O grande
roubo de enfermeiros pelo Norte Global
O
Conselho Internacional de Enfermeiros (ICN, sigla em inglês) convocou a
Organização Mundial da Saúde (OMS) a considerar a possibilidade de uma
“moratória por tempo limitado no recrutamento ativo de enfermeiros” oriundos de
países na Lista de Salvaguarda e Apoio à Força de Trabalho da Saúde.
A
ação decorre de um “aumento dramático” no recrutamento de trabalhadores da
enfermagem de países de renda média e baixa pelas nações mais ricas, de acordo
com o ICN.
A
Lista de Salvaguarda identifica os 55 países que enfrentam os maiores desafios
relativos à mão de obra necessária para alcançar a cobertura universal de
saúde. A escassez de profissionais de saúde é uma das principais causas da
dificuldade de muitos países em alcançar a cobertura universal.
A
proposta foi feita pelo ICN em um recente relatório à OMS sobre a implementação
do Código Global de Práticas de Recrutamento Internacional de Pessoal na Saúde.
O
relatório atribui a “alta na migração internacional de enfermeiros” em grande
parte às “tentativas de alguns países de renda alta de responder a sua grande
falta de trabalhadores da enfermagem por meio do recrutamento ativo em países
mais pobres, através da facilitação da entrada e do reconhecimento
profissionais de enfermeiros formados no exterior”.
A
proporção de enfermeiros empregados nos países da Organização para a Cooperação
e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) – composta por 38 nações desenvolvidas –
que se formaram no exterior saltou de 5% em 2011 para quase 9% em 2021.
O
Reino Unido, os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, a Alemanha e as
monarquias do Golfo são os principais estimuladores desse movimento.
Reino
Unido toma enfermeiros de países da “lista vermelha”
No
Reino Unido, por exemplo, mais de 24 mil enfermeiras estrangeiras se
registraram para trabalhar no país entre setembro de 2021 e setembro de 2022, o
maior número da história.
Mais
de 19% das enfermeiras que chegaram em solo britânico entre 2021 e 2023 vieram
de países como “déficits severos de mão de obra na saúde”, de acordo com a já
citada Lista da OMS.
Ao
longo de um período de seis meses em 2022, mais de 20% das novas enfermeiras
estrangeiras (algo em torno de 2,2 mil trabalhadoras) vieram de apenas dois
países dessa “lista vermelha”: Nigéria e Gana.
“Ainda
que o recrutamento direto para o National Health Service [N. T.: NHS, o sistema
de saúde pública inglês] seja ilegal, essas enfermeiras podem primeiro ser
contratadas por empresas com fins lucrativos, para trabalhar no setor privado,
e depois se inscreverem para o ‘recrutamento passivo’ ao NHS”, diz o ICN.
Contratantes
internacionais também estão fazendo publicidade ostensiva para cooptar mão de
obra da saúde de países pobres na África, na Ásia e no Caribe, em violação
flagrante do Código.
Os
Estados Unidos anunciaram que mais de 17 mil enfermeiros pediram vistos para
entrada no país em 2022, um aumento de 44% em relação ao ano anterior.
“Países
que anteriormente não praticavam o recrutamento internacional de enfermeiros
também estão ampliando sua demanda por trabalhadores estrangeiros, como a
Finlândia e a Escócia. Nesta última, o governo anunciou uma verba de 4,5
milhões de libras para a contratação de enfermeiros do exterior e a recuperação
da força de trabalho após a pandemia”, ressalta o ICN.
Países
pobres enfrentam grande escassez de enfermeiros
Na
Assembleia Mundial da Saúde de 2024, Tonga e Fiji revelaram que já perderam de
20% a 30% de seus enfermeiros, principalmente para a Austrália e a Nova
Zelândia.
Em
Fiji, 800 profissionais do ramo se demitiram em 2022, isto é um quinto da força
de trabalho da enfermagem do país. No momento, a ilha ainda conta com 2 mil
enfermeiras e cerca de 1,6 mil postos de trabalho vagos no setor. Muitos
hospitais estão operando com menos de 40% das enfermeiros necessários.
Já
no Zimbábue, mais de 1,7 mil enfermeiros formados se demitiram em 2021, e algo
em torno de 900 saíram do país em 2022. A maioria se mudou para o Reino Unido.
A
Associação de Enfermeiras e Parteiras de Gana recentemente divulgou que 500
trabalhadoras da enfermagem deixam o país todos os meses, com destaque para as
profissionais experientes e especializadas.
As
Filipinas enfrentam uma falta de 190 mil trabalhadores da saúde, e essa
escassez de mão de obra deve crescer para 250 mil até 2030.
O
direito de emigração dos enfermeiros
“O
ICN reconhece e apoia o direito individual dos enfermeiros de migrar, buscar o
reconhecimento profissional por meio da mobilidade de carreira e melhorar as
circunstâncias em que vivem e trabalham”, diz o relatório.
Por
outro lado, há uma “grave preocupação” com a “migração em larga escala de
enfermeiras dos países mais vulneráveis do mundo, motivada principalmente pelo
recrutamento ativo de trabalhadores por um pequeno número de nações de alta
renda, como o Reino Unido, os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, a Alemanha
e as Monarquias do Golfo”.
O
ICN “condena o recrutamento direcionado de enfermeiros de países que enfrentam
uma escassez crônica de trabalhadores da enfermagem e/ou vivem crises de saúde
em que esses profissionais são necessários”.
“Esse
processo está esvaziando sistemas de saúde que já são frágeis, impedindo países
de renda média e baixa de reconstruir seus sistemas de saúde e enfrentar os
desafios do pós-pandemia e ampliando o gap no acesso à saúde entre países ricos
e pobres”, continua o relatório.
“Essa
situação sabota a possibilidade de se alcançar a nível global os Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, incluindo a cobertura universal
de saúde, até 2030”, conclui o documento.
Suavizando
a emigração
Alguns
desses países ricos estão ampliando a formação nacional de enfermeiros. No
Reino Unido, por exemplo, o Plano de Mão de Obra a Longo Prazo do NHS pretende
formar 60 mil enfermeiras na Inglaterra até 2029, o que representaria um
aumento de 54% em relação a 2022-2023.
Já
a Austrália está desenvolvendo sua Estratégia Nacional de Força de Trabalho na
Enfermagem para “ampliar sua sustentabilidade e autossuficiência”, enquanto a
Lei de Fortalecimento dos Estudos em Enfermagem aprovada em 2024 na Alemanha
busca atrair estudantes com bolsas mensais, reduzindo a escassez de mão de
obra.
O
Ministério da Saúde das Filipinas destinou verbas para a garantia de seguros de
saúde, moradia e outros benefícios para os enfermeiros, buscando conter a maré
da emigração.
Contudo,
a maioria dos outros países de renda média e baixa também enfrentam essa
escassez e, por falta de recursos e outros fatores estruturais, não conseguem
oferecer bons empregos e outras ações para reter seus trabalhadores da
enfermagem.
Em
Lesoto, na África Meridional, quase um terço das enfermeiras e parteiras
profissionais estão desempregadas, devido à falta de orçamento da Saúde.
Além
do desemprego, os enfermeiros das nações mais pobres frequentemente enfrentam
desafios como más condições de trabalho, baixos salários e insegurança laboral.
“Vimos
um aumento nas greves e na insatisfação laboral [entre os trabalhadores da
saúde] em vários países em desenvolvimento nos últimos 3 anos, como em Uganda,
Gana, Fiji e Tonga. Esse cenário deve ser reconhecido como um sintoma dos
problemas mais profundos que alimentam a emigração de enfermeiros, além de
claramente demonstrar a necessidade de fortalecer os sistemas de saúde, em vez
de esvaziá-los de sua força de trabalho”, conclui o relatório.
Fonte:
Health Policy Watch | Tradução: Guilherme Arruda, em Outra Saúde
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