Maira
Vasconcelos: A não-identificação racial na Argentina
A não-identificação racial também tem a ver com uma questão de
privilégio social. “Há uma hierarquia na qual aqueles que não veem sua cor é
porque sua cor pode não ter importância”, pontua a pesquisadora. Na contramão,
o governo de Javier Milei fechou o órgão responsável por acolher as denúncias,
identificar, tramitar e reparar os casos de racismo e xenofobia.
Existe
uma ideia generalizada de que a questão racial é um problema vindo de outros
países, que não pertence à Argentina, e que tentam nos impor socialmente. As
discussões sobre racismo, que ganham repercussão nacional, geralmente,
acontecem por causa de situações de denúncias vindas de fora, comentou a
doutora em História, Magdalena Candioti, autora de Una historia de la
emancipación negra: esclavitud y abolición en Argentina. Como o episódio
envolvendo jogadores da seleção argentina, que cantaram uma música racista e
xenófoba contra jogadores franceses de ascendência africana, durante as
comemorações do Bicampeonato da Copa América, deste ano. O elenco foi acusado
de racismo pela Federação Francesa de Futebol.
“Mas ao invés de se ter um unânime apoio para dizer que isso é repudiável,
emerge essa espécie de nacionalismo argentino na defensiva para minimizar o
gesto racista. Ah, mas lá (na França) eles são mais racistas”, comentou
Candioti, doutora em História pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e pesquisadora
do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET).
Historicamente,
a Argentina sustenta o discurso de uma sociedade igualitária racialmente, então
se considera irrelevante essas discussões. Completou, “mas se hoje vemos a cor
dos setores populares, a cor das pessoas que são perseguidas pela polícia, é muito
fácil identificar”.Essas considerações e análises foram feitas por Candioti,
durante uma conversa que tivemos à distância, entre Buenos Aires e Santa Fé,
via plataforma digital.
O
mesmo país que é um exemplo para a América Latina na luta por memória e justiça
pelas atrocidades cometidas durante o terrorismo de Estado, na época da
ditadura militar (1976-1983), tem sua memória afro-argentina apagada, não faz
parte dos currículos escolares. “A ascendência indígena e africana é
minimizada, esquecida, escondida”, afirmou Candioti.
No
rumo contrário à democratização do debate, reparação e identificação dos casos
de racismo e xenofobia, o governo de Javier Milei fechou definitivamente o
Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (INADI),
responsável por acolher as denúncias.
·
O racismo na Argentina
é um assunto do qual pouco se fala, pouco se discute, ou isso é uma impressão
pessoal? Digo como pauta no debate público.
Pouco
se fala, muito pouco se fala. A pergunta geralmente vem de fora. Em outras
palavras, é uma sociedade que não está acostumada a fazer perguntas, ou não
estava acostumada a se perguntar sobre essas questões. Isso tem causas
históricas profundas. Porque está ligado ao fato de que, na época da revolução
da independência, do rompimento do vínculo colonial com a Espanha,
multiplicou-se uma retórica de igualdade racial, da irrelevância da cor e da
promessa de construir uma república integradora em termos raciais, igualitária,
essa ideia da cegueira racial. Portanto, essa promessa está muito presente, e
acho que, em muitos aspectos, é uma promessa não cumprida. Mas digamos que
penetrou fortemente na convicção e na narrativa que nós, argentinos, contamos a
nós mesmos sobre as diferenças que importam e que não importam.
Então,
como nos socializamos e construímos essa nação que, supostamente, não tem raça,
parece que não há raça e, portanto, não há racismo. É claro que não existem as
raças como uma realidade biológica relevante, mas existem práticas de
racialização, de identificação e associação de pessoas com determinados lugares
sociais, com determinadas possibilidades. De fato, isso continuou a operar no
coração daquela república que se dizia igualitária. Muitas hierarquias
ligadas à escravidão, ligadas à racialização, continuaram a operar. Práticas
extremamente racistas continuaram a operar, como o processo de apagamento e
invisibilização da diáspora africana da nossa própria história. Também as
práticas de genocídio indígena que continuaram vigentes até o século XX. Então,
digamos que temos muito trabalho a fazer para poder interrogar nossa própria
história e nosso presente em termos de racismo, mesmo quando as raças não
existem. Porque essas práticas de racialização são muito ativas em uma nação
que basicamente se imagina como eurodescendente e apaga pelo menos metade de
sua história.
·
Quando a senhora diz
que o racismo é identificado por atores de fora, seria como o caso da Copa
América, no vídeo gravado pelo jogador Julián Alvarez? Depois teve um caso também
no Rio de Janeiro, em uma roda de samba, em que um argentino fez um gesto de
macaco. Como a senhora viu a discussão interna sobre o caso da Copa América,
como leu esse episódio, como foi a repercussão?
Acho
que na vida cotidiana e no espaço público, a visualização do racismo nem sempre
é problematizada de dentro para fora. Há momentos em que sim, por exemplo, no
caso de um menino assassinado por um grupo de jovens que jogam rugby. Ele foi
espancado até a morte na saída de uma boate e o chamaram de “negro de m…”, etc.
Houve uma problematização do racismo a partir de dentro. Discutiu-se como esse
insulto funciona, como essas categorias são usadas para estigmatizar e tratar
certas pessoas em termos depreciativos. Mas o escândalo se torna nacional,
quando vem de fora, em casos como esse (da Copa América), um time de futebol ou
jogadores de fora apontam que esse canto era racista.
Quando
a música que Julián Álvarez filmou foi lançada, na época, os jornalistas
perceberam que era racista e disseram isso aos torcedores que a estavam
cantando, mas foi transmitido em todos os meios. E isso se normalizou, se
normaliza muito facilmente. Parece que não é ofensivo, é rapidamente
minimizado. Então, quando há uma reação internacional em termos mais punitivos,
quando o clube de futebol penaliza os jogadores na Argentina, cria-se algo
defensivo. Em vez de dizer, se o garoto disse algo racista, isso o condena para
o resto da vida? Não, mas é bom que ele aprenda a identificar isso, que veja o
quanto é negativo, que veja o quanto é racista. E que se desculpe. Ao invés de
se ter um unânime apoio para dizer que isso é repudiável, emerge essa espécie de
nacionalismo argentino na defensiva de minimizar o gesto racista, ah, mas lá
(na França) eles são mais racistas.
·
Então, digamos que
temos muito trabalho a fazer para poder interrogar nossa própria história e
nosso presente em termos de racismo, mesmo quando as raças não existem. Porque
essas práticas de racialização são muito ativas em uma nação que basicamente se
imagina como eurodescendente e apaga pelo menos metade de sua história.
Isso
tem a ver com o fato de que há diferentes formas de construir a raça e o
racismo. Então, na Argentina, existe a ideia de que, apenas dessa maneira que
se construiu raça e o racismo, como nos Estados Unidos. Então, vejo que as
pessoas reagiram nesse caso dizendo que esse é um problema de fora, que estão
tentando nos impor, que não somos racistas. Isso mostra uma grande
impossibilidade de identificar o quão racista é o que estava sendo cantado. E
como isso é naturalizado. Como eu disse antes, isso tem a ver com o fato
de as pessoas acharem que a única maneira de construir essas raças,
racialização, está ligada à história da América do Norte. Ou seja, bem, os
afro-americanos são uma cultura super forte, identificada como tal, de mãos
dadas com a segregação. Aqui essas identidades que certamente existiram,
ligadas à diáspora africana, mas que foram relegadas, combatidas,
invisibilizadas, tiveram mais dificuldade para serem mantidas. É mais difícil
identificar, embora existam movimentos afro-argentinos, é mais difícil dizer,
bem, todo esse grupo é afro-argentino.
Parece
que as pessoas aqui tendem a pensar que, como não há uma grande maioria
afro-argentina parda e negra fenotipicamente visível, elas acham que perguntar
sobre a diáspora africana, ou pensar sobre as práticas de racialização de um
grupo de pessoas, mesmo que elas não sejam especificamente afro-argentinas, não
faz sentido. Acham que estão sendo impostas categorias que são estranhas à
realidade argentina.
·
E como mudar essa
falsa percepção social de si mesmos?
O
que nós que trabalhamos nesse campo tentamos dizer é que, claramente, há
diferentes histórias de construção de práticas de racialização, diferentes
maneiras de definir e gerenciar a alteridade, digamos, a alteridade racial na
história. Mas não é que seja assim, e certamente não funciona da mesma forma
nos Estados Unidos e aqui. Historicamente, a legitimidade do discurso racista
aberto era diferente no Norte, mas isso não significa que na Argentina não
tenhamos práticas e discursos racistas que são claramente visualizados, tanto
nesses níveis como em nível cotidiano, na construção de perfis de quem é o
argentino médio, de que cor é o argentino.
Isso
é claramente visto quando o ex-presidente (Alberto Fernández; 2019-2023) disse
que todos os argentinos vêm de barcos. Como se quisesse dizer que são
todos eurodescendentes, todos filhos de conquistadores ou de imigrantes
italianos, espanhóis e franceses, e como essas heranças são celebradas e a
ascendência indígena e africana é minimizada, esquecida, escondida. Isso é
visualizado no forte desconhecimento da história da diáspora africana na
Argentina. É por isso que o artigo publicado no Washington Post, perguntando
por que não havia mais jogadores negros, causou tanta raiva. As pessoas
responderam: o que importa a cor deles? Mas o que o artigo queria dizer é que,
se a diáspora africana na Argentina era tão relevante, por que não a vemos? E
os argentinos não sabem por que não a vemos fenotipicamente.
·
E por que não veem
isso?
Nós
não vemos porque construímos muitos dispositivos culturais para não vê-lo, para
minimizar. Dizer que todos morreram nas guerras de independência e pronto. Isso
é o que eu chamo de figura do afro-argentino permitido, o mártir das guerras de
independência. Então, esquecemos. No dia seguinte, não há mais comunidade
afro-argentina. Portanto, não investigamos, não os denunciamos. Portanto, a
maioria das pessoas não sabe que havia organizações negras e jornais negros
muito fortes até o início do século XX. Se você perguntar a qualquer argentino,
99, 99% não sabe. É algo que está fora dos currículos, fora da memória. Foi
apagado da memória, estava ativo contemporaneamente.
O
que fizemos foi um expurgo retórico, eu diria. Nós retiramos o afro-argentino
do plano do discurso e da memória, nós o apagamos. Essa é uma operação super
racista. Em nome da integração, para integrá-los, você esquece todo o seu
passado, toda a sua ancestralidade, que eles não são o que nós queremos ser,
europeus. A mesma constituição que declarou a abolição da escravidão disse que
precisamos promover a imigração europeia porque eles são as peças vivas da
civilização, como disse Alberdi (Juan Bautista Alberdi), um dos intelectuais
que elaborou essa Constituição.
Construímos muitos dispositivos culturais para não vê-lo, para
minimizar. Para dizer que todos morreram nas guerras de independência e pronto.
Isso é o que eu chamo de figura do afro-argentino permitido, que é o mártir das
guerras de independência.
Portanto,
desde a origem do projeto nacional, existe essa ideia de que há um mundo
civilizado e um mundo bárbaro, e esse mundo civilizado está ligado à Europa.
Isso era valorizado. Também é importante ressaltar que o racismo não era
legitimado publicamente. Houve uma deslegitimação retórica do racismo. Mas ele
continuou a operar de forma sub-reptícia. Os mesmos afro-argentinos que
escreviam esses jornais diriam que, na realidade, não há barreiras legais, mas
há barreiras informais. Há a zombaria, há o desprezo, como eles nos olham com
desprezo e nos consideram menos. E não temos censos nacionais, desde o
final do século XIX pararam de medir e registrar a cor das pessoas, mas se
hoje vemos a cor dos setores populares, a cor das pessoas que são perseguidas
pela polícia, é muito fácil ver a cor dos setores populares.
·
Isso que a senhora diz
sobre a cor dos setores populares. Há um abismo entre não ter o que chamamos no
Brasil de negros retintos e considerar que a sociedade argentina é branca, não?
Sim,
o bom é que o campo está se abrindo e precisamos pensar em como analisar esses
termos. Nos últimos 20, 30 anos, tem havido uma insistência na ideia de uma
Argentina branca. E essa é uma maneira de ver a questão. Sim, talvez o
argentino médio se imagine branco e, quando vê as cores, está fazendo um
racismo regional, dizendo que este vem do Norte, este deve ser filho de
imigrantes. O que esse movimento marrom está provocando é uma nova forma de
problematizar a cor. Ei, eu tenho uma cor, não estou ligado a uma comunidade
indígena específica, mas minha cor fala dessa ancestralidade diferente e sou
tão argentino quanto o argentino mais branco com sobrenome italiano, algo
assim.
A
ideia de branquitude é um pouco como a magia da branquitude, isso de se auto
denominar como sendo a norma e não querer nomear a cor, porque supõe que o
branco é o normal. Essa é a maior magia racista, não? O não marcado. Alguns de
nós, meus colegas, estamos trabalhando com essa ideia de “desmarcação”. Mais do
que branquear, desmarcar, como se disséssemos: “Não tenho cor nenhuma”.
·
Seria uma nova
retomada do assunto, a população não se autodenomina branca, mas…
Os
argentinos não se identificam necessariamente em termos de branquitude. Não há
uma reivindicação da branquitude. Mas eu digo que, analiticamente, como
historiadores, sociólogos, antropólogos, o que podemos ver é que, ao não
ver a cor, há uma operação, há uma hierarquia na qual aqueles que não veem sua
cor é porque sua cor pode não ter importância. Por outro lado, aqueles que têm
cor, entre aspas, todos nós temos cor, mas supostamente aqueles que têm cor têm
que se preocupar mais e definir se são brancos, se são negros, se são pardos,
se são marrons.
Para
não confundir a resposta, acho que precisamos problematizar como definir a
centralidade ou a importância das cores nas trajetórias. E o que você estava
dizendo, que os negros puros não são vistos como negros puros, entre aspas,
como uma ascendência africana mais óbvia, isso é verdade. Existem, mas há
dezenas ou centenas de pessoas que mantêm essas características. E isso tem a
ver com a transformação demográfica pela qual a Argentina passou.
O que estou fazendo agora é justamente periodizar essa ideia de
miscigenação que está estabelecida e faz parte dessa narrativa nacional, que as
raças não importam e não importavam, todos nós nos misturamos democraticamente.
Não importa quem vem de quem, e nisso você vê a dissolução da cor.
Bem,
estou trabalhando no século XIX, nos registros paroquiais, e a verdade é que,
especialmente em Santa Fé e Buenos Aires, vejo africanos se casando com
africanos ou afrodescendentes e afrodescendentes se casando com
afrodescendentes. Na verdade, precisamos periodizar e ver que isso não foi tão
imediato. É muito mais intergeracional. Então o peso demográfico da imigração
foi realmente muito substancial. Embora em termos relativos, na primeira metade
do século XIX, a população africana e afrodescendente fosse central, na segunda
metade do século, em termos proporcionais, ela foi muitíssimo reduzida.
Portanto, não ver, tem a ver com o fato de que eles foram superados
demograficamente, pois também tinham taxas de mortalidade muito mais altas,
taxas de natalidade mais baixas devido às condições de vida, devido à
super-representação nas campanhas militares, nos exércitos. Portanto, você não
vê essa confluência desses diferentes fatores, mas isso não significa que eles
não tenham sido relevantes.
·
Bom… Sobre o
fechamento do INADI. Em outros momentos da história da Argentina, desde que foi
criado, nos anos 90, durante o governo de Carlos Menem, como tem sido o
funcionamento, houve aplicação e articulação de políticas públicas? E o que
significa agora, depois de décadas, seja funcionando bem, mais ou menos, mas
constituído, o que significa a total dissolução do órgão?
Acho
que a criação do INADI foi importante justamente para dizer que não se pode
dizer qualquer coisa em público, não se pode tomar decisões diretamente
discriminatórias em vários espaços públicos ou institucionais. Porque recebemos
reclamações sobre escolas, sobre clubes, discriminação de diferentes tipos, em
diferentes cenários. A ideia de ter um organismo que centralizasse isso e com
uma equipe dedicada a essas questões, me parece importante.
Não
tenho um julgamento totalmente formado sobre se funcionou da melhor maneira
possível, mas posso dizer que claramente sempre foi um aliado fundamental, por
exemplo, das associações, grupos e do movimento afrodescendente na Argentina.
Apoiaram diferentes iniciativas ao longo dos anos e de todos os governos. No
último governo, em particular, foi criada uma comissão para a reparação
histórica da presença africana e afrodescendente. Portanto, acho que o INADI
sempre foi uma aliado. E também em relação a outros tipos de discriminação,
também realizou muitas atividades com a comunidade judaica, para chamar a
atenção e combater a discriminação.
Para
mim, o INADI foi uma ferramenta, foi também um sinal político para enviar uma
mensagem política, de que é importante estar atento à discriminação, à
xenofobia e tentar acompanhar as comunidades indígenas também. Embora tivesse
também um instituto dedicado à questão indígena que se articulava, exatamente,
com o INADI. Então, para mim, é uma perda porque é uma mensagem de que nada
disso importa. E também espero que a Justiça atue depois de todas essas
experiências. Acho, que, nesse sentido, a Lei Micaela foi importante (lei que
estabelece a capacitação obrigatória em gênero e violência de gênero para
funcionários públicos em todos os níveis e hierarquias). Além do fato de que
órgãos específicos, como um ministério de gênero ou o INADI, deveriam integrar
essa perspectiva ao sistema de Justiça.
Em
outras palavras, o que o governo atual está dizendo é que, se há um tribunal, o
caso pode ser processado lá. Bem, o que aconteceu antes foi que isso foi
realmente minimizado. Além disso, o INADI nem sempre implicava em judicializar
a questão, mas sim em dizer que, bem, há momentos em que as questões podem ser
resolvidas educando as pessoas, criando consciência sobre elas. Então, pensar
que a única medida é a judicial, também não me parece que ajuda.
Para
mim, é uma perda, claramente, e a mensagem é pior ainda. E vem dessa ideia
bastante… do que dizíamos antes, em vez de multiplicar as instâncias para poder
defender e proteger aqueles menos privilegiados, é supor que qualquer um pode
chegar à Justiça, que qualquer um vai conseguir iniciar um processo. Então,
desarticula uma instância que já existia e tinha gente formada trabalhando e
que poderia ser acessível na defesa contra as discriminações, contra o racismo.
Fonte:
Jornal GGN
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