Hugo
Albuquerque: ‘A face mais carismática e implacável do capitalismo brasileiro’
Falecido
aos 93 anos, Silvio Santos ficou conhecido como apresentador de televisão,
muito embora ele fosse principalmente um oligarca bilionário das
telecomunicações, latifundiário e banqueiro. Sua atuação diz muito sobre o
Brasil do século XX e dos primórdios do século XXI – e nos ajuda a entender o
fenômeno do bolsonarismo.
Na
segunda metade do século XX, o Brasil se urbanizou e as velhas relações humanas
das cidadezinhas, ou de metrópoles ainda não tão gigantescas, se desfaziam a
olho nu. O rádio e, depois, a televisão ocuparam um espaço central no
imaginário e na afetividade dos brasileiros. Ninguém performou tão bem o
capitalismo brasileiro dessa época, e o tipo de capitalismo que adotamos,
quanto Silvio Santos.
E,
evidentemente, apesar do que parece, Silvio nunca antagonizou com as
Organizações Globo, de quem foi apenas adversário, dentro de uma relação
complexa na história da televisão brasileira. A grande disputa imagética e
semiótica, justamente por ser política, de Silvio se deu nas terras do Bixiga
com o ator e diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso – sobre a
criação de um parque em um terreno no qual Silvio nem sequer poderia construir.
Silvio
e a Globo defenderam o projeto americanista para o Brasil, não apenas na adoção
do American way of life, mas na submissão estratégica em todos os sentidos.
Silvio, conservador e a família Marinho, cada vez mais bifurcaram, mas sempre
foram táticos da mesma estratégia. A Globo com seus maneirismos liberais, cada
vez mais politicamente corretos, e Silvio com o populismo e o populacho
trumpista e bolsonarista.
• O mito
do self-made man
Agudamente
carismático e com um grande tino para os negócios – muitos deles duvidosos –,
esse filho de imigrantes judeus gregos nascidos no antigo Império Otomano – mas
cuja origem remete à comunidade judaica ibérica –, repetiu a história de tantos
imigrantes que enriqueceram no Brasil do século XX: materialmente pobre, mas
dono de um capital cultural acima da média e com o apoio do Estado brasileiro,
ele pode crescer rapidamente.
O
Brasil da “democracia racial” antes de tudo sempre foi um país da “democracia
da branquitude”, onde muitas minorias étnicas puderam ser lidas como brancas e,
assim, como cidadãos. O mesmo privilégio nunca foi dado a quem não poderia ser
racializado como branco, isto é, a maior parte da população. Mas essa história
não é conveniente para quem cria o mito dos homens que “se fizeram sozinhos”.
Silvio
Santos fez seu périplo como uma das últimas revelações da era do rádio para,
logo menos, ingressar na nascente televisão brasileira. Um elo perdido nos anos
1950. Antes, teve sua incursão no Exército como paraquedista e transitou bem
entre as eminências pardas e oligarcas da televisão, antes de ter sua própria
rede. Sua relação com os militares jamais parou nos tempos de serviço militar,
como ficou óbvio no decorrer da história.
Estrela
de televisão nos tempos da ditadura, Silvio trabalhou na própria Globo, Tupi,
enquanto fez uma jogada duvidosa para adquirir sua própria concessão de
televisão, a TVS, embrião do SBT, originalmente restrita ao Rio de Janeiro. A
jogada saiu por meio de uma aliança com o governo do general Ernesto Geisel na
ditadura – depois do general-presidente Emílio Garrastazu Médici ter fechado as
portas para Silvio anos antes.
Médici,
contudo, não abandonou Silvio Santos por completo. É sabido que a aquisição e a
manutenção de terras vastíssimas por Silvio no Mato Grosso, na divisa com o
atual estado do Tocantins, ocorreu no período e teve um profundo apoio do
governo de Médici, o general-presidente mais sanguinário da ditadura militar.
Nada disso deixou de ser feito com boas doses de empréstimos e incentivos
fiscais.
Nos
anos 1980, o último e derradeiro general-presidente, João Baptista Figueiredo,
liderou uma ambiciosa reorganização das concessões de canais de TV, o que
rendeu a Silvio Santos a TVS de São Paulo e, por consequência, a formação do
SBT em 1981, ainda durante a ditadura. De apresentador ultrapopular, Silvio se
tornou de vez um magnata das comunicações. Assim, ele deixa de ser só uma voz,
e passa a ser um cérebro.
• Magnata
da TV na Nova República
Com
o colapso do desenvolvimentismo industrialista da era Vargas e com a chegada do
neoliberalismo, o Brasil viu acabar as décadas de “crescimento pau na máquina”,
com muita prosperidade e desigualdade convivendo. O neoliberalismo chegava, e a
massa, que nunca foi a principal beneficiada pelos anos do industrialismo,
agora pagava a conta pelo seu fim, com desemprego, violência e uma vida
precária nas periferias das capitais.
É
nesse período que a televisão se torna acessível para a grande massa
trabalhadora. De 1970 para 1980, os lares brasileiros com televisão saltaram de
27% para 55% do total. E é nos 1980 que o efeito disso atinge a grande massa
brasileira – e mundial, com a exportação de telenovelas da Globo, inclusive
para países socialistas como União Soviética e China. Silvio Santos, de
apresentador a magnata, é a maior personalidade desse fenômeno.
Os
programas de Silvio Santos, que anos antes eram questionados na TV Globo, sua
então casa, por serem de baixa qualidade, encontram seu canal próprio no SBT.
Em tempos de crescimento economicamente baixo, Silvio ganhava com isso, usando
e abusando de produtos como Baú da Felicidade e, depois, a Tele Sena, que
prometiam prêmios e surgiam como uma esperança de uma classe trabalhadora em
frangalhos.
É
realmente difícil para as atuais gerações entenderem isso, mas quando falamos
do Brasil até pelo menos os anos 1990 havia uma quantidade limitada de canais
de televisão aberta, que eram, junto do rádio, muitas vezes o único
entretenimento da maior parte das famílias brasileiras, as quais não tinham
dinheiro para viajar, acesso ao teatro, TV a cabo ou internet. Assim, Silvio
Santos se tornou a face simpática dos domingos.
“Sorrindo
aquele riso franco e puro para um filme de terror”, como escreveram Paulo
Coelho e Raul Seixas na música imortalizada por Raul, ocupou grande parte dos
domingos do povo, mas impulsionou outros programas popularescos como o de Gugu
Liberato, deu espaço para o populismo punitivista com o Aqui Agora – o primeiro
dos programas policiais –, variados enlatados televisivos, além de produtos
como o Programa do Ratinho.
• O Homem
do Baú e as direitas pós-ditadura
Silvio
ocupou assim, direta ou indiretamente, o que mais importava: o espaço no
imaginário e no coração da classe trabalhadora dali em diante, jogando e
ganhando com o capitalismo de escassez dos anos 1980 em diante. Ele foi aliado
dos principais nomes da direita nacional: Maluf, Fernando Henrique Cardoso,
embora não tenha deixado de transitar em Brasília nos primeiros governos de
Lula.
Embora
defendesse o capitalismo neoliberal, Silvio sempre precisou do Estado mesmo
após ter sido impulsionado por ele nos anos de chumbo. Em 2007, ele foi salvo
de um processo contra si por conta da sua Tele Sena, um jogo que era vendido
como “título de capitalização”, pelo então ministro do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), e hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux em
uma decisão extremamente questionável. Poucos anos depois, Silvio contou com
toda boa vontade do mundo das autoridades financeiras por conta da falência do
seu Banco Panamericano.
Se
a imprensa hoje lembrará da anedótica tentativa de concorrer à presidência em
1989, quando era filiado ao partido direitista PFL – que não o apoiou na
empreitada – ou que ele transitou por todos os presidentes, o fato é que Silvio
nunca escondeu nas entrelinhas sua visão política. E seu ápice foi a
presidência de Jair Messias Bolsonaro, onde ele chegou a ter um genro como
ministro das Comunicações, Fábio Faria.
Ironicamente,
as massas pobres permaneceram lulistas desde a virada dos anos 2000 – sem nunca
terem abandonado Silvio Santos. Desse modo, Silvio, como um Trump brasileiro,
transitou por negócios duvidosos e a mídia, mas mostrou que era possível criar
uma linguagem direitista e popular, capaz de atingir os corações e mentes da
classe trabalhadora brasileira.
Ainda
que tenha avançado sobre as classes populares como nenhum outro direitista, o
fato é que o centro da base de apoio de Bolsonaro esteve na classe média,
enquanto o petismo continuou tendo o apoio dos pobres desde 2006. Mas sem
dúvida o pioneirismo de Silvio Santos ajudou a criar o fenômeno bolsonarista,
que passou antes de tudo pelo uso estratégico da linguagem e da comunicação.
Se
a Globo era a comunicação de massas, liberal e com “padrão de qualidade”, o SBT
criou uma lógica fast food para o ramo, o que teve múltiplos desdobramentos,
embora tenha ousado permitir experimentalismos de “alta qualidade” nos anos
1990, com Jô Soares e Serginho Groisman. Nesse sentido, é possível pensar a
dualidade entre PSDB e o bolsonarismo como a expressão política da “disputa”
entre Globo e SBT.
• Protagonista
na televisão e antagonista de Zé Celso
Por
essas e outras, a disputa de Silvio Santos com Zé Celso por conta de um terreno
no Bixiga, no coração de São Paulo, é mais central do que qualquer “guerra de
audiência” entre ele e a Globo. A área, próxima do Teatro Imprensa e do banco
Panamericano, que Silvio adquiriu de uma série de pequenos proprietários,
inclusive uma sinagoga que ele tratou de demolir, nem sequer poderia ser usada
para uma grande construção.
Zé
Celso desejava a construção de um parque, Silvio pensava em dar um de seus
jeitos para construir algum empreendimento como um shopping, por mais que a
área não comportasse isso – seja por conta de questões ambientais, seja pelo
tombamento do Teatro Oficina, capitaneado por Zé Celso. Dois brasis antagônicos
estavam em choque naquela ocasião: o genial e libertário dramaturgo contra o
implacável oligarca.
Poucas
vezes a face real de Silvio Santos, agressiva e irônica, emergiu como na famosa
reunião com Zé Celso para buscar um acordo pelo parque. Mas, no fim, apesar de
toda relutância de Silvio Santos, a história terminou com a vitória do projeto
do parque e a desapropriação do terreno. Zé Celso não viveu para ver isso, mas
Silvio sim. Em uma época pós-televisão, o legado de Silvio Santos resiste, no
entanto.
A
direita assentada num discurso populista existe e se reproduz, com ou sem
Bolsonaro. Já o cordialismo lulista está no seu limite. Muito do mundo dos
influenciadores digitais passa por um tipo de comunicação que Silvio Santos
criou para o Brasil, que é o próprio projeto de uma elite que sonha em ter uma
mansão em Miami e de lá colaborar com o projeto americano para o Brasil. Sem
tirar, nem pôr, eis o legado do patrão.
Fonte:
IHU OnLine
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