segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Manipulação digital sem precedentes: ‘a pirâmide do coach vai cair?’

Não é exagero dizer que a ascensão de Pablo Marçal na corrida eleitoral é um caso de manipulação digital sem precedentes. O coach, candidato à prefeitura de São Paulo pelo PRTB, inundou as redes sociais nos últimos anos com uma estratégia agressiva de anúncios, o tráfego pago. E, agora, usa essa estrutura para tentar se eleger prefeito da maior cidade do país.

Para se ter uma ideia do impacto, de janeiro deste ano até o início oficial da campanha eleitoral, em 16 de agosto, mais de 6.400 anúncios rodaram no Instagram e no Facebook mencionando Pablo Marçal – sem o rótulo de anúncio político (com o rótulo, a título de comparação, foram apenas 380).

Dessa forma, escapam das frouxas normas de transparência da Meta, já que para propagandas sobre eleição e política, a empresa revela os valores investidos.

Quanto dinheiro a Meta já faturou com Pablo Marçal? Não dá para saber. Mas a cifra certamente ultrapassa centenas de milhares de reais, o que constitui um bom negócio para os dois lados: o político e a plataforma.

A ascensão do coach é mais um exemplo claro de como o modelo de negócio das big techs, baseado em sugar dados das pessoas para vender anúncios direcionados, pode distorcer a opinião pública e influenciar eleições.

A arquitetura das redes sociais é pensada para isso: manipular e influenciar. O que Marçal faz é um uso otimizado e ultraeficiente dessa estrutura, agora aplicada em uma campanha eleitoral.

Mas a estratégia de Marçal não é só um case de marketing digital. A perversidade vai além: transpõe para o universo digital um dos golpes mais antigos e perigosos que existem na praça, o esquema de pirâmide.

Nesta semana, nos debruçamos sobre o caso que ficou conhecido como "Cortes do Marçal", uma competição onde os participantes recebem prêmios por gerar o maior número de visualizações em suas próprias páginas, de conteúdos do coach.

Os vídeos, nomes das páginas, as legendas e até as hashtags são sugeridas pela equipe de Marçal. Nós gastamos muitas horas frequentando o canal do Discord onde o torneio acontece.

Não é só um gincana na internet. É uma engenharia social complexa, que brinca com o sonho de milhares de pessoas: os participantes são seduzidos pela possibilidade de levarem prêmios diários, mensais ou acumulados dentro da própria comunidade.

Os valores são baixos, mas servem para incentivar os participantes a viralizarem conteúdos nas redes sociais e, quem sabe um dia, enriquecerem.

"Marçal emerge de uma carência, de um mundo que está gritando por uma profunda falta de política pública robusta de emprego. A mensagem falaciosa dele é que todo mundo vai ser empreendedor", explicou a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, que já foi nossa colunista por aqui, em entrevista nesta semana ao UOL.

Em seu esquema de cortes, é possível enxergar esse mecanismo em ação. Marçal alimenta a ilusão, afirmando que "meninos" podem ganhar até R$ 400 mil com o esquema, embora isso nunca tenha sido comprovado. Na realidade, alcançar essas cifras requer níveis estratosféricos de audiência e engajamento, o que não só é uma tarefa monumental, mas também exige jornadas de trabalho extenuantes.

Pinheiro-Machado, que estuda o mundo do marketing digital e sua relação com a precarização e a ascensão de ideologias de extrema direita e ultraliberais, afirmou que Marçal ainda vai crescer muito. Nesta semana, as pesquisas já mostraram isso. "Talvez ele seja a pessoa mais especializada em explorar as redes sociais entre todos os políticos", ela disse.

Marçal é recente, mas já dá para cravar: estamos diante de um outro fenômeno político. Enquanto o bolsonarismo utilizou a retórica de ódio, fake news e radicalização à direita para engajar sua audiência, o coach combina tudo isso com promessas de riqueza e sucesso. O alimento perfeito para os algoritmos em um país sedento por emprego e possibilidades de futuro.

•                                          Pablo Marçal pagou por vídeo negativo de Boulos nas redes sociais

O coach Pablo Marçal não está apenas pagando seus apoiadores pela publicação de vídeos de sua campanha nas redes sociais. O candidato do PRTB premiou, também, pelo menos um vídeo com campanha negativa contra seu adversário, Guilherme Boulos, do Psol, mostra um levantamento do Intercept Brasil.

Especialistas em Direito Eleitoral afirmam que o teor dos vídeos remunerados pode agravar ainda mais o caso de Marçal, que já está na mira do Ministério Público Eleitoral. O MPE pediu na segunda-feira, 19, a cassação do registro do candidato por abuso de poder econômico no esquema batizado de “Cortes do Marçal”.

Nele, o coach paga a apoiadores que divulgam seus vídeos durante a pré-campanha, com prêmios de até R$ 70 mil para os que atingirem mais visualizações. A competição inclui plataformas como Instagram, TikTok e YouTube, com uma contagem rigorosa, que vamos detalhar a seguir, para determinar os vencedores.

Para o Ministério Público Eleitoral, o esquema permite que Marçal não preste contas sobre o dinheiro, ou seja, trata-se de financiamento não declarado de campanha – o que desequilibra a disputa eleitoral. O pedido do MPE, no entanto, considerou apenas postagens no período pré-eleitoral. Quando a campanha começou, as coisas ficaram ainda piores. 

O perfil do TikTok @ativeoscodigos foi premiado em 18 de agosto, dois dias depois do início da campanha, por ter publicado um corte no TikTok que atingiu 1 milhão e 200 mil visualizações.

Trata-se de um vídeo em que um dos sócios de Pablo Marçal, o empresário Marcos Paulo, critica comentários de seguidores de Guilherme Boulos sobre a morte de Sílvio Santos. Com uma edição que estampa uma foto antiga de Boulos ao lado de Lula, Paulo comenta sobre uma suposta mentalidade “anti-riqueza” dos apoiadores de Boulos.

A postagem rendeu R$ 200 ao dono do perfil como primeiro colocado do dia no campeonato de Marçal.

O advogado Fernando Neisser, coordenador acadêmico da Academia de Direito Eleitoral, assistiu ao vídeo e comentou a pedido da reportagem: “Eu não tenho dúvida nenhuma que esse é um vídeo de propaganda negativa nos termos daquilo que entende a Justiça Eleitoral sobre propaganda negativa pra essa finalidade, daquela que não pode ser impulsionada com dinheiro”, afirmou.

“A Justiça Eleitoral tem uma visão muito estreita de que só pode propaganda que fala exclusivamente bem da própria candidatura. Há uma leitura crítica de comentários ali, vinculando isso ao grupo do Boulos. Isso, é sem dúvida, negativo”, disse Neisser ao Intercept.

Em 17 de agosto, o perfil do Instagram @produtivamentecortes ficou em terceiro lugar no ranking de premiação diária, ganhando R$ 100. Naquele dia, o vídeo mais assistido de sua página chegou a 18 mil visualizações. Trata-se, novamente, de um depoimento de Marcos Paulo. Desta vez, ele faz uma previsão de que Marçal vai vencer a eleição no primeiro turno.

Outro apoiador premiado depois do início da campanha eleitoral, em 16 de agosto, foi o dono do perfil @zerozerododigital no Instagram. Ele conseguiu 27 mil visualizações em um vídeo. A página diz tratar de marketing digital e vendas, mas publica vídeos com críticas a autoridades políticas, como o presidente Lula. Ele ganhou R$ 100 no primeiro dia oficial de campanha.

Nesta segunda-feira, em um dos canais de bate-papo do Discord em que os usuários divulgamos links de seus cortes já publicados, é possível ver dezenas de materiais oficiais da campanha de Marçal circulando, inclusive com número da candidatura.

<><> Como funciona o ‘Cortes do Marçal’

Em uma entrevista recente, o candidato do PRTB detalhou o funcionamento do esquema, referindo-se a ele como um “campeonato” que criou. “Essa explosão dos cortes fugiu do controle, e vou te explicar por quê. Eu criei um campeonato, e as pessoas estão ganhando 400 mil reais com meus vídeos. O propósito inicial era simples: quem tiver mais visualizações, ganha. E eles recebem dinheiro toda semana”, afirmou Marçal.

Ele se orgulha de ter estabelecido o que chama de uma “indústria de cortes” e incentiva seus apoiadores a “fazer dinheiro” ao postar constantemente os vídeos fornecidos por ele. “Eles recebem pelo campeonato e ainda conseguem monetizar. Eles usam minha imagem, crescem a audiência e vendem produtos”, explicou em um vídeo.

A competição promovida por Marçal tem como objetivo gerar o máximo possível de visualizações em redes como YouTube Shorts, TikTok e Instagram Reels. Em junho, quando a report

A contagem dos resultados é detalhada e considera uma série de critérios que determinam o desempenho dos vídeos e dos participantes.

De acordo com o regulamento disponível na comunidade do Discord, as visualizações diárias são contabilizadas no período entre 00h01 e 23h59 do dia anterior, exceto no Instagram, onde o intervalo vai das 2h às 20h. Somente as visualizações do dia de publicação do vídeo são consideradas, ignorando aquelas obtidas depois.

Os três vídeos mais visualizados de cada dia, em qualquer rede social, recebem prêmios. Um mesmo usuário não pode aparecer mais de uma vez no top 3 do dia. Além disso, visualizações oriundas de colaborações (collabs) ou vinculadas entre Facebook e Instagram são desconsideradas.

A competição de Marçal terá ainda uma premiação final, baseada na soma de todas as visualizações ao longo da competição. Os 20 melhores colocados recebem prêmios em dinheiro e imersões exclusivas, sendo que o primeiro lugar ganha R$ 4.000, além de acesso a cursos e imersões com Pablo Marçal. A contagem final considera todas as visualizações obtidas em vídeos válidos postados nas três redes sociais.

Além disso, há prêmios específicos para quem postar o maior número de vídeos durante o período da competição. Os 10 participantes mais ativos ganham prêmios em dinheiro, com o primeiro lugar recebendo R$ 1.500. Ao final da competição, será realizado um sorteio com 18 ganhadores, oferecendo prêmios adicionais, como acessos a imersões e cursos.

Como mostrou uma reportagem da Aos Fatos publicada em junho, na pré campanha, especialistas já apontavam violações da lei eleitoral. Segundo uma reportagem da Agência Pública, os cortes foram visualizados pelo menos 825 milhões de vezes.

Outro aspecto que mantém a máquina de Marçal de pé é a regra que determina perfis que ficarem três dias sem postar vídeos em qualquer uma das três redes sociais são removidos automaticamente da competição, embora possam se recadastrar posteriormente.

Neisser, em entrevista ao Intercept, comentou a estratégia: “Não tenho dúvida de que se trata de abuso de poder econômico e que isso pode levar à cassação da candidatura. A lei proíbe que candidatos paguem para que terceiros façam campanha eleitoral em suas próprias páginas na internet. Desde 2009, quando as campanhas na internet foram reguladas, isso é proibido”, afirmou.

<><> OBSERVAÇÃO:

Depois que revelamos como Pablo Marçal pagou por uma campanha falando mal do candidato Guilherme Boulos, o coach mandou retirar o pagamento pela postagem — um pouco tarde demais, não?

Marçal, que já está tendo sua candidatura questionada pelo MPE, aparentemente ficou com medo da nossa matéria. E é para ficar mesmo!

 

•                                          Juiz determina suspensão de perfis de Pablo Marçal nas redes sociais

O juiz Antonio Maria Patiño Zorz emitiu uma liminar a favor do PSB, determinando a suspensão das contas de redes sociais do candidato do PRTB, Pablo Marçal. Apesar da decisão, o perfil de Marçal no Instagram ainda permanece ativo. Segundo a coluna da jornalista Raquel Landim, do UOL, em sua decisão, o juiz justificou a medida afirmando ser necessário “coibir flagrante desequilíbrio na disputa eleitoral e estancar dano decorrente da perpetuação do 'campeonato', defiro o pedido de liminar, sob pena de imposição de multa diária no valor de R$ 10 mil."

Os perfis de Marçal no Instagram, YouTube e TikTok, assim como o site de sua campanha, foram suspensos. Além disso, ele está proibido de pagar os "cortadores" de conteúdo que promovem sua candidatura a prefeito de São Paulo.

A liminar atende resposta a um pedido da campanha de Tabata Amaral (PSB), que acusa Marçal de abuso de poder econômico, alegando que ele estaria remunerando seguidores de maneira indevida para promover sua campanha. Marçal nega as acusações, afirmando que os seguidores agem espontaneamente, beneficiando-se de sua imagem. Ele deverá recorrer da decisão.

"Com essa decisão, o que a Justiça Eleitoral está apontando é que há suspeitas concretas de que Marçal fez uso de recursos ilegais para se promover nessas eleições. É uma decisão liminar. Basicamente, Pablo caiu no antidoping", disse a campanha de Tabata.

 

Fonte: Por Paulo Motoryn, em The Intercept/Brasil 247 

 

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