Muito barulho por nada
Não há dúvidas de que o mundo está passando por
grandes transformações geopolíticas. A ascensão da Ásia, particularmente da
China, de fato apresentou desafios sem precedentes para a ordem liberal
centrada no Ocidente do pós-guerra, cujas raízes, de fato, remontam às
expansões neocoloniais europeias e americanas do final do século XIX. Esses
eventos se tornaram mais perturbadores com o início de um grande conflito
militar na Ucrânia, que ajudou a polarizar ainda mais as alianças políticas nas
linhas Ocidente-Oriente.
Era de se esperar que tais tendências provocassem
confusão, e é necessário um esforço especial por parte dos analistas
internacionais para dar sentido à complexa dinâmica que se desenrola no mundo
de hoje. Isso é particularmente verdadeiro quando se examina o papel
desempenhado por países tradicionalmente menos influentes na arena
internacional, cujo destino depende muito de sua capacidade de navegar pelos
desafios e oportunidades apresentados por um cenário global em evolução.
Um desses países é o Brasil, a maior sociedade e
economia da América Latina, e uma nação que recentemente passou por
turbulências. De fato, após um período estável de consolidação democrática que
durou entre 1985 e 2015, o Brasil viu uma rápida erosão de suas instituições
democráticas, tão dolorosamente conquistadas na longa transição do regime
militar quatro décadas atrás. Esse processo culminou com a eleição em 2018 de
Jair Bolsonaro, uma figura política divisora cuja retórica autoritária e má
gestão administrativa deu voz a uma extrema direita nostálgica da ditadura dos
anos 1960 e 1970 e custou a vida de mais de 700 mil vidas.
Embora Jair Bolsonaro não esteja mais no poder e
enfrente vários processos judiciais, em um deles tendo sido considerado
inelegível por oito anos, o Brasil enfrenta o desafio de reconstruir não apenas
os procedimentos democráticos, mas também os valores democráticos que precisam
ser compartilhados por todos os atores políticos caso a democracia do país de
fato sobreviva.
Essas tarefas estão agora principalmente nas mãos
de Luiz Inácio Lula da Silva, um ex-presidente que cumpriu dois mandatos
extremamente bem-sucedidos no início dos anos 2000, mas que se tornou uma
figura mais polarizadora nos últimos anos. A união do país exigirá grande
habilidade política, que Lula já demonstrou ter, além de melhorias na frente
econômica.
Em uma economia global moldada hoje por novas
tendências inflacionárias, escassez de energia e instabilidade do mercado, o
sucesso doméstico de Lula dependerá em grande parte de suas conquistas
internacionais. Enquanto Jair Bolsonaro encolhia a relevância do país na arena
global, Lula havia aumentado a presença do Brasil ao ampliar a lista de
parceiros econômicos e diversificado as parcerias estratégicas, particularmente
no Sul Global; tudo isso sem comprometer as relações tradicionais com atores
importantes como os Estados Unidos e a União Europeia.
Desde que assumiu o cargo, o presidente que voltou
ao poder tem procurado promover um ousado renascimento de sua política externa
altamente eficaz anterior, “ativa e altiva”. Mas reproduzir as grandes
conquistas do Brasil de 20 anos atrás é muito mais difícil no mundo desafiador
e em mudança de hoje. Por isso, Lula tem feito questão de iniciar suas
peregrinações internacionais visitando parceiros tradicionais e centrais, como
nações vizinhas e os Estados Unidos.
Em seu primeiro mês no cargo, ele participou de uma
reunião da Comunidade de Nações da América Latina e Caribe (Celac), na
Argentina, onde manifestou o desejo de fortalecer as relações do Brasil na
região. Logo depois, Lula visitou o presidente Joe Biden em Washington, onde os
dois líderes expressaram seu desejo mútuo de promover a democracia e pressionar
por um caminho de desenvolvimento ambientalmente mais saudável, particularmente
na região amazônica. Concluída a viagem, Lula visitou a China para aprofundar
as relações comerciais e tentar liderar um esforço de paz para a guerra na
Ucrânia. Ele então se reuniu com aliados tradicionais, como Espanha e Portugal,
além de Itália e França.
Considerando essas primeiras ações, essa abordagem
de “muitos amigos” não é tão diferente das experiências de Lula de 20 anos
atrás. Naquela época, o Brasil foi amplamente recebido como uma força
diplomática em ascensão no mundo em desenvolvimento. O presidente Barack Obama,
durante uma reunião em 2009, destacou a “liderança voltada para o futuro de
Lula na América Latina e em todo o mundo”. O que mudou desde então foram os
contextos doméstico e global em que Lula agora opera.
Ainda assim, lamentavelmente, o que antes era visto
como uma busca progressiva por uma política externa autônoma e assertiva agora
está sendo interpretada por muitos no Brasil e no Ocidente como divisiva,
inapropriada ou mesmo uma traição aos alinhamentos tradicionais do Brasil.
Essas visões ignoram não apenas o histórico internacional anterior de Lula, mas
também uma perspectiva histórica mais ampla.
Por mais de um século, os esforços diplomáticos do
Brasil têm se concentrado na promoção do multilateralismo e na pressão pela
resolução pacífica de conflitos. E enquanto se aproximava dos aliados
ocidentais durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, os sucessivos
governos do Brasil – sejam eles progressistas ou conservadores, democráticos ou
autoritários – seguiram uma política de autodeterminação. Moldada por essa
dinâmica, a política externa brasileira tem servido bem ao país como instrumento
de seu próprio desenvolvimento.
Considerando todos esses elementos, é preocupante
constatar que mesmo análises qualificadas sobre a tentativa de Lula de
reposicionar o Brasil no mundo após o fiasco do alinhamento subserviente de
Bolsonaro aos Estados Unidos sob Donald Trump ainda tenham a tendência de serem
tendenciosas, particularmente ao avaliar a parte pelo todo.
Em princípio, alguns viram na visita de Lula à
China e em suas repetidas tentativas de instar por negociações de paz na
Ucrânia um sinal de que Lula estava adotando uma abordagem antiocidental nos
assuntos internacionais. Este claramente não é o caso. Da mesma forma, os
temores de que Lula possa estar tentando criar uma aliança latino-americana
anti-EUA apoiada pela China são infundados e não corroborados pelos fatos.
Sim, Lula deu mais prestígio do que aconselhável a
Nicolás Maduro durante sua recente visita a Brasília para participar de um
encontro de nações sul-americanas. Isso, porém, não coloca Lula alinhado à
Venezuela nem diminui o papel que Lula realmente desempenhou para acalmar as
coisas naquele país, em grande parte com a aprovação do governo Bush no início
do século.
Da mesma forma, a recente tentativa de Lula de
reviver a Unasul de fato enfrenta desafios importantes. Mas isso não diminui da
mesma forma o fato de que a colaboração regional – meta perseguida também pelo
antecessor de Lula – tem se mostrado um projeto desafiador, mas promissor,
inclusive com o propósito de proporcionar maior estabilidade econômica e
política, objetivo que deveria, em fato, ser visto como benéfico e, portanto,
merecedor do apoio dos Estados Unidos.
O Brasil sob Lula não arriscará o futuro do país
escolhendo lados em conflitos ou disputas internacionais crescentes. Sua
principal tarefa é a reconstrução da democracia no país e ele precisará de toda
a ajuda que puder obter nesse esforço, especialmente de seu principal parceiro
histórico, os Estados Unidos, cujo recente papel na defesa das eleições do país
foi decisivo para abrir caminho para posse de Lula.
Lula não está tentando isolar o país de aliados
tradicionais, e entender com precisão as recentes aberturas internacionais de
Lula pode ser útil para evitar a repetição de armadilhas analíticas anteriores
tão prejudiciais não apenas para o Brasil, mas também para suas relações com os
EUA e o mundo em geral.
Fonte: Por Rafael R. Ioris, em A Terra é Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário