Aliança
entre evangélicos e conservadores transforma lei orçamentária em arma
ideológica
A
tramitação do projeto que originou a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para
o ano de 2024 foi um tanto controversa. O que se espera nesse tipo de
proposição são debates em torno da finalidade do orçamento anual da União para
questões prioritárias, como saúde, educação e segurança pública. No entanto, a
maioria dos parlamentares estava mais preocupada em garantir que o dinheiro
público não fosse usado para cirurgias de troca de sexo em crianças e ações que
extinguissem o conceito tradicional de família.
Quem
acessar o texto da Lei nº 14.791, no artigo 185, vai observar que os recursos
do governo federal não podem ser usados para financiar: “invasão ou ocupação de
propriedades rurais privadas”; “ações tendentes a influenciar crianças e
adolescentes, da creche ao ensino médio, a terem opções sexuais diferentes do
sexo biológico”; “ações tendentes a desconstruir, diminuir ou extinguir o
conceito de família tradicional, formado por pai, mãe e filhos”; “cirurgias em
crianças e adolescentes para mudança de sexo”, e “realização de abortos, exceto
nos casos autorizados em lei”. Todos esses dispositivos, por si só, são
incabíveis e não têm fundamentação técnica ou jurídica. Mas a principal questão
é: por que trazer a discussão da pauta dos costumes para uma lei orçamentária?
O
protagonista neste cenário de disputas ideológicas é o deputado federal Eduardo
Bolsonaro, que elaborou uma emenda, solicitando a inclusão desse artigo.
Inicialmente, essa proposta de reforma foi aprovada pelo voto favorável de 305
deputados e 43 senadores, mas depois foi reprovada no texto do veto
presidencial. No último dia 28 de maio, os vetos do presidente Lula foram à
votação no Congresso Nacional e o veto à emenda de Eduardo Bolsonaro foi
derrubado pela maioria. Dos 386 votos contrários ao veto, 199 foram de membros
da Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Sendo responsável por pouco mais de
metade dos votos, é possível afirmar que o peso desta frente nas votações é
bastante considerável e, quem dirá, decisivo.
A
FPE, na atual legislatura, possui 238 membros: 213 deputados e 26 senadores. A
filiação partidária desses parlamentares é bem diversa: quatro deles são do
Avante; 15, MDB; três, Novo; quatro, PDT; 81, PL; seis, Pode; 15, PP; dois,
PRD; quatro, PSB; 18, PSD; 15, PT; 46, Republicanos; um, Solidariedade; 24,
União, e um, PSDB. Seguindo a classificação do espectro ideológico dos partidos
brasileiros feita por Bruno Bolognesi, Ednaldo Ribeiro e Adriano Codato, cerca
de 90% desses parlamentares têm um posicionamento mais à direita. Nem todos os
membros desta frente são cristãos, pois, desde 2015, a FPE aceita membros não
evangélicos. Essa aliança entre parlamentares deste segmento e conservadores
fortaleceu a pauta dos costumes dentro do congresso nacional e tem sido
fundamental para a aprovação de matérias de cunho ideológico.
A
sessão do dia 20 de dezembro de 2023, quando ocorreu a primeira votação para a
emenda de Eduardo Bolsonaro, ilustra muito bem esse cenário. Os deputados
receberam a orientação de voto dos líderes da bancada de seus partidos e as
justificativas em favor do voto faziam parecer que o objetivo do atual governo
é destruir a família, acabar com a propriedade privada, sexualizar as crianças
e assassinar fetos. Inclusive, foi a partir dessa retórica que a
extrema-direita captou milhões de votos para Bolsonaro em 2018 e 2022 por meio
da difusão de notícias falsas, envolvendo a esquerda dita comunista. E esse
enunciado continua sendo mobilizado como estratégia para as eleições municipais
deste ano.
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A
inclusão desta emenda na LDO de 2024, além de desviar o debate de questões
fundamentais dentro de uma lei orçamentária, reforça no imaginário social
estereótipos atribuídos à esquerda no Brasil. É a tentativa de criminalizar o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de impedir a aprovação de
qualquer política pública que garanta direitos à comunidade LGBTQAPN+. Eduardo
Bolsonaro e seus aliados sabem muito bem o que estão fazendo ao criarem textos
jurídicos que à primeira vista não fazem sentido, mas que ganham significados
no campo discursivo e ecoam de forma muito efetiva nos ouvidos de seus
eleitores.
Nesse
contexto, o conceito de ideologia segundo o intelectual italiano Antonio
Gramsci cabe muito bem para entender a atuação da FPE. Mais do que um conjunto
de ideias falsas, a ideologia para esse autor traduz a visão de mundo que um
grupo social deseja incutir na sociedade. E essa concepção da realidade tem
como fundamento preceitos bíblicos, que são normalizados como norteadores do
comportamento social e das leis por meio do consenso junto aos demais grupos e
à sociedade. A FPE vem conseguindo apoio no congresso nacional, pois, além de
sua visão de mundo refletir ideais conservadores, esta frente busca atuar para
atender também a interesses neoliberais, como ocorreu na LDO ao se defender a
propriedade privada, a fim de conquistar o apoio da bancada do agronegócio.
Nesse
sentido, dos 518 parlamentares, 386 – ou seja, 74% – votaram a favor da
inclusão de uma emenda na LDO sem fundamentação técnica ou jurídica, mas
carregada de viés ideológico e intenções alinhadas com o projeto de poder da
FPE. Isso significa que esta frente vem trabalhando incansavelmente para
convencer os demais deputados e senadores de que os seus interesses representam
os interesses de todos para, assim, alcançar a hegemonia, estabelecendo-se como
liderança intelectual e moral, como dizia Gramsci. Há quem subestime o poder de
articulação dos parlamentares evangélicos e seus aliados, por considerar
“inofensiva” a pauta dos costumes. No entanto, temas do campo moral e
religioso, como “ideologia de gênero”, já chegaram na lei orçamentária e vêm
pautando o cotidiano das votações e audiências no Congresso Nacional. Não se
trata somente de levantar a bandeira “Deus, pátria e família”. É um fazer
político organizado e que vem ganhando cada vez mais corpo e organicidade à
medida que candidatos evangélicos vão ocupando espaços no Legislativo, no
Executivo e no Judiciário. Embora existam grupos que se contrapõem ao movimento
neoconservador que vem se estabelecendo no Parlamento, eles não parecem ter
força política suficiente para competir com a FPE, cuja atuação ganha contornos
cada vez mais definidos de um projeto de hegemonia.
Fonte:
Por Michelli Possmozer, em Congresso em Foco
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