De onde virá
dinheiro que governo Lula precisa para arcabouço fiscal funcionar?
O
governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) caminha para aprovar no Congresso, no
início de julho, o novo arcabouço fiscal — uma proposta de novas regras para
substituir o teto de gastos, que limita o crescimento das despesas públicas à
inflação do ano anterior.
Segundo
a regra proposta, as despesas públicas podem crescer acima da inflação, mas
respeitando uma margem. (Veja abaixo detalhes da nova regra proposta)
A
medida foi enviada à Câmara dos Deputados em abril e foi
inicialmente aprovada no fim de maio. Um mês depois, recebeu o aval
do Senado, que fez algumas alterações no texto que serão analisadas pela Câmara
nesta semana.
Além
da previsão de votar o arcabouço fiscal, a expectativa é que a Câmara analise a
reforma tributária, que prevê que os atuais impostos serão substituídos,
gradualmente, de 2026 até 2033.
Analistas
consideram que o bom andamento da proposta de arcabouço fiscal no Legislativo é
uma vitória do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), que articulou apoio
com as lideranças parlamentares.
É
ele que terá que liderar agora também a missão considerada mais difícil por
especialistas em contas públicas: implementar as novas regras sem lançar mão de
manobras fiscais, algo que ficou conhecido como “pedaladas”
no governo de Dilma Rousseff (PT) e “furos no teto” no governo de Jair
Bolsonaro (PL).
Para
alcançar esse objetivo, terá que viabilizar um forte aumento de receitas capaz
de cobrir a expansão dos gastos acima da inflação, como autoriza o arcabouço.
São
medidas impopulares, como mais arrecadação de impostos ou retirada de
benefícios fiscais (isenção ou desconto de tributos para alguns setores), que
costumam gerar resistência na sociedade e no Congresso.
“Já
quero antecipar, está lá na (proposta de) Lei de Diretrizes Orçamentárias (de
2024 enviada ao Congresso): para que o arcabouço dê certo, nós vamos precisar
de R$ 150 bilhões de incremento de receita. Uma parte a Fazenda já anunciou e
outra já sabe de onde vai tirar”, reconheceu a própria ministra do
Planejamento, Simone Tebet (MDB), durante audiência recente na Câmara.
Tebet
não detalhou, no entanto, quanto desses R$ 150 bilhões ainda falta o governo
arranjar.
Mas
a ministra repetiu o que Haddad tem afirmado: a ideia é evitar novos impostos e
tenta conseguir isso combatendo o que chama de “jabutis tributários” —
benefícios fiscais para alguns setores que o governo considera ineficientes e
injustos.
A
Fazenda já obteve duas vitórias consideradas importantes para reforçar os
cofres públicos.
Uma
foi uma medida provisória aprovada pelo Congresso em maio que muda o cálculo do
imposto cobrado sobre empresas brasileiras com filiais no exterior, evitando
que elas continuem adotando manobras fiscais que, na prática, reduzem o valor a
pagar.
A
outra foi uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que passou a proibir um
certo tipo de desconto
em impostos federais que incidem sobre os ganhos das empresas (IRPJ e CSLL).
O
problema, dizem os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil, é que a
Receita Federal tem projetado arrecadar valores altos com essas medidas já
anunciadas, enquanto projeções de fora do governo apontam ganhos mais modestos.
Ou
seja, talvez as ações extras que o governo precisa adotar sejam ainda maiores
do que vem sendo avaliado pela Fazenda, segundo essas análises.
Por
exemplo, a Instituição Fiscal Independe (IFI), órgão ligado ao Senado, projeta
que o governo deve arrecadar R$ 32,5 bilhões no ano que vem com essas duas
medidas — a mudança da cobrança sobre empresas com filiais no exterior (R$ 20
bilhões) e o fim do desconto sobre IRPJ e CSLL (R$ 12,5 bilhões).
Já
a Fazenda anunciou expectativas bem maiores, de R$ 70 bilhões com a primeira
medida e de R$ 47 bilhões com a segunda, em um total de R$ 117 bilhões.
Devido
a essas diferenças, a IFI calcula que o governo ainda precisa arranjar mais R$
105,5 bilhões em receitas em 2024 para cumprir a promessa de zerar o rombo nas
contas públicas no próximo ano.
“O
governo tem anunciado (medidas para elevar as receitas). A questão é que o que
foi anunciado até agora ainda não é suficiente para alcançar a meta que ele
mesmo propõe. Então, é possível que outras medidas venham a ser anunciadas
ainda nos próximos meses”, ressalta a economista Vilma Pinto, diretora da IFI.
·
O tamanho do rombo
A
previsão do governo, divulgada em maio, é que o rombo deste ano será de R$
136,2 bilhões (1,3% do PIB), mas a gestão Haddad ainda estuda medidas para
tentar reduzir esse déficit primário para menos de R$ 100 bilhões (1% do PIB).
As
despesas foram impulsionadas acima do teto de gastos, com uma autorização dada pelo Congresso no
final de 2022 para viabilizar aumentos de despesas de cunho
social nesse ano, como a volta do programa Bolsa Família com benefícios mais
altos.
A
promessa do governo é zerar o déficit em 2024 e entregar saldos positivos
crescentes nos dois últimos anos do governo (0,5% do PIB em 2025 e 1% em 2026).
O
objetivo dessa economia — chamada de superavit primário — é pagar a dívida
pública, hoje em 76% do PIB e com perspectiva de alta, segundo projeções do
mercado monitoradas pelo Banco Central (BC).
Economistas
que defendem um endividamento público menor dizem que isso traz resultados
positivos para o crescimento, como redução de inflação e juros no país.
Hoje,
porém, há ceticismo sobre o cumprimento das promessas do governo.
O
Boletim Focus, levantamento realizado pelo Banco Central semanalmente, mostra
que as projeções medianas de analistas de mercado é de que haverá déficit em
todos os anos do governo Lula.
A
expectativa é de que o rombo caia gradualmente e chegue a 0,20% do PIB em 2026, segundo o
levantamento mais recente, de 30 de junho.
Segundo
Bráulio Borges, economista da LCA Consultores e pesquisador da Fundação Getulio
Vargas (FGV), esse ceticismo reflete a avaliação dos analistas de que será
difícil o governo levantar todas as receitas que precisa para entregar os
resultados prometidos.
“De
fato, o maior desafio é o cumprimento da promessa de ajuste fiscal (gastar
menos do que arrecada) que está embutida no arcabouço fiscal (proposto)”, diz
Borges.
“Na
prática, para entregar as metas, o ajuste fiscal que o governo está sinalizando
depende praticamente 100% de aumento de receita. E, quando a gente fala de
aumento de receita, é aumento de carga tributária como proporção do PIB. Só
para deixar claro.”
·
Sem 'boom' de commodities à vista
Simulações
feitas pela IFI dão uma ideia do desafio. O órgão testou seis cenários, com
diferentes taxas de crescimento das receitas primárias (aquelas que estarão
sujeitas às regras do novo arcabouço).
Os
resultados são menos pessimistas que as projeções de mercado e, em geral,
apontam para pequenos superavits primários a partir de 2025.
Mas
apenas no cenário mais otimista, em que a arrecadação tem uma alta expressiva
de 6,5% ao ano, em média, o governo conseguiria cumprir as metas prometidas
para 2025 e 2026.
Essa
foi a taxa de crescimento médio das receitas entre 2000 a 2009, quando a
arrecadação foi puxada pela forte valorização de commodities produzidas
no Brasil, como petróleo, minério e soja.
De
2010 a 2019, a taxa foi de só 2%. Nos três anos seguintes, a evolução das
receitas entrou numa montanha-russa, devido aos efeitos da pandemia de covid-19
e da guerra na Ucrânia (que elevou o preço de algumas commodities):
houve queda de 8,4% em 2020, seguida de alta de 12,2% em 2021 e de 6,5% em
2022.
A
expectativa da IFI, porém, é que a evolução das receitas primárias agora se
acomodem em níveis mais baixos.
Um
cenário visto como mais realista pela instituição seria de uma alta da média anual
de 2,6%, seguindo o ritmo de crescimento da economia projetado para os próximos
anos, o que resultaria em um superavit primário de apenas 0,2% do PIB em 2025 e
de 0,4% do PIB em 2026 — em ambos os casos, menos da metade do que projeta o
governo.
“(As
metas primárias anunciadas pelo governo) não me parecem factíveis, pelo
contrário. Dado o cenário internacional, com recessão na Europa, esperada
recessão nos Estados Unidos e perda estrutural de fôlego da economia chinesa,
parece difícil ver cenário otimista para as commodities, lastro de
parte fundamental do desempenho da arrecadação”, avalia também o economista
Gabriel Leal de Barros, sócio da Ryo Asset e ex-diretor da IFI.
“As
metas fiscais são críveis se, e somente se, houver ganhos extraordinários de receita
por fontes não mapeadas, algo inesperado.”
·
Arcabouço fiscal: nova regra prevê punições
A
dificuldade em entregar as metas de resultado primário ocorre mesmo com a
previsão de regras mais flexíveis no novo marco fiscal, devido à adoção de uma
banda de 0,25 ponto percentual para cumprir os objetivos propostos.
Mas
como isso funcionará, na prática?
A
meta do governo para 2024 é zerar o rombo (o equivalente a uma meta primária de
0% do PIB). Mas, caso a proposta seja aprovada, haverá um intervalo mais flexível,
de 0,25 ponto percentual para cima ou para baixo.
Ou
seja, na prática, o resultado primário poderia ficar entre um rombo de 0,25% do
PIB e um saldo positivo de 0,25%.
E
o que acontece se esse resultado não for alcançado? A Câmara dos Deputados alterou
a proposta do governo para inserir algumas punições em caso de não cumprimento
da meta, mudanças mantidas pelo Senado.
Dessa
forma, caso a meta de um ano não seja cumprida, no ano seguinte uma série de
aumento de despesas ficam bloqueados, como a “concessão ou ampliação de
incentivo ou benefício de natureza tributária” ou a “criação de cargo, emprego
ou função que implique aumento de despesa”.
E,
se houver dois anos seguidos de descumprimento das metas, essa lista de
proibições aumenta, não sendo permitidas também a “realização de concurso
público” ou “criação de despesa obrigatória”, entre outras medidas.
Além
disso, o teto de gastos é rebaixado já com o primeiro ano de não cumprimento da
meta.
Mas
como exatamente o novo limite de gastos é calculado pela nova regra?
A
proposta enviada pela Fazenda — e que caminha para ser aprovada no Congresso —
prevê que o teto para o crescimento das despesas vai sempre ficar em um
intervalo entre 0,6% e 2,5% acima da inflação.
A
regra básica é que o crescimento da despesa fique limitado a 70% da expansão da
receita. Ou seja, se a arrecadação do governo subir 2%, por exemplo, a despesa
poderia crescer até 1,4%.
No
entanto, mesmo que a receita tenha um crescimento muito baixo ou o governo
tenha perda de arrecadação em determinado ano, ainda assim fica garantido ao
menos 0,6% de expansão da despesa acima da inflação.
Por
outro lado, mesmo que a arrecadação tenha uma alta mais expressiva, a expansão
da despesa ficará limitada ao teto de 2,5%.
No
entanto, se a meta de primário não for cumprida em um ano, o cálculo do teto
fica limitado a 50% do crescimento das receitas, em vez de 70%, na próxima
proposta de orçamento a ser enviada ao Congresso.
Apesar
das dificuldades para bombar as receitas, nota Bráulio Borges, da FGV, essas
punições vão incentivar o governo a se esforçar para cumprir as metas fiscais,
principalmente em 2024 e 2025, com objetivo de evitar ter que cortar gastos em
2026, ano eleitoral.
·
'Regra é factível', elogia especialista
Ex-secretário
de Fazenda do Estado de São Paulo e economista-chefe da Warren Rena, Felipe
Salto tem uma visão mais otimista do novo marco fiscal.
Ele
concorda que será difícil cumprir os resultados primários sem aumento
expressivo de receita, mas considera positivo a própria regra trazer gatilhos
para frear o aumento de gastos caso as metas não sejam descumpridas.
Salto,
que foi um crítico da rigidez do teto de gastos desde seu início, acredita que
a flexibilidade do novo marco fiscal torna a regra mais factível que o modelo
atual e vai contribuir para estabilizar o crescimento das despesas do governo
em relação ao PIB.
“Sem
um compromisso efetivo deste e dos próximos governos com a responsabilidade
fiscal, sob o novo arcabouço, ele poderá simplesmente não produzir uma melhora
expressiva do quadro fiscal. Por outro lado, o risco de se tornar uma regra
impossível de ser cumprida (como ocorreu com o Teto de Gatos), este, a meu ver,
está afastado”, disse Salto.
“Por
mais que se possa criticar o arcabouço por não ser duro o suficiente, estou na
ponta dos que, nesta temática, enxergam o copo meio cheio. Já acompanho esse
assunto desde 2008 e acho que há uma coisa que nós, especialistas em contas
públicas, temos de compreender: a Constituição de 1988 não combina com ajuste
fiscal draconiano. É ajuste paulatino.”
Fonte:
BBC News Brasil
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