quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Mapfre aprovou seguro rural a cafeicultores da ‘lista suja’ do trabalho escravo

A SEGURADORA ESPANHOLA Mapfre garantiu apólices do seguro rural para cafeicultores flagrados submetendo trabalhadores a condições análogas à escravidão. Em dois dos três casos identificados pela Repórter Brasil, os produtores já integravam o cadastro conhecido como “lista suja” do trabalho escravo no momento em que as apólices foram contratadas.

Os seguros foram pagos parcialmente com dinheiro público, por meio do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). Para auxiliar produtores na contratação de seguros, o PSR cobre até 40% do valor cobrado pelas seguradoras. Os dados dos beneficiados pelo programa foram obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI).

Os três contratos dos cafeicultores flagrados com trabalho escravo foram assinados em 2023, ano em que a Mapfre recebeu R$146,3 milhões de subvenções, figurando como a terceira maior receptora de recursos do PRS. 

Questionada, a seguradora não esclareceu se houve falha ou ausência de checagem da “lista suja”, tanto no momento da assinatura das apólices como no monitoramento dos segurados. Em nota, a Mapfre afirmou que “continua comprometida com o aperfeiçoamento de seus processos”.

Responsável pela concessão dos subsídios através do PSR, o Mapa afirmou à Repórter Brasil que “irá acionar a seguradora e verificar os indícios apontados”. A pasta afirmou ainda que “as operações serão canceladas e o respectivo valor da subvenção federal será ressarcido” caso seja confirmada qualquer irregularidade.

•                                        Alojamentos precários e comida no ‘fiado’

Um dos cafeicultores segurados pela Mapfre é Luiz Sérgio Marques, dono da Fazenda Haras July, em São Sebastião do Paraíso (MG). Em agosto de 2021, uma operação de fiscalização resgatou sete trabalhadores de condições análogas à escravidão.

Alojados em um antigo alambique, os empregados trabalhavam na colheita do café em condições degradantes, sem acesso à água potável, nem instalações sanitárias adequadas, de acordo com relatório de fiscalização, ao qual a reportagem teve acesso. Após a fiscalização, o cafeicultor pagou R$ 62,4 mil em rescisões e dano moral individual aos resgatados.

Dois anos após o flagrante, em julho de 2023, Marques assinou uma apólice de seguro rural junto à Mapfre, com uma subvenção do governo federal de R$ 2,4 mil, para uma área de 9 hectares. Desde abril daquele ano, o cafeicultor integrava a “lista suja” do trabalho escravo.

Também no sul de Minas Gerais, outro cafeicultor, autuado em julho de 2020, seria mais tarde beneficiado pelo seguro rural contratado com a Mapfre. Trata-se de Romildo de Paula Cintra, proprietário do sítio Santa Maria, em Ibiraci (MG). No local, 10 trabalhadores foram resgatados.

Segundo o relato de auditores fiscais do Trabalho no relatório de fiscalização, obtido pela Repórter Brasil, os trabalhadores abriram uma conta em um armazém indicado pelo empregador para fazer a compra de alimentos e outros itens. “O preço que pagavam pelo produto comprado ‘fiado’ no supermercado era bem superior àquele que estava indicado na prateleira da loja”, registra o relatório.

Além de alimentos e botijões de gás, os trabalhadores contaram às autoridades terem comprado por conta própria equipamentos para a execução do trabalho e garrafas para carregar água nos cafezais. Em instalações precárias, eles também se organizaram para comprar juntos uma geladeira, diz outro trecho do relatório de fiscalização.

O seguro garantido pela Mapfre teve início em abril de 2023, cobrindo uma área de 68 hectares. Desde outubro de 2022 o produtor já figurava na “lista suja” do trabalho escravo. A subvenção do governo federal para o seguro rural de Romildo Cintra foi de R$30 mil. Sua apólice, assim como a de Marques, venceram neste ano.

Já o terceiro caso apurado pela reportagem contou com uma apólice vigente até a última sexta-feira (16). Luis Henrique Silveira passou a figurar na “lista suja” do trabalho escravo em abril deste ano, oito meses após ser segurado pela Mapfre.

O contrato com a seguradora espanhola teve início no dia 17 agosto de 2023. Duas semanas antes, uma fiscalização em uma de suas propriedades, a fazenda Santos Reis II, em Itamogi (MG), flagrou 24 trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão. O valor bruto das rescisões somou R$ 226,3 mil.

Os seguros rurais contratados pelos três cafeicultores foram voltados ao custeio da produção em caso de eventos adversos como chuvas, enchentes, secas, granizo, pragas ou doenças.

•                                        Compromissos da Mapfre

Conceder um seguro rural para uma propriedade flagrada com trabalho escravo não representa uma infração à legislação, mas contraria políticas Ambientais, Sociais e de Governança (termo conhecido pela sigla ESG) e compromissos assumidos por companhias.

A Mapfre é signatária do Pacto Global da ONU, que prevê a eliminação de trabalho forçado ou compulsório, e da Agenda 2030, iniciativa que lista 17 objetivos de Desenvolvimento Sustentável, entre eles o de promover o trabalho decente.

Em relação aos casos dos produtores da “lista suja” do trabalho escravo segurados pela companhia, a Mapfre se limitou a afirmar que não mantém mais apólices ativas com Romildo de Paula Cintra e Luiz Sérgio Marques. A seguradora não esclareceu, no entanto, porque aprovou a concessão dos seguros mesmo com o nome dos dois cafeicultores no cadastro federal.

Já no caso de Luis Henrique Silveira, a seguradora espanhola afirmou que, assim que identificou o nome do cliente na “lista suja”, adotou “medidas necessárias, com diligências já em andamento”, sem detalhar quando e quais ações foram tomadas. Leia o posicionamento completo da Mapfre aqui.

Romildo de Paula Cintra atendeu a Repórter Brasil por telefone, mas se recusou a dar entrevista. A reportagem não conseguiu contato com os produtores Luiz Sérgio Marques e Luis Henrique Silveira.

•                                        Lacunas em critérios sociais

“O setor de seguros ainda ensaia os primeiros passos na gestão de riscos socioambientais”, avalia a diretora da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS), Luciane Moessa.

Ao avaliar as seguradoras pelo Ranking de Atuação Socioambiental, a SIS concedeu a nota mais alta do setor à Mapfre: 12,39, em uma pontuação que vai de 0 a 100. A seguradora, no entanto, não demonstrou consultar o cadastro de empregadores autuados pela submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão. “De fato, foi verificado que a seguradora não consulta a ‘lista suja’ do trabalho escravo, de acordo com as fontes públicas de informação consultadas, sendo que ela não enviou informações adicionais à equipe quando convidada a fazê-lo”, detalha Moessa.

Ex-procuradora do Banco Central, ela recorda que os bancos passaram a consultar a “lista suja” como condição para concessão do crédito rural após esse processo se tornar obrigatório, em 2010. “Deveria ser simplesmente proibido conceder qualquer tipo de seguro a uma empresa incluída na ‘lista suja’, pois essa inclusão somente ocorre a partir da conclusão de processos administrativos em que foi constatada a situação, nos quais se assegura ampla defesa às empresas”, conclui.

Em fevereiro deste ano, a Repórter Brasil revelou que outras seguradoras, como Porto Seguro, Brasilseg e Essor, também mantiveram apólices para fazendeiros flagrados com trabalho escravo e incluídos na “lista suja”.

O Mapa prevê para o final do semestre a implementação de um sistema de monitoramento que identifique inconsistências nas áreas seguradas pelo PSR. A partir de coordenadas geográficas, o sistema irá checar bases de dados, como a  “lista suja”, autuações de órgãos ambientais e sobreposições a terras indígenas.

 

•                                        Amazônia tem pior temporada de queimadas em 17 anos, corredor de fumaça se espalha e afeta 10 estados

O céu está cinza e o ar está difícil de respirar. A densa camada que vem cobrindo o céu é reflexo das chamas na Amazônia, que registra o maior número de focos de fogo em 17 anos, e se soma com a seca que castiga mais de mil cidades brasileiras.

Segundo especialistas, a fumaça afeta dez estados e vai seguir sobre o país até o fim da semana.

🔥 A Amazônia está em chamas. A floresta registrou 59 mil focos de fogo desde janeiro até agora. O número é o maior desde 2008 e pode aumentar, já que o levantamento é feito mês a mês e agosto ainda não terminou. Toda essa fumaça que cobre a floresta está viajando milhares de quilômetros.

Esse volume ainda se soma ao que vem do Pantanal, de Rondônia com a queimada no Parque Guajará-Mirim há um mês, e da Bolívia, formando uma densa camada cinza na atmosfera que é arrastada para o restante do mapa formando um "corredor de fumaça".

Até agora, há registros de fumaça nos seguintes estados:

•                                        Rio Grande do Sul

•                                        Santa Catarina

•                                        Mato Grosso do Sul

•                                        Mato Grosso

•                                        Acre

•                                        Rondônia

•                                        Oeste do Paraná

•                                        Parte de Minas Gerais

•                                        Trechos de São Paulo

•                                        Amazonas

➡️ A previsão é que a partir desta quarta-feira (21) o volume de fumaça piore com o vento frio que traz a frente fria do fim de semana.

<><> Por que isso está acontecendo?

🔥 A primeira causa está relacionada à intensidade do fogo. Na Amazônia Legal, foram registrados, só no mês de agosto, mais de 22 mil focos de incêndio. No mesmo período do ano passado, por exemplo, o número era de 12 mil. Este é o pior momento para a floresta neste período dos últimos 17 anos. (Veja a evolução no gráfico abaixo)

No restante do país, o cenário também não é favorável. De forma geral, o país está no pior momento em relação aos focos de incêndio da última década.

➡️ O segundo fator é a seca, que serve como ignição para os focos de incêndio, somando-se às queimadas ilegais. Geralmente, a estiagem acontece de agosto a outubro, mas o pico acontece em setembro, quando sentimos mais os impactos. No entanto, meteorologistas explicam que ela chegou antes do previsto, ainda em julho.

A causa disso é uma consequência do El Niño, que deixou um déficit hídrico com a seca que causou no ano de 2023, e que se soma ao aquecimento do Atlântico, que continua fervendo. A consequência disso é menos umidade e chuva pelo país, além do aumento das temperaturas, por causa do aquecimento global.

➡️ Segundo o Cemaden, que também monitora as secas no país, há mais de mil cidades em situação de estiagem, variando de severa a moderada. Entre os municípios da Amazônia, mais de 60% estão sob essa classificação. Esse cenário torna o território mais propenso ao fogo e à expansão dos incêndios.

Isso fez com que o período crítico de queimadas chegasse antes do tempo e a preocupação é se ele vai terminar antes ou se vamos ter um período de queimadas estendido.

O que mais preocupa este ano, em relação aos anteriores, é que não se sabe ao certo se o que está acontecendo é simplesmente uma antecipação do período crítico ou se, realmente, teremos um período mais longo de exposição à fumaça tóxica, já que o pico da poluição em 2023 foi em outubro. Seria algo inusitado e extremamente preocupante. — Jesem Orellana, epidemiologista e pesquisador da Fiocruz.

•                                        Por que há fogo recorde na Amazônia se o desmatamento caiu?

Segundo o último levantamento do Inpe, houve uma redução de 45% no desmatamento na Amazônia no último ano, entre agosto de 2023 e julho de 2024. O número é um recorde em termos de preservação e representa o menor índice de perda do bioma registrado desde o início da série histórica, que começou em 2015.

➡️ E você pode se perguntar: como há mais fogo se o desmatamento está caindo?

O pesquisador do Inpe Luiz Aragão que atua no monitoramento de queimadas, explica que isso ocorre porque, apesar da redução, o desmatamento ainda continua. Mas principalmente as áreas desmatadas anteriormente continuam sendo afetadas pelo fogo.

A Amazônia tem mais de 800 mil quilômetros quadrados de áreas desmatadas, a maioria utilizada para pastagem. Portanto, quem está nessas áreas continua utilizando o fogo para o manejo do pasto, o que aumenta a incidência de queimadas, somando-se às novas invasões. Ou seja, não basta apenas reduzir o desmatamento, é necessário monitorar o que acontece com as áreas já destruídas. — Luiz Aragão, pesquisador do Inpe

Ele reforça que, com o clima mais seco que a região vem enfrentando, o fogo utilizado em áreas específicas acaba se alastrando, atingindo grandes proporções e produzindo grandes quantidades de fumaça, como a que estamos vendo.

<><> E como essa fumaça viaja tantos quilômetros?

➡️ O primeiro ponto para entender o motivo disso estar acontecendo é compreender que a atmosfera, que é a camada de gases que envolve a Terra, é uma só. Ou seja, mesmo que um evento seja isolado, como o fogo na Amazônia, quando a fumaça sobe para a camada da atmosfera, ela pode ser transportada para qualquer lugar.

➡️ O segundo ponto são as correntes de vento. Há um fluxo natural que vem do oceano, entra no território brasileiro pelo nordeste, passa pela Amazônia ganhando umidade e segue para o sul do Brasil. Esse é o mesmo sistema, por exemplo, que afeta o país com a seca que existe no Norte. (Veja abaixo)

No entanto, dessa vez, ao passar pela Amazônia, a corrente encontrou a fumaça e continuou seu ciclo, empurrando-a para o Sul do país, formando um “corredor de fumaça”.

Esses ventos continuam em fluxo para o restante do país, o que fez espalhar a fumaça, atingindo pelo menos dez estados brasileiros.

Esse fluxo que deveria trazer umidade da Amazônia para o Sul encontrou fumaça e trouxe esse volume com ela. Ao chegar ao Sul, os ventos frios foram empurrando a fumaça, fazendo com que chegasse a outros estados no país. É como um sistema interligado.— Fábio Luengo, meteorologista do Climatempo.

<><> E o que esperar para os próximos dias?

➡️ Segundo os especialistas, a partir de quarta-feira (21) a previsão é de que o cenário piore e a quantidade de fumaça aumente, atingindo com mais intensidade a capital São Paulo, indo até o interior do estado, avançando sobre Belo Horizonte em Minas Gerias e várias cidades do Paraná.

Isso vai acontecer por causa do vento frio que está trazendo a frente fria que vai avançar sobre o Centro-Sul. O meteorologista do Centro de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), Giovani Dolif, explica que o ar frio vai comprimir a fumaça, fazendo com que ela chegue mais rápido ao restante do mapa.

Com a formação da frente fria, o ar frio vai comprimir esse corredor de fumaça que se formou e vai acelerar a chegada no Centro-Sul do Brasil. Isso vai diminuir a intensidade da fumaça no Rio Grande do Sul, onde está mais concentrada agora, mas vai espalhá-la com mais intensidade para outros estados brasileiros. — Giovani Dolif, meteorologista do Cemaden, ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia.

A previsão é que no fim de semana, quando a frente fria chega até a parte central do país, a fumaça seja empurrada para o oceano e haja uma trégua.

E você pode se perguntar, depois disso, a fumaça vai desaparecer? A resposta é que não. Ao voltar ao oceano, o ciclo natural do vento (que entra pelo oceano, levando até a Amazônia e é empurrado para o Sul) se repete. Se houver fumaça, ela pode voltar.

“A gente tem uma trégua depois da frente fria, mas se quando esse fluxo de ar for se repetindo ainda encontrar fumaça, ela pode voltar a circular. A trégua só acontece mesmo quando os incêndios acabarem ou quando vier a estação chuvosa, que só começa no fim de outubro”, explica Dolif.

 

Fonte: Reporter Brasil

 

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