Invasores colocam fogo em terra indígena
mais desmatada para manter pastos ilegais
Dez meses após uma
megaoperação para retirar ocupantes irregulares e milhares de bois da terra
indígena Apyterewa (PA), o fogo voltou a queimar no território dos Parakanã. Os
focos se concentram em áreas de pasto e segundo especialistas ouvidos pela reportagem
são um indício do retorno de invasores.
Desde o início do mês,
o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais registrou 82 focos de calor na
região, colocando a Apyterewa em 15ª lugar no ranking das terras indígenas que
mais queimaram em agosto no país e em 3º no Pará.
“Estamos com medo.
Eles [invasores] estão entrando de novo, entram pelos ramais e vão queimando
tudo”, conta Xokarowara Parakanã, cacique da aldeia Kanaã, ao se referir as
estradas abertas dentro da TI pelos ocupantes irregulares.
A queimada do pasto é
uma maneira de manter a área pronta para o gado. Esse processo revela, segundo
fontes ouvidas pela Repórter Brasil, uma expectativa de retorno da atividade
pecuária na região, que é ilegal. Cerca de 60 mil bois foram removidos da terra
indígena desde o início da operação, em outubro do ano passado.
“Boa parte [das
queimadas] é para reforma de pasto, é um indicador que o gado vai voltar. Dá
pra ver que tem uma mobilização grande no território”, alerta Tarcísio Feitosa, articulador da coalizão
internacional Florestas & Finanças. Desde 1988 ele acompanha a situação na
Apyterewa e descreve o cenário atual como “grotesco”.
“Por que colocar fogo
no pasto? É preciso manter essa área por mais dois, três anos, até conseguir
‘pular’ para dentro de novo. Era muito barato arrendar pasto ali dentro e a
operação quebrou esse grande esquema econômico ilegal”, explicou uma fonte ligada
à desintrusão.
O fogo também atingiu
plantações de cacau. De acordo com os indígenas, isso seria uma forma de
impedir o acesso dos Parakanã às lavouras que ficaram para trás após a retirada
dos ocupantes irregulares. Em julho, eles denunciaram um ataque de pistoleiros enquanto
coletavam o cacau em uma antiga fazenda ilegal. Após o episódio, a Associação
Indígena Tato’a, que representa os indígenas, solicitou uma reunião de
emergência em Brasília – realizada na última semana.
Para entrar na terra
indígena, os invasores atravessam estradas clandestinas de moto e chegam a
construir “buchas”, pontes temporárias feitas de terra. Até o momento, não há
estruturas consolidadas de moradia ou de suporte para os bois, como cercas e
currais. “É ainda um cenário de disputa de domínio pelo território”, avalia
outra fonte.
Em Brasília, os
indígenas pediram reforço no policiamento do território – que hoje conta com
três bases de proteção operadas pela Fundação de Povos Indígenas (Funai). Com
isso, esperam ampliar sua presença na Apyterewa com mais ações de fiscalização
e a construção de novas aldeias no limite da terra indígena.
“A terra é nossa, mas
estamos com medo de entrar. Precisa de mais segurança para fazer a
fiscalização. Não queremos nenhum conflito, não queremos perder nenhum
parente”, alerta Xokarowara Parakanã.
A Funai afirmou que
tem uma “permanente interlocução” com os Parakanã. O órgão indigenista mantém
equipes de monitoramento em campo com apoio da Força Nacional e do Ibama, na
fase de “pós-desintrusão”. Essas ações “contemplam
medidas como a retirada do gado remanescente e o desfazimento de acessos
clandestinos”, disse em nota enviada à Repórter Brasil. Leia a íntegra da
resposta.
A reportagem também
procurou o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), que avaliou que a operação
teve um “um sucesso significativo”. Entre as medidas para coibir novas
invasões, destacou a implementação de um Plano de Gestão Territorial e
Ambiental (PGTA) e “o monitoramento com a presença constante e permanente de
órgãos federais e estaduais como Força Nacional, Ibama, Funai, Polícia Federal,
Polícia Rodoviária Federal e órgãos de segurança do Estado”.
• Operação de guerra
A Apyterewa é
reconhecida como território indígena desde 1982, mas só foi homologada trinta
anos depois, em 2007. Cerca de 1300 indígenas vivem ali, segundo o último censo
do IBGE.
Não é de hoje que os
Parakanã pedem a retirada dos invasores de seu território, que se consolidou
como o mais desmatado do país. Mas a situação se agravou nos últimos anos.
O avanço da pecuária
e, mais recentemente, das plantações de cacau, destruíram cerca de 100 mil dos
773 mil hectares da terra indígena. Investigações da Repórter Brasil revelaram
que os bois chegaram a abastecer os frigoríficos da JBS. Na época da publicação
da reportagem, a empresa disse que bloqueou as fazendas localizadas no interior
da Apyterewa.
A operação de
desintrusão teve início em outubro de 2023 após determinação do Supremo
Tribunal Federal (STF) e foi concluída em fevereiro deste ano. Além dos bois,
cerca de duas mil pessoas tiveram que sair da Apyterewa.
Os invasores se
concentravam na região conhecida como Vila Renascer, vizinha a uma das bases da
Funai. A localidade surgiu em 2016, mas cresceu durante o governo de Bolsonaro
impulsionada pelo discurso anti-indígena. A vila chegou a ter postos de gasolina,
hotéis e até rede de energia fornecida pela empresa Equatorial, concessionária
de energia elétrica do Pará.
A Repórter Brasil
acompanhou o começo da operação, marcada por momentos de tensão em campo e nos
gabinetes de Brasília. Políticos bolsonaristas e também aliados do governador
Helder Barbalho (MDB), apoiador do presidente Lula (PT), pressionaram para que a
operação fosse abortada. Em meio à pressão contra a retomada, a Força Nacional
matou um dos invasores com um tiro de fuzil.
• ‘Processo contínuo’
Depois de meses de
tensão, os moradores irregulares foram retirados. Em janeiro o desmatamento
chegou a zero: “foi uma conquista”, lembra o cacique Xokarowara Parakanã.
Em março, uma comitiva
do governo federal foi até a terra indígena e celebrou o fim da operação com a
“entrega simbólica” do território para os Parakanã.
Mas o sossego dos
indígenas durou pouco. Para pessoas ligadas à operação, a nova ofensiva não é
obra de recém-chegados na região: “não vejo como uma reinvasão, é um processo
contínuo”.
Feitosa avalia que
existe um movimento coordenado que alimenta as novas invasões. “O fogo não
nasce do nada, tem que ter um investimento, uma inteligência por trás”,
pondera.
Questionada pela
reportagem, a Funai ressaltou que “as invasões em terras indígenas são
caracterizadas por um elevado grau de reincidência”. “Deste modo, é fundamental a adoção de
medidas dissuasórias, sendo de extrema importância seguir com as medidas de
responsabilização dos não indígenas envolvidos em ocorrências ilícitas na
área”, diz o texto.
Fonte: Repórter Brasil
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