segunda-feira, 3 de julho de 2023

Muito barulho por nada

Não há dúvidas de que o mundo está passando por grandes transformações geopolíticas. A ascensão da Ásia, particularmente da China, de fato apresentou desafios sem precedentes para a ordem liberal centrada no Ocidente do pós-guerra, cujas raízes, de fato, remontam às expansões neocoloniais europeias e americanas do final do século XIX. Esses eventos se tornaram mais perturbadores com o início de um grande conflito militar na Ucrânia, que ajudou a polarizar ainda mais as alianças políticas nas linhas Ocidente-Oriente.

Era de se esperar que tais tendências provocassem confusão, e é necessário um esforço especial por parte dos analistas internacionais para dar sentido à complexa dinâmica que se desenrola no mundo de hoje. Isso é particularmente verdadeiro quando se examina o papel desempenhado por países tradicionalmente menos influentes na arena internacional, cujo destino depende muito de sua capacidade de navegar pelos desafios e oportunidades apresentados por um cenário global em evolução.

Um desses países é o Brasil, a maior sociedade e economia da América Latina, e uma nação que recentemente passou por turbulências. De fato, após um período estável de consolidação democrática que durou entre 1985 e 2015, o Brasil viu uma rápida erosão de suas instituições democráticas, tão dolorosamente conquistadas na longa transição do regime militar quatro décadas atrás. Esse processo culminou com a eleição em 2018 de Jair Bolsonaro, uma figura política divisora cuja retórica autoritária e má gestão administrativa deu voz a uma extrema direita nostálgica da ditadura dos anos 1960 e 1970 e custou a vida de mais de 700 mil vidas.

Embora Jair Bolsonaro não esteja mais no poder e enfrente vários processos judiciais, em um deles tendo sido considerado inelegível por oito anos, o Brasil enfrenta o desafio de reconstruir não apenas os procedimentos democráticos, mas também os valores democráticos que precisam ser compartilhados por todos os atores políticos caso a democracia do país de fato sobreviva.

Essas tarefas estão agora principalmente nas mãos de Luiz Inácio Lula da Silva, um ex-presidente que cumpriu dois mandatos extremamente bem-sucedidos no início dos anos 2000, mas que se tornou uma figura mais polarizadora nos últimos anos. A união do país exigirá grande habilidade política, que Lula já demonstrou ter, além de melhorias na frente econômica.

Em uma economia global moldada hoje por novas tendências inflacionárias, escassez de energia e instabilidade do mercado, o sucesso doméstico de Lula dependerá em grande parte de suas conquistas internacionais. Enquanto Jair Bolsonaro encolhia a relevância do país na arena global, Lula havia aumentado a presença do Brasil ao ampliar a lista de parceiros econômicos e diversificado as parcerias estratégicas, particularmente no Sul Global; tudo isso sem comprometer as relações tradicionais com atores importantes como os Estados Unidos e a União Europeia.

Desde que assumiu o cargo, o presidente que voltou ao poder tem procurado promover um ousado renascimento de sua política externa altamente eficaz anterior, “ativa e altiva”. Mas reproduzir as grandes conquistas do Brasil de 20 anos atrás é muito mais difícil no mundo desafiador e em mudança de hoje. Por isso, Lula tem feito questão de iniciar suas peregrinações internacionais visitando parceiros tradicionais e centrais, como nações vizinhas e os Estados Unidos.

Em seu primeiro mês no cargo, ele participou de uma reunião da Comunidade de Nações da América Latina e Caribe (Celac), na Argentina, onde manifestou o desejo de fortalecer as relações do Brasil na região. Logo depois, Lula visitou o presidente Joe Biden em Washington, onde os dois líderes expressaram seu desejo mútuo de promover a democracia e pressionar por um caminho de desenvolvimento ambientalmente mais saudável, particularmente na região amazônica. Concluída a viagem, Lula visitou a China para aprofundar as relações comerciais e tentar liderar um esforço de paz para a guerra na Ucrânia. Ele então se reuniu com aliados tradicionais, como Espanha e Portugal, além de Itália e França.

Considerando essas primeiras ações, essa abordagem de “muitos amigos” não é tão diferente das experiências de Lula de 20 anos atrás. Naquela época, o Brasil foi amplamente recebido como uma força diplomática em ascensão no mundo em desenvolvimento. O presidente Barack Obama, durante uma reunião em 2009, destacou a “liderança voltada para o futuro de Lula na América Latina e em todo o mundo”. O que mudou desde então foram os contextos doméstico e global em que Lula agora opera.

Ainda assim, lamentavelmente, o que antes era visto como uma busca progressiva por uma política externa autônoma e assertiva agora está sendo interpretada por muitos no Brasil e no Ocidente como divisiva, inapropriada ou mesmo uma traição aos alinhamentos tradicionais do Brasil. Essas visões ignoram não apenas o histórico internacional anterior de Lula, mas também uma perspectiva histórica mais ampla.

Por mais de um século, os esforços diplomáticos do Brasil têm se concentrado na promoção do multilateralismo e na pressão pela resolução pacífica de conflitos. E enquanto se aproximava dos aliados ocidentais durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, os sucessivos governos do Brasil – sejam eles progressistas ou conservadores, democráticos ou autoritários – seguiram uma política de autodeterminação. Moldada por essa dinâmica, a política externa brasileira tem servido bem ao país como instrumento de seu próprio desenvolvimento.

Considerando todos esses elementos, é preocupante constatar que mesmo análises qualificadas sobre a tentativa de Lula de reposicionar o Brasil no mundo após o fiasco do alinhamento subserviente de Bolsonaro aos Estados Unidos sob Donald Trump ainda tenham a tendência de serem tendenciosas, particularmente ao avaliar a parte pelo todo.

Em princípio, alguns viram na visita de Lula à China e em suas repetidas tentativas de instar por negociações de paz na Ucrânia um sinal de que Lula estava adotando uma abordagem antiocidental nos assuntos internacionais. Este claramente não é o caso. Da mesma forma, os temores de que Lula possa estar tentando criar uma aliança latino-americana anti-EUA apoiada pela China são infundados e não corroborados pelos fatos.

Sim, Lula deu mais prestígio do que aconselhável a Nicolás Maduro durante sua recente visita a Brasília para participar de um encontro de nações sul-americanas. Isso, porém, não coloca Lula alinhado à Venezuela nem diminui o papel que Lula realmente desempenhou para acalmar as coisas naquele país, em grande parte com a aprovação do governo Bush no início do século.

Da mesma forma, a recente tentativa de Lula de reviver a Unasul de fato enfrenta desafios importantes. Mas isso não diminui da mesma forma o fato de que a colaboração regional – meta perseguida também pelo antecessor de Lula – tem se mostrado um projeto desafiador, mas promissor, inclusive com o propósito de proporcionar maior estabilidade econômica e política, objetivo que deveria, em fato, ser visto como benéfico e, portanto, merecedor do apoio dos Estados Unidos.

O Brasil sob Lula não arriscará o futuro do país escolhendo lados em conflitos ou disputas internacionais crescentes. Sua principal tarefa é a reconstrução da democracia no país e ele precisará de toda a ajuda que puder obter nesse esforço, especialmente de seu principal parceiro histórico, os Estados Unidos, cujo recente papel na defesa das eleições do país foi decisivo para abrir caminho para posse de Lula.

Lula não está tentando isolar o país de aliados tradicionais, e entender com precisão as recentes aberturas internacionais de Lula pode ser útil para evitar a repetição de armadilhas analíticas anteriores tão prejudiciais não apenas para o Brasil, mas também para suas relações com os EUA e o mundo em geral.

 

Fonte: Por Rafael R. Ioris, em A Terra é Redonda

 

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