Trabalhadores
da aviação explicam como más condições afetam a segurança dos voos
Dor
de cabeça, sensação incontrolável de sono, esquecimento e irritação. Esses
foram alguns dos sintomas relatados ao sindicato da categoria por pilotos,
copilotos e comissários de voo. Eles estão fatigados. A situação é a mesma para
os mecânicos de aeronaves e agentes de aeroportos, segundo o sindicato dos
aeroviários.
Em
uma audiência pública da Agência
Nacional de Aviação Civil, a Anac, em junho deste ano, um piloto da Voepass,
empresa envolvida em um acidente aéreo que matou 62 pessoas, relatou cansaço, viagens de até duas horas e meia até o local
de trabalho e ligações da empresa durante sua folga. Desde 2023, a empresa foi
alvo de uma denúncia feita ao Sindicato Nacional dos Aeronautas, relacionada à
segurança de voo.
Mas
esse é um problema de toda a indústria. Conversei sobre as condições de
trabalho dos profissionais da aviação com sindicalistas que representam as
diversas categorias do setor, com um advogado trabalhista que atua há 30 anos
na área e com um mecânico de avião que tem quase 40 anos de experiência.
Todos
foram unânimes: a jornada excessiva e a precarização do trabalho na aviação
afeta diretamente a segurança das viagens aéreas.
Desde
janeiro de 2023, o sindicato dos aeronautas recebeu 136 relatos de problemas
que aconteceram durante a operação e que poderiam afetar a segurança do voo,
como fadiga e más condições de trabalho.
A
Latam foi a empresa mais reportada por pilotos, copilotos e comissários de voo,
com 51 denúncias. Em seguida está a Gol, com 48, e a Azul, com 19. As outras
empresas aéreas somam 18 denúncias.
A
Anac garantiu que atua para “assegurar os níveis adequados de segurança e de
qualidade na prestação dos serviços aos passageiros”. Para isso, disse a
agência, realiza atividades periódicas de vigilância em relação a todas as
empresas de transporte aéreo e incorpora a esse processo as denúncias recebidas
pelo órgão. Sobre as más condições de trabalho dos funcionários, a agência
disse que não possui ingerência legal para atuar.
·
Esquema de otimização de escalas leva
tripulantes à fadiga
Monitorar
o nível de exaustão dos tripulantes é tão relevante que existe até uma norma da
Anac, com requisitos para o gerenciamento de risco da fadiga desses
trabalhadores – o Regulamento Brasileiro da Aviação Civil, a RBAC 117.
Esse
documento considera que a fadiga é o estado fisiológico de redução da
capacidade de desempenho físico ou mental, que pode prejudicar o nível de
alerta e a habilidade de uma pessoa executar atividades relacionadas à
segurança operacional dos voos.
Os
principais fatores para isso são sono acumulado, vigília estendida, excesso de
carga de trabalho e os ciclos circadianos, ou seja, o ritmo com que a pessoa
realizou suas funções ao longo do dia.
Desde
janeiro de 2023, o Sindicato Nacional dos Aeronautas recebeu 83 reportes
de fadiga de pilotos, copilotos e comissários
de voo. As informações enviadas por meio de um formulário, disponível no site
da entidade, são importantes para identificar as condições físicas, cognitivas
e emocionais de quem trabalha nos ares.
Os
tripulantes citaram dor de cabeça, sensação incontrolável de sono e bocejos
como sintomas físicos mais recorrentes. Já os sintomas cognitivos foram
esquecimento e atenção prejudicada. Irritação e mau humor foram descritos como
os principais sintomas emocionais.
Segundo
o presidente do sindicato dos aeronautas, Henrique Hacklaender, a lei permite
que o tripulante trabalhe 12 horas seguidas, descanse pelo mesmo período e
retorne para mais 12 horas de operação. Isso pode perdurar por até cinco dias
consecutivos, dependendo da escala que o trabalhador receber.
“As
empresas aéreas utilizam programas de otimização de escala que levam à fadiga.
Com isso, o tripulante pode cometer erros durante uma operação e, por
consequência, diminuir os patamares de segurança de voo”, disse o sindicalista.
Ele
avalia que tudo se agravou depois de 2020, com a redução no número de voos
devido à pandemia do coronavírus e a demissão de vários tripulantes. Só a
Latam demitiu cerca de 2.700 profissionais naquele ano.
Hoje,
a quantidade de voos já é maior do que antes da pandemia mas,
segundo Hacklaender, novas admissões não foram feitas em quantidade suficiente.
“Com isso, diversos profissionais vêm trabalhando no seu limite. A fadiga é,
com certeza, o maior problema enfrentado pelos tripulantes na aviação
brasileira atualmente”, afirmou.
Esse
é o motivo pelo qual o sindicato dos aeronautas tem pressionado o poder público
para revisar a RBAC 117. “Entendemos que a Anac precisa observar mais a
experiência operacional dos tripulantes para prever as mitigações necessárias
no sentido de reduzir os níveis de fadiga”, disse Hacklaender.
Entre
as reivindicações estão o aumento do tempo de repouso e a diminuição dos tempos
perdidos pelos tripulantes dentro dos aeroportos.
Segundo
o presidente do sindicato dos aeronautas, os problemas de fadiga e de violação
de direitos trabalhistas que afetam a segurança dos voos acontecem de modo
generalizado na aviação brasileira, principalmente nas grandes companhias
aéreas que fazem transporte doméstico e internacional. “Temos ações coletivas
contra todas as empresas”, disse Hacklaender.
A
Anac informou que está discutindo alterações nas regras sobre gerenciamento de
fadiga entre profissionais da aviação comercial. Uma audiência pública foi
realizada no dia 28 de junho e a consulta pública terminou no dia 12 de agosto.
“O
objetivo é ouvir aeronautas, empresas, organizações e especialistas para
aprimorar a norma que regula o tema, aperfeiçoar as possibilidades de
negociação entre profissionais e empresas e promover melhores condições para o
fomento de jornadas mais produtivas”, disse a agência, em nota.
Em
nota, a Voepass destacou que “cumpre e respeita a legislação vigente” e segue
todos os protocolos “que atestam a conformidade dos procedimentos e
equipamentos”. A Latam disse que “as escalas dos tripulantes são elaboradas por
meio de programas focados no gerenciamento da fadiga”. Já a Gol informou que
“mantém seus canais abertos para todos os colaboradores e seus representantes
para fornecerem relatos que ajudem a aprimorar nossos protocolos de Segurança”.
A Azul não se pronunciou.
·
Em solo, funcionários alegam pressão para
não atrasar voos
As
más condições de trabalho dos funcionários da aviação que atuam nos aeroportos
se assemelha à dos tripulantes de voo, no que se refere à sensação de fadiga e
à jornada excessiva, mas é ainda pior devido aos salários mais baixos.
Dependendo da função, essas pessoas ganham pouco mais de um salário
mínimo.
O
Sindicato Nacional dos Aeroviários, que representa os trabalhadores de solo,
como mecânicos, agentes de aeroporto e funcionários que carregam e descarregam
as aeronaves, move mais de 800 ações trabalhistas contra as companhias aéreas e
empresas terceirizadas, como Swissport e Dnata, que prestam serviço dentro dos
aeroportos.
Os
motivos dos processos são principalmente excesso de horas extras, não pagamento
do adicional de periculosidade e do adicional noturno, desvio de função,
descumprimento da Convenção Coletiva de Trabalho e da hora reduzida no trabalho
noturno.
O
advogado Álvaro Quintão, responsável pelas ações trabalhistas do sindicato há
quase 30 anos, percebe que houve uma mudança no perfil dos processos. “Até 15
anos atrás, as principais demandas eram por não pagamento de hora extra, de
férias ou atraso nos salários. Agora, as ações estão mais relacionadas a desvio
de função e excesso de jornada”, afirmou.
Isso
acontece, segundo Quintão, porque as empresas reduziram muito o número de
trabalhadores e aumentaram a quantidade de voos. “Funcionários que trabalhavam
seis horas antes estão tendo que trabalhar oito, dez horas por dia”, disse o
advogado.
Segundo
o presidente do sindicato, Luiz Rocha Cardoso, além da jornada excessiva, os
trabalhadores são pressionados por agilidade, para garantir que os voos saiam
no horário. “Às vezes, uma mesma pessoa tem que atender duas ou três aeronaves
ao mesmo tempo. Isso tira o foco do profissional e afeta diretamente a
segurança do voo”, afirmou.
Ao
menos 10 aeroportos de vários estados foram fiscalizados em 2024 pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e
Emprego. Em março, por exemplo, a operação Plano de Voo investigou, entre
outras coisas, denúncias relacionadas a jornadas e escalas de serviço nos três terminais do Rio de Janeiro.
A
fiscalização verificou que as equipes de carregamento de bagagens no aeroporto
de Santos Dumont são reduzidas e os trabalhadores são submetidos à realização
de múltiplas tarefas.
As
denúncias, que se repetem em outros estados, foram feitas por trabalhadores de
companhias aéreas, empresas terceirizadas e pelo sindicato de aeronautas e
aeroviários.
·
Mecânico de aeronave tem que dar um
jeitinho
Poucas
profissões exigem 100% de acerto. Na maioria delas, é possível cometer alguns
erros sem grandes problemas e corrigi-los no percurso. Não é o caso dos
mecânicos de aeronaves.
A
vida de centenas de pessoas depende da excelência do trabalho desse
profissional que, por sua vez, depende das condições oferecidas pelas empresas
aéreas. É aí onde está o problema, segundo me disse o mecânico Maciel Fogo.
“As
empresas não entregam o que a gente precisa. Falta ferramenta, tempo e o local
adequado para realizar o trabalho. Na maioria das vezes, temos que dar um
jeitinho, se virar nos trinta. Eu falo assim, porque já estou há quase 40 anos
vendo isso. Eu posso garantir: as condições que as empresas nos dão estão muito
aquém”.
Fogo
explicou que o mecânico precisa ter, no mínimo, 20 minutos para fazer a
avaliação primária de uma aeronave que acaba de pousar. O trabalho consiste em
verificar a parte externa do avião, ver se não aconteceu algum imprevisto, como
desprendimento de uma superfície ou a queda de um parafuso, por exemplo.
O
ideal seria fazer isso depois do desembarque dos passageiros, e antes do novo
embarque, mas a empresa não dá esse tempo, segundo Fogo. “Temos que atuar
simultaneamente ao desembarque e ao embarque. É muito comum eu trombar com os
passageiros na escada. A gente tem que dar conta da inspeção o mais rápido
possível”, disse.
A
exceção é apenas quando o avião precisa de uma manutenção mais demorada, como
troca de pneu ou problema no motor. Nesse caso, a aeronave fica retida. “Mas,
se for a rotina para liberação, nós realmente trabalhamos debaixo de uma
pressão constante”, afirmou o mecânico.
·
Empresas nacionais estão perdendo mecânicos
experientes
O
piso salarial de um mecânico de aeronave no Brasil é de cerca de R$ 2.500,
quantia que vai melhorando com o passar dos anos, mas ainda está longe de
chegar ao valor que esse profissional ganha se trabalhar para uma empresa
estrangeira.
Segundo
Fogo, que também é diretor do sindicato dos aeroviários, o mecânico que ganha
R$ 3 mil em uma companhia aérea nacional pode receber até R$ 11.000 em empresas
como a American Airlines.
Além
do salário, as empresas brasileiras estão perdendo os melhores e mais
experientes mecânicos devido às más condições de trabalho que oferecem. “Há
muita cobrança, um volume exacerbado de trabalho, um reconhecimento pífio e um
mérito financeiro quase inexistente”, disse Fogo.
A
migração dos mecânicos também é um problema que pode afetar a segurança dos
voos, segundo o sindicalista. “Menos de quatro anos de experiência é muito pouco
para liberar uma aeronave com 300 passageiros, trocar um motor ou uma roda. As
empresas nacionais correm o risco de ficar apenas com esse quadro de
profissionais”, alertou.
Fonte:
Por Nayara Felizardo, em The Intercept
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