.
As evidências apontadas por Silva para provar que
os fundadores da associação “não eram pequenos agricultores rurais, como se
autointitulam” são curiosos. Ele cita, por exemplo, o nome de Jurandir Lourenço
Fernandes, que foi candidato a vereador em Vila Rica, em 2020, e faz parte da
Associação Esperança do Amanhecer. Fernandes de fato se candidatou naquele ano,
e ganhou a suplência, mas os gastos na campanha passam longe de escancarar
“poder financeiro e político”: R$ 835.
Outro caso é de um suposto “empresário”. Silva
encontrou um salão de cabeleireiros aberto em nome dele. Ainda que a empresa
esteja inapta desde fevereiro de 2021, por omissão de declarações, o advogado
garante se tratar de um alguém com forte poder aquisitivo. Outro cidadão
endinheirado também foi citado por aparecer em fotos “pilotando barcos”. A foto
mostra um sujeito de boné com uma lancha pequena de motor, típica de pescadores.
Baseando-se exatamente nessas questões apontadas
pelo advogado Silva, o juiz entendeu que a associação não existia. E que
aquelas pessoas estavam ali por interesses individuais, e não coletivos,
totalmente desligados de qualquer tema que lembrasse reforma agrária.
A decisão teve um significado importante: a
permanência do pedido de reintegração de posse na vara de Amarante. Se fosse um
caso de litígio coletivo, a causa deveria ser transferida para a capital do
estado, Cuiabá. Assim sendo, Amarante deu ganho à empresa e emitiu a ordem para
expulsar os camponeses de lá.
Segundo a Defensoria Pública, os próprios
seguranças da ATA fizeram o despejo, sem a presença de órgãos públicos, como a
Polícia Militar. E decidiram eles mesmos quais barracos seriam mantidos e quais
destruídos – assim como as plantações que, em alguns casos, foram
queimadas.
As casas mantidas tinham uma finalidade: servir de
apoio para os próprios seguranças. Um dos ex-moradores do assentamento levou um
prejuízo ainda maior. Mesmo após despejado, os seguranças continuaram usando
sua casa e o valor da energia elétrica foi para o seu bolso – ele só soube da
dívida quando seu nome parou no Serasa.
No despejo realizado pela ATA, segundo a
Defensoria, os seguranças ainda tentaram remover os moradores da Associação
Santa Terezinha, que não estavam incluídos na liminar do juiz.
·
Reviravolta
O juiz Ivan Lúcio Amarante foi tão rápido na
execução da decisão que o Tribunal de Justiça do estado nem conseguiu avaliar a
competência da comarca para julgar o caso. O Tribunal de Justiça discordou do
juiz de Vila Rica: não cabia a Amarante prosseguir com o processo por se
tratar, sim, de discussão sobre posse de área rural e ocupação coletiva voltada
à reforma agrária.
Acionado, em primeira instância, o Ministério
Público orientou cautela à aceitação do pedido de reintegração, que se baseou
nos boletins de ocorrência, “porque todos foram elaborados com base na atuação
de grupo armado que faz a segurança privada da fazenda”.
Em Cuiabá, o novo juiz derrubou a liminar de
Amarante e convocou uma reunião de conciliação. Assim, o retorno dos camponeses
à propriedade foi liberado –mas não cumprido. Então, os magistrados acharam por
bem esperar o desenrolar da sentença final – para provar a quem pertence a terra
–, já que os camponeses não mais moravam lá desde 2021, e o retorno poderia
agravar os conflitos.
Em junho de 2023, o Ministério Público do Mato
Grosso considerou críveis os argumentos da fazenda, que “trouxe informações aos
autos que revelam a boa aparência do direito de posse invocado”, apesar de
reconhecer o “uso indiscriminado de contingente policial ou de força abusiva
por agentes privados de segurança”. Não deixou de mencionar ainda a existência
de autuações ambientais milionárias, por corte raso e retirada de madeira,
cometidas por ela. O processo segue em andamento, ainda sem uma sentença.
Enquanto isso, a Associação dos Pequenos Produtores
Rurais de Santa Terezinha, teme o mesmo desfecho que tiveram seus vizinhos.
Assim como eles, também tiveram ordem emitida de despejo, apesar de viverem na
área da gleba de Carlos Pelissioli desde 2008. A Defensoria Pública anexou ao
processo um relatório do Intermat comprovando que o grupo vive em áreas
devolutas – e, portanto, não pertencentes ao grupo WLM.
A defesa da Fazenda reconhece a história de
Pelissioli e garante ter comprado as terras do antigo dono em 1989. Segundo
relatório do Intermat, no entanto, nunca foi expedido qualquer título para
Pelissioli, já que ele não pagou as parcelas ao estado. Como as terras não lhe
pertenciam, o processo de compra e venda nunca deveria ter sido realizado – e,
como supostamente aconteceu, deve ser anulado.
Ainda assim, apesar das aparentes incoerências, o
juiz da 2ª Vara Especializada de conflitos Agrários de Cuiabá confirmou a
liminar de reintegração de posse em favor da fazenda. As famílias ainda seguem
na terra, vigiados e ameaçados pelos agentes da ATA. Só não sabem até quando.
Eu procurei a WLM, da família Lemos de Moraes, e
também a empresa de segurança ATA, mas nenhuma das duas respondeu os e-mails
para dar esclarecimentos nesta reportagem.
Fonte: Por Carol Castro, para The Intercept
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