Eva Alterman Blay: A violência contra a
mulher é um sintoma trágico em uma sociedade em vias de destruir a democracia
Ao perceber uma
situação de violência contra a mulher, deve-se enfrentá-la e interrompê-la para
que não chegue a um feminicídio. Nenhuma violência contra a mulher deve ser
tolerada.
Essa é a mensagem
principal da campanha Agosto Lilás, do Ministério das Mulheres. Indiscutível a
importância dessa proposta de política pública, iniciativa que vem sanar o
vácuo criado pelo governo anterior que desmanchou todas e quaisquer atividades
feministas voltadas para evitar a violência contra mulheres e meninas.
Herdamos, no Brasil,
um passado banhado de sangue. Por quase 500 anos prevaleceu o direito de matar
impunemente homens e mulheres negros que ousavam se rebelar contra maus tratos
de seus “proprietários”. Aos rebelados, a pena de morte. Não é de estranhar a
cruel violência patriarcal herdada que prevalece até o presente e que se
expandiu por todas as camadas da população.
O aumento
extraordinário de feminicídios e estupros de mulheres e meninas são noticiados
nas redes sociais, nos jornais e exibidos na tv em programas que podem ser
vistos em qualquer horário do dia ou da noite. O tema, dramatizado em cenas
cruas, quase não espanta mais. E, pior ainda, é banalizado por profissionais
que os deveriam punir (veja-se o caso Mariana Ferrer entre outros).
Desde o século 19,
jornalistas, escritoras, intelectuais, militantes políticas, feministas
denunciam a subordinação das mulheres cujas liberdades são constrangidas pela
tutela do pai, do marido e até do irmão. O comportamento da dominação
patriarcal reproduziu-se entre chefes, mestres de fábrica, empregadores, e foi
incorporado até mesmo por companheiros de partidos políticos (se tiverem
dúvidas leiam depoimentos de Pagu).
Foram décadas de lutas
dos movimentos feministas para superarem obstáculos e conquistarem a cidadania
– desde o direito ao voto, a eleição de mulheres para as Câmeras, o direito ao
próprio corpo. Mesmo e sobretudo durante as ditaduras de Getúlio ou de 1964-1985,
os movimentos feministas não deixaram de enfrentar opositores armados buscando
implantar os direitos humanos para todos e especialmente para as mulheres. A
militância ensinou às mulheres que o poder estava na mão do Estado do qual
estavam excluídas. Em resposta, os movimentos feministas elaboraram estratégias
para participar das instituições estatais e elaboraram uma instituição
original, o Conselho Estadual da Condição Feminina (em São Paulo, 1992, e logo
a seguir em Minas, e depois em quase todos os estados).
Em meio a múltiplas
demandas, ações contra a violência, o machismo, o assassinato de mulheres eram
prioritários. No imaginário social havia um único caminho para as camadas
populares e médias: recorrer às Delegacias de Polícia. Buscar um advogado era
serviço aventado apenas pelas camadas ricas. Quando uma mulher era fortemente
agredida por seu companheiro ou marido, a Delegacia de Polícia era, em última
instancia, a autoridade máxima. Desnecessário relatar que em geral, naquela
instituição, as mulheres eram desconsideradas, os casos minimizados e elas eram
e são ainda, por vezes, aconselhadas pelas “autoridades” a voltarem para casa e
ficarem quietinhas. Ao criar a Delegacia da Mulher (1985), a expectativa era
que fossem recebidas como pessoas com direitos, o que de fato ocorreu após
muitos treinamentos. Às profissionais destas delegacias, por sua vez, e por
serem mulheres, tiveram múltiplas dificuldades para terem suas carreiras
reconhecidas.
A partir da década de
1990, o Brasil assinou vários acordos internacionais que reconheciam os
direitos humanos das mulheres ampliando o campo da não violência. A lei Maria
da Penha insere-se na articulação entre o movimento feminista brasileiro e o
campo internacional pois, lembremos, o agressor de Maria da Penha foi por duas
vezes absolvido, até que o caso foi levado à Comissão Latino-Americana dos
Direitos Humanos. Justiça seja feita a um grande grupo de feministas que se
empenhou para que afinal Maria da Penha tivesse seu caso revisto. A Lei Maria
da Penha foi sancionada em 7 de agosto de 2006, portanto há 18 anos, mas
durante esse período centenas de brasileiras foram assassinadas e meninas
estupradas e mortas.
Atualmente, quando
ameaçadas de morte por companheiros, maridos, ou outros homens com quem mantem
relações afetivas, a mulher já não suporta mais e pressente o pior, ela recorre
a um juiz para obter uma “medida protetiva”. Esse instrumento de proteção foi
altamente procurado e encontrou apoio no judiciário. Os dados mostram que:
“O Brasil emitiu, em
média, uma medida protetiva a vítimas de violência doméstica por minuto no ano
passado. Foram 553.391 documentos apresentados pelas justiças estaduais,
conforme levantamento do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Apesar do número,
o país registrou 1.706 feminicídios em 2023 — média de quase cinco crimes por
dia. Até 24 de março deste ano (2024), tinham sido emitidas 86.805 medidas
protetivas — média de 0,72 por minuto” (R7 Brasília).
É claro que essas
medidas protetivas são importantes, mas não bastam para eliminar o feminicídio.
Visando aperfeiçoar o atendimento, o serviço policial desenvolveu a “Patrulha
Maria da Penha”, para prevenir ataques às mulheres com medidas protetivas e outras
ameaças. Esse programa começou em 2012 em Porto Alegre, em 2019, no Rio de
Janeiro e, em 2020, em São Paulo. Finalmente o programa foi apresentado e
aprovado no Senado para vigorar no país todo em 2021, há quatro anos! Não foi
implantado ainda. Embora a Patrulha Maria da Penha seja importante e tenha
resultados positivos é irreal supor que ela venha se estender ao país todo.
Outra medida eficiente e factível é o telefone 180 para atender mulheres em
perigo ou que precisam de orientação. Há ainda outra linha telefônica, o 190
que se liga diretamente à polícia, quando o caso é extremo e tem evitado
feminicídios no Brasil e no exterior.
O suscinto retrospecto
sobre medidas para evitar violências contra a mulher e a menina, aqui feito,
destacou medidas para defender e fortalecer as mulheres. Essa avaliação permite
apontar uma importante lacuna: nesse quadro, onde estão os homens? E os meninos?
Se queremos criar uma sociedade igualitária, que respeite os direitos humanos
de todos, é necessário completar o planejamento com políticas e programas para
os homens. Há no Brasil um tímido movimento de educação masculina, “grupos
reflexivos”, e há juízas e juízes que encaminham homens “em situação de
violência” para esses programas. Em 2020, havia 312 grupos reflexivos voltados
para encaminhar homens autores de violência contra mulheres no Brasil. Os
resultados apontam que após frequentarem as reuniões por algumas semanas, os
participantes desenvolvem novos comportamentos em suas relações sociais e
familiares.
Se quisermos tornar os
comportamentos masculinos não violentos, não agressivos, não se pode esperar
que cheguem à idade adulta. A orientação sobre igualdade de gênero deve se
iniciar desde a primeira infância para meninos e meninas: educar e socializar
com programas que destaquem a igualdade nas relações sociais de gênero, com
respeito às diferenças – de classe, gênero, cor, etnia.
Há enorme e forte
reação a esse tipo de projeto. Parcela da população, politicamente de direita,
cria obstáculos tanto práticos como ideológicos. No legislativo, apresentaram
pelo menos dois projetos: “educação em casa” e “educação militar”. O primeiro pretende
restringir experiencias extradomiciliares, implica no fortalecimento de um
controle patriarcal, conservador, impedindo diversidade religiosa e sexual. O
segundo, ainda acrescenta apagar educação crítica e impõe comportamentos
autoritários.
Recompondo todo o
longo esforço para reduzir o feminicídio e face ao crescimento do mesmo, vale
pensar que a violência contra a mulher e a menina é um trágico sintoma de uma
sociedade que caminha para destruir a Democracia.
Ainda é tempo de
refletirmos.
Fonte: Jornal da USP
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