Por que japoneses são obcecados por regras
e manuais pra tudo
No Japão há manual
para quase tudo. Das instruções mais simples, como o uso da escada rolante, até
como atender clientes e operar equipamentos complexos, tudo está descrito em
letras, às vezes acompanhadas de ilustrações, para que o resultado seja padronizado.
A raiz desse apego
japonês a manuais pode estar na "escrituralidade" do povo, explica
Daisuke Onuki, professor do Departamento de Estudos Internacionais da
Universidade Tokai.
“Em contraste com a
oralidade da cultura brasileira, a japonesa valoriza a importância de fixar o
conhecimento de forma escrita", diz em entrevista à BBC News Brasil.
Os japoneses começaram
a ser alfabetizados no período Edo (1603 a 1868), quando foram fundadas escolas
de caligrafia e escrita para camponeses e artesãos em geral. Era uma educação
dotada de juízos e valores morais.
Eles praticavam suas
habilidades linguísticas fazendo cópias de leis, informativos e escrituras
sagradas do budismo.
Segundo Onuki, em se
tratando de sistema de educação, o Brasil valoriza muito a flexibilidade no
ensino de português.
“A BNCC [Base Nacional
Comum Curricular], por exemplo, lembra repetidamente os educadores que o
português não é um idioma uniformizado e que a variedade e a mobilidade é algo
bom", afirma o professor.
"Já as diretrizes
curriculares de aprendizagem no Japão enfatizam a importância de ensinar a ler
e a escrever a língua nacional conforme regras já estabelecidas. O contraste
entre o povo japonês (marcado pela organização) e o povo brasileiro (flexibilidade)
vem da escrituralidade e da oralidade dos dois povos."
• Manuais, manuais e mais manuais
Quando estão sendo
alfabetizados, uma das primeiras coisas que eles aprendem é a ordem e a
contagem dos traços dos ideogramas (kanji).
A padronização na
escrita permite a qualquer pessoa reconhecer os caracteres mesmo quando
escritos na forma cursiva ou corrida.
O importante é
entender bem a regra básica, e isso vale para quase tudo no Japão.
Ou se aprende na
escola, ou com a ajuda de diversos manuais vendidos em livrarias. Quando se
trata de ambiente de trabalho, a bibliografia é extensa.
Além dos livros
fundamentais de etiqueta empresarial com ensinamentos de como atender o
telefone ou onde se sentar numa sala de reunião conforme a posição hierárquica,
por exemplo, há os manuais internos de cada empresa com outras inúmeras
instruções e procedimentos operacionais.
Quanto mais detalhes
tiver, mais indispensável será o manual para reduzir riscos de interpretações
errôneas, segundo o empresário Ryo Nakayama, autor de Chefe, você quer nos
transformar em robôs? (em tradução livre, lançado em 2020).
As palavras que formam
o título do livro foram ditas a ele por um funcionário de uma empresa.
“Quando algumas
pessoas ouvem a palavra 'manual', podem ter a impressão de que estão sendo
instruídas a seguir uma fórmula. Mas isso é um grande mal-entendido”, afirma
Nakayama à BBC News Brasil.
“Um manual nada mais é
do que uma ferramenta para o desenvolvimento dos recursos humanos e o
crescimento da empresa, e não para construir robôs. Se você deseja criar
pessoas que possam quebrar o molde, você precisa criar o molde.”
Dez anos atrás,
Nakayama fundou a empresa 2.1 (Nitenichi), especializada na criação de manuais
para revitalizar empresas.
Ele diz que a falta
desse tipo de material prejudica a produtividade, além de gerar estresse por
mal-entendidos na transmissão de mensagens.
Na prática, o trabalho
nem sempre ocorre 100% de acordo com o esperado.
“Contudo, se os
procedimentos básicos estiverem resumidos em um manual, o conhecimento
empresarial pode ser partilhado entre várias pessoas e como resultado, você
pode prosseguir com seu trabalho de maneira tranquila e eficiente”, afirma.
·
A origem da cultura dos manuais
Desde os tempos
antigos, já havia algo semelhante a manuais, como códigos de conduta, regras e
explicações, mas as bases do que conhecemos hoje como manual teriam surgido do
“método científico de gestão” criado por Frederick Winslow Taylor, no final do
século 19, nos Estados Unidos.
Engenheiro mecânico da
Filadélfia, ele acreditava que oferecendo instruções sistemáticas e adequadas
aos trabalhadores, haveria a possibilidade de fazê-los produzir mais e com
melhor qualidade.
Na época, o taylorismo
recebeu críticas por transformar o homem em uma espécia de máquina.
Ao abrir a sua
primeira loja no Japão, em 1971, a rede de fast food McDonald 's teria
introduzido o conceito de manual como existe atualmente no país, detalhando
procedimentos e também como deveria ser o atendimento ao cliente.
Esse formato de
material foi se multiplicando e adicionando características locais.
Há muitos outros
elementos sociais e culturais japoneses que se encontram nas entrelinhas dos
manuais, de difícil compreensão para os estrangeiros.
A maneira correta de
se dirigir a alguém, as expressões básicas de cortesia e polidez, tudo isso se
aprende em um curso de idioma japonês, além do tom de voz e o jeito de falar
que também são considerados essenciais em um ambiente de trabalho, porque refletem
respeito e educação.
Esse tipo de
informação é o óbvio que nem sempre é incluído nos manuais.
“Se entender tudo isso
é difícil para um japonês, imagine então para um estrangeiro”, diz Kazue
Matsushita, especialista em recursos humanos que treinou vários profissionais
para ingressar em empresas do Japão.
Ela diz que o Japão dá
muita importância a manuais, que contêm informações detalhadas para serem
seguidas, enquanto no exterior prevalecem os guias, com recomendações apenas
para o estritamente necessário.
"Cada um deve
entender suas funções plenamente e saber executá-las bem. Só depois disso, terá
espaço para propor mudanças", diz Kazue.
Ela cita o caso de um
engenheiro contratado do exterior, que passou dois anos trabalhando com CAD
(desenhos feitos com auxílio de computador).
Ao reclamar que
estaria sendo subaproveitado porque teria qualificação para mais, recebeu como
resposta que precisaria antes compreender a importância de desenhar a peça com
perfeição, sem um milímetro de erro, e só depois poderia passar para a etapa
seguinte.
O aprendizado se dá de
forma cumulativa. Desde cedo, a criança japonesa aprende a usar uniforme, onde
se posicionar em uma fila, como falar determinadas coisas e agir em diversas
situações.
Esse treinamento
contínuo é importante em um país vulnerável a desastres naturais como
terremoto, tsunami e tufão, e ajudou muito durante a pandemia do coronavírus.
Kazue lembra que não
houve resistência da população japonesa às medidas tomadas pelo governo, porque
faz parte da cultura local pensar no coletivo e agir conforme a maioria.
• 'Nem tudo tem lógica'
Quem é de fora do país
aprende observando e copiando ou buscando respostas nos manuais.
“Mas nem tudo tem
lógica”, afirma a brasileira Eliza Yuka Sato, de 56 anos, que vive na Província
de Aichi.
Quando trabalhava em
uma fábrica, ela costumava andar como um caranguejo ao redor de uma mesa com
caixas contendo várias peças, fazendo como os colegas.
Não entendia o porquê
daquilo, já que mesmo estando parada conseguiria fazer aquele trabalho. Só
depois descobriu que os japoneses andavam para combater o sono.
Por muitos anos, Eliza
também trabalhou como consultora em órgão público para ajudar residentes
estrangeiros, e a regra era “tudo o que acontecesse tinha que passar pela
chefia”.
Porém, até chegar ao
topo da hierarquia, havia um longo caminho a percorrer.
"O manual ajuda a
organizar o trabalho, mas também pode virar uma camisa de força", diz
Eliza.
"Para problemas
pessoais, é preciso ter flexibilidade, mas a hierarquia e a burocracia acabam
atrapalhando. E alguns casos eram urgentes."
Nilton Funabashi, que
vive na cidade de Iida, na Província de Nagano, não se incomoda com a expressão
manyuaru doori (agir de acordo com o manual), que diz admirar.
“Quem esteve em chão
de fábrica sabe o quanto o Japão é rigoroso com disciplina e exigente com a
qualidade do produto”, diz Nilton.
"Sabendo o que
cada um deve fazer, fica mais fácil trabalhar."
Ele lembra que, quando
necessário, há espaço para qualquer pessoa contestar e opinar.
Porém, é preciso
primeiro entender as regras, ter argumentos e ver o momento certo para
questionar e propor mudanças nos manuais.
“Só não dá para ir com
nosso jeitinho brasileiro e sugerir apenas uma maneira mais fácil e cômoda de
trabalhar, sem contexto e nem propósito”, diz Nilton.
De todas as regras do
cotidiano japonês, as mais rigorosas que devem ser seguidas à risca estão
relacionadas ao lixo e ao barulho.
Esses temas são os que
mais geram conflitos entre japoneses e estrangeiros. Muitas cidades têm manuais
bem ilustrados e detalhados sobre quando e como descartar cada tipo de lixo.
Por exemplo, a tampa e
a etiqueta das garrafas PET devem ser removidas antes de descartadas, porque os
dias de coleta para cada item costumam ser diferentes.
Misturar ou depositar
determinado tipo de lixo em data errada é o motivo de briga entre vizinhos.
No entanto, cada
cidade tem seu próprio manual. Nilton lembra que chegou a ser insultado por um
japonês porque havia usado um tipo de saco plástico diferente do permitido na
região para a qual tinha acabado de se mudar.
“E como saber, se
ninguém fala? Foi por isso que depois me dispus a preparar um manualzinho em
português para ajudar outros brasileiros da minha cidade.”
Barulho é outro tema
de desavenças, por isso as regras relacionadas a isso costumam fazer parte dos
“guias de convivência” produzidos em vários idiomas e distribuídos por
prefeituras de cidades com concentração de estrangeiros.
“Conforme o tipo de
construção, as paredes são tão finas que deixam vazar até o barulho dos passos,
invadindo o espaço alheio”, conta Kazue Matsushita.
“A cultura japonesa é
peculiar, então só entendendo para não ter problemas. Ou fazendo tudo conforme
os manuais."
Fonte: BBC News Brasil
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