sábado, 24 de agosto de 2024

Fraude ou revolução: porque a direita não ganha mais na Venezuela?

A Suprema Corte da Venezuela terminou, em 22 de agosto, a auditoria em todo material impresso e virtual das eleições presidenciais de 28 de julho, e confirmou que o referido material corresponde ao resultado divulgado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Ou seja, não houve fraude. Seguem as investigações sobre os ataques hacker que interromperam a contagem dos votos na noite da apuração. O resultado final das eleições será publicado em diário oficial pelo CNE, a partir do qual se encerra a polêmica eleitoral no país.

Em nível internacional, no entanto, a questão tomará outro rumo. Como salientado no texto abaixo, o resultado continuará sendo desacreditado, não devido a atas ou boletins, mas porque não venceu a candidatura da direita e do grande capital. Cabe ao menos aos governos progressistas da América Latina não caírem na armadilha de questionar decisões da Suprema Corte de outro país, ou abrirão um enorme flanco para que a desestabilização com a qual a Venezuela foi atacada também se materialize em seus próprios processos eleitorais. Vale lembrar: as forças de esquerda desses países não possuem a mesma musculatura social do chavismo para resistir a um golpe de tamanha força.

No dia 28/07, Nicolás Maduro foi reeleito presidente da Venezuela com 51,1% dos votos. Em roteiro repetido, a oposição de extrema direita acusa fraude sem apresentar provas, sendo endossada pelos Estados Unidos e governos subservientes, como Javier Milei na Argentina. Mas, para além da repetida postura de mau perdedor, o que explica as sucessivas derrotas da oposição venezuelana?

Primeiro ponto: os aspectos internos da oposição que se dividem em dois agrupamentos. O primeiro, a direita tradicional organizada pela AD e o COPEI. Essas siglas são representantes da chamada “Quarta República”, a ordem liberal que existia antes da Revolução Bolivariana. São forças desacreditadas perante a população e sobrevivem elegendo alguns parlamentares e mantendo um ou outro governo estadual ou municipal. Uma espécie de “Centrão” local, porém com muito menos força do que seu equivalente brasileiro. Se tornou um ator ultrapassado e perdeu a interlocução preferencial com os Estados Unidos.

“Ao contrário do que é propagandeado sobre o país, a Revolução Bolivariana sempre estimulou as eleições e os referendos como forma de participação popular na tomada de decisões.”

O outro agrupamento de oposição é a extrema direita. Pela demonização costumaz da Venezuela na imprensa empresarial, pouca gente notou que antes de Trump, Bolsonaro ou Milei, foi a direita venezuelana a primeira a passar pelo processo de fascistização no continente. Mudando de líderes a todo momento (Henrique Caprilles, Leopoldo López, Juan Guaidó, Maria Corina Machado) e criando frágeis coligações que sobrevivem apenas por um ciclo eleitoral, brigam entre si pelos dólares de Washington no lucrativo negócio da “dissidência política”. Ao longo dos anos sempre optaram pela abstenção eleitoral e investiram no golpe de Estado: tentativas de fracionar as Forças Armadas, atos terroristas, magnicídio e até clamor de invasão do próprio país pelos EUA foram insistentemente realizados na última década. Sua defesa de “eleições democráticas” é pura cortina de fumaça e a maior parte da população do país assim a vê.

Segundo ponto: a cultura político-eleitoral cultivada pelo chavismo. Ao contrário do que é propagandeado sobre o país, a Revolução Bolivariana sempre estimulou as eleições e os referendos como forma de participação popular na tomada de decisões. Isso criou uma cultura política no povo venezuelano de que as coisas se resolvem pelo voto. As repetidas tentativas de golpe da extrema direita cansaram inclusive sua própria base social, que desistiu da insurreição ao perceber que o “golpe mortal contra o regime” era sempre anunciado, mas nunca concretizado. Em um país onde o voto não é obrigatório, o primeiro desafio é convencer sua base social de que a vitória eleitoral é possível, e isso, o fascismo venezuelano nunca conseguiu – na maioria das vezes sequer tentou, se posicionando pela abstenção. Mesmo com a perda parcial de apoio do chavismo devido à crise econômica imposta pelas sanções internacionais, isso não se traduziu em uma transferência de votos para a direita. A desilusão de parte do eleitorado o afastou da participação, mas não o tornou de oposição.

Terceiro e mais importante ponto: o chavismo não é um “governo progressista”. É uma Revolução Socialista em curso. Chávez e Maduro são expressões da classe trabalhadora venezuelana que subverteram a ordem liberal de dentro para fora e formularam uma das mais avançadas constituições do mundo, com inovações econômicas, políticas e ideológicas que rompem com a lógica capitalista.

“A demonização da Venezuela é uma necessidade das forças conservadoras porque recolocou o socialismo de volta no mapa-múndi no momento de maior retrocesso para os revolucionários na história.”

É isso que a direita mundial (e até mesmo alguns vacilantes setores de esquerda) não querem admitir. A demonização da Venezuela é uma necessidade das forças conservadoras porque recolocou o socialismo de volta no mapa-múndi no momento de maior retrocesso para os revolucionários na história. O chavismo organiza cada bairro, cada rua, repassando decisões antes concentradas no Estado para a auto-organização popular: empresas expropriadas e dirigidas de maneira mista pelo poder público e os próprios trabalhadores; investimentos do Estado que são decididos por assembleias de moradores, e não pelo vereador de ocasião; os meios de comunicação estatais e comunitários têm recursos para disputar hegemonia com os meios privados – abertamente de oposição. No momento do voto, essa base organizada e conscientizada é ativada e forma uma força eleitoral invicta nos últimos 25 anos (7 eleições presidenciais vencidas), dando uma margem segura para o chavismo.

Esse sim, é o problema real das eleições venezuelanas: o resultado. Não pode ser admitido pela ordem capitalista internacional que uma força antissistema vença. Não importa quantas “atas descentralizadas” ou observadores internacionais existam, os resultados nunca serão admitidos enquanto o chavismo vencer. É uma manifestação político-eleitoral da luta de classes de ressonância mundial, especialmente no contexto latino-americano e caribenho. A vitória de Maduro sacramenta a continuidade da nova institucionalidade criada pela Revolução e o protagonismo de sua base popular em um momento em que as dificuldades econômicas impostas pelo bloqueio começam a ser superadas.

Contra as sanções internacionais, as tentativas de golpe e invasões, atos terroristas, pressão estadunidense, contra Trump, Milei, contra a reinsurgência fascista no mundo, venceu a esquerda revolucionária e o povo venezuelano. Uma vitória que todos os setores populares e progressistas devem defender e que demonstra que a melhor forma de enfrentar o fascismo é não fugir do combate.

 

¨      TSJ da Venezuela declara Maduro vencedor da eleição e ameaça candidato da oposição com sanções

O Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela (TSJ, na sigla em espanhol) validou nesta quinta-feira (22/08) os resultados das eleições presidenciais de 28 de julho, em que foi proclamada a vitória do presidente Nicolás Maduro — resultado rejeitado pela oposição.

A câmara eleitoral do TSJ havia assumido o caso após recurso interposto por Maduro e ordenado a realização de perícia sobre o processo eleitoral.

Na decisão do tribunal, é dito que a câmara eleitoral "certifica de forma inquestionável o material eleitoral pericial" e "valida os resultados das eleições presidenciais de 28 de julho de 2024 emitidos pelo CNE, onde o cidadão Nicolás Maduro Moros foi eleito presidente da República Bolivariana da Venezuela".

A câmara do TSJ afirma também no documento que o candidato oposicionista Edmundo González Urrutia "não compareceu a nenhuma das fases" do processo para o qual foi intimado.

Por isso, diz o acórdão, González desacatou a autoridade judiciária, "conduta que implica nas sanções previstas no ordenamento jurídico vigente".

Ao ser convocado, González anunciou que não compareceria ao TSJ por considerar que a câmara eleitoral estava usurpando as funções do CNE e porque, ao fazê-lo, colocaria-se numa situação de "absoluto desamparo".

A juíza Caryslia Rodríguez, que preside a câmara eleitoral e o próprio Supremo Tribunal de Justiça, disse ainda que a decisão será enviada à Procuradoria-Geral da República para que seja incorporada à investigação criminal sobre o processo eleitoral que está em curso.

A procuradoria investigada a suposta prática dos crimes de usurpação de funções, falsificação de documento público, instigação à desobediência às leis, crimes informáticos, associação para a prática de crime e formação de quadrilha.

Esta investigação mira também os documentos com os resultados publicados pela oposição em um site e o que seria um "ataque cibernético" massivo que o CNE teria sofrido na noite das eleições, como defende Maduro.

¨      Órgãos internacionais e opositores questionam imparcialidade de tribunal e CNE

Numa mensagem publicada na rede social X (antigo Twitter), a missão criada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas para acompanhar a situação política da Venezuela questionou a idoneidade tanto do TSJ como do CNE.

“O Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela [foi] obrigado a auditar os resultados eleitorais anunciados pelo Conselho Nacional Eleitoral."

"A Missão de Averiguação deste país alerta para a falta de independência e imparcialidade de ambas as instituições", disse o órgão da ONU.

A postagem acrescenta que o TSJ e a CNE "têm desempenhado um papel dentro da máquina repressiva do Estado".

O texto inclui uma declaração de Marta Valiñas, presidente da missão, em que ela afirma que o "governo [venezuelano] exerce interferência indevida nas decisões do TSJ através de mensagens diretas aos magistrados e declarações públicas dos presidentes Nicolás Maduro e Diosdado Cabello [considerado o número 2 do chavismo]".

Há também uma citação de Francisco Cox Vial, outro membro daquela missão, que indica que em 2022 "a Assembleia Nacional modificou a composição da Comissão de Nomeações Judiciais, para ser controlada pela mesma Assembleia, com maioria governamental, e elegeu o atuais 20 desembargadores do TSJ".

Vários magistrados têm ou tiveram ligações diretas com o chavismo.

Entre estes, destaca-se a própria presidente, Caryslia Rodríguez, que foi eleita vereadora em 2018 pelo governista Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e, posteriormente, foi a prefeita responsável pelo Distrito Capital.

Outro exemplo é o juiz Calixto Ortega, que foi deputado da Assembleia Nacional por esse partido e foi vice-chanceler durante o governo de Hugo Chávez.

Além disso, numerosos juristas e especialistas que analisaram as decisões do TSJ nos últimos anos salientam que existe um padrão nas decisões, que invariavelmente favorecem o partido no poder.

Quanto ao CNE, três dos seus cinco dirigentes são considerados representantes do partido no poder.

O presidente do CNE, Elvis Amoroso, foi deputado pelo PSUV e, mais tarde, como controlador-geral da República, foi responsável pela inabilitação da candidatura de María Corina Machado à presidência.

<><> Crise pós-eleitoral

A Venezuela entrou numa crise pós-eleitoral depois que, na madrugada de 29 de julho, o presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Elvis Amoroso, anunciou os resultados.

Na ocasião, Amoroso declarou a vitória de Maduro com base em 80% das atas eleitorais e falou de uma vitória "irreversível" do presidente.

A oposição, liderada por María Corina Machado, passou a questionar estes resultados e afirmou que as atas que tinha em seu poder indicavam que o vencedor tinha sido o candidato da oposição, Edmundo González Urrutia.

As dúvidas sobre o processo aprofundaram-se nas semanas seguintes porque a CNE nunca publicou os resultados discriminados por tabelas que permitissem auditar o processo.

Ao mesmo tempo, a oposição publicou poucos dias depois da votação uma página web com o que afirma ser mais de 80% das atas que podem ser consultadas por qualquer pessoa e segundo a qual González Urrutia teria obtido 67% dos votos, enquanto Maduro teria alcançado 30%.

O partido no poder afirma que as atas apresentadas pela oposição são falsas. O TSJ afirmou ter analisado as atas apresentadas pelo CNE.

O anúncio da vitória de Maduro pela CNE foi seguido por uma onda de protestos em inúmeras cidades da Venezuela que levou a prisões em massa.

Segundo a ONG Foro Penal, até 18 de agosto, mais de 1,5 mil pessoas haviam sido detidas, incluindo 129 adolescentes e 18 pessoas com deficiência.

Maduro disse que o governo está criando duas prisões de "segurança máxima" para alojar os manifestantes, que descreveu como "terroristas" e "criminosos".

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, tem tentado, desde o início da crise, colocar o país como um mediador.

Parte desse esforço culminou na divulgação, em 1º e 8 de agosto, de notas conjuntas de Brasil, Colômbia e México cobrando a divulgação detalhada dos resultados eleitorais. No comunicado, os países se oferecem para mediar a crise entre governo venezuelano e oposição.

Dias depois, porém, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, afirmou que não se envolveria mais na crise venezuelana, pelo menos por enquanto.

Ele afirmou que suspenderia qualquer contato com Brasil e Colômbia até que o TSJ emitisse um posicionamento sobre o pleito. Até o momento, não há notícias de que ele tenha se pronunciado após a decisão do tribunal divulgada nesta quinta-feira.

Na primeira declaração sobre a crise, Lula minimizou os conflitos e afirmou que a disputa sobre resultados é "normal".

"É normal que tenha uma briga. Como resolve essa briga? Apresenta a ata", disse Lula em entrevista exclusiva à TV Centro América, afiliada da TV Globo em Mato Grosso, em 30 de julho.

"Se a ata tiver dúvida entre a oposição e a situação, a oposição entra com um recurso e vai esperar na Justiça o processo. E vai ter uma decisão, que a gente tem que acatar. Eu estou convencido que é um processo normal, tranquilo", prosseguiu Lula.

Em 15 de agosto, durante entrevista à rádio T, o presidente brasileiro afirmou que "ainda não" reconhecia a vitória de Maduro e que a apuração das atas deveria ser feita pelo CNE, e não pelo Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela.

"Ainda não, ainda não [reconhece vitória de Maduro]. Ele sabe que ele está devendo uma explicação para a sociedade brasileira e para o mundo. Ele sabe disso, ele sabe disso", disse Lula.

"Agora, os dados têm que ser apresentados por algo que seja confiável. O Conselho Nacional Eleitoral, que tem gente da oposição, poderia ser, mas ele não mandou para o conselho, ele mandou para a Justiça, para a Suprema Corte dele", apontou o petista.

 

Fonte: Por Roberto Santana Santos, para Jacobin Brasil/BBC News Brasil

 

Nenhum comentário: