Dora Incontri: ‘A morte santifica as
pessoas? Casos Silvio e Delfim’
Desta vez, também vou
falar de morte, mas não de vítimas de acidente, pessoas comuns do nosso
cotidiano, que morreram inesperada e prematuramente, como na semana passada.
Mas de dois homens que atingiram mais de 90 anos e faleceram neste mês de
agosto, com poucos dias de diferença, muito bem tratados num dos melhores
hospitais do Brasil: Delfim Netto e Silvio Santos.
Exceto alguns artigos
e vídeos de uma esquerda mais precisa, o clamor geral da nação foi de
homenagens e elogios aos dois. Parece que quando alguém morre, vira santo
instantaneamente. A mídia corporativa é especialista nesse processo de
canonização. Claro, quando se trata de gente de direita.
Mas o povo talvez
considere falta de respeito aos mortos, exercitar o espírito crítico em relação
ao legado dos que se foram. Aliás, a crítica é muito mal aceita no Brasil.
Entende-se sempre como ataque pessoal. Claro que mesmo os piores cidadãos não
devem sofrer o tiroteio do discurso de ódio na hora da morte, aliás nem durante
a vida. Que não seja por respeito a eles, mas em consideração ao luto da
família. Também desconsidero deselegante e desnecessário escarafunchar a vida
pessoal do morto.
Mas… não se pode
deixar de fazer um apanhado crítico do que um personagem popular deixou de
rastro no mundo. E então, Delfim e Silvio merecem uma análise cortante, ambos
com uma ligação visceral e muito problemática com a história do Brasil desde a
segunda metade do século XX.
Os dois estiveram
ligados ao período tenebroso da ditadura militar. Delfim Netto foi o ministro
da economia aclamado de então, com o falso milagre econômico e assinou o
trágico AI-5, que redundou na tortura, desaparecimento e morte de tantos
brasileiros, alguns até hoje não localizados. Silvio Santos, aliás Senor
Abravanel, por sua vez, se fez durante os governos da ditadura, dos quais
recebeu a concessão de TV e ao mesmo tempo, se dedicou à exploração do povo,
com seu baú da felicidade.
Delfim, um liberal,
defensor das elites; Silvio, um comunicador bizarro, que ajudou durante anos a
manter o povo hipnotizado em programas dominicais de gosto duvidoso, em que não
faltaram cenas de assédio a mulheres e crianças, quadros humilhantes para os
humildes que vinham com a esperança de ganhar algo.
Em suma, nenhum dos
dois, pessoas que contribuíram para a melhoria da nação, para a educação do
povo, para a feitura de uma sociedade melhor.
E por que, mesmo
assim, o povo aprova e idolatra gente dessa espécie e chora por sua morte? É
que o poder fascina, o dinheiro acumulado atrai as massas, anestesiadas e
inconscientes de que poderes tão sólidos e fortunas tão bilionárias só podem se
constituir na base da injustiça e da exploração. Veja-se como muitos admiram
Elon Musk! Aliás, tanto dinheiro e tanta influência mexe com o imaginário do
povo, que sonha que um dia poderia também se fazer milionário, através de
esforço e talento. A ilusão da meritocracia.
É certo que tais
personalidades possuem habilidades, que usam como ferramentas, para chegarem e
se manterem no topo. No caso de Delfim, sem dúvida, uma inteligência aguda; no
caso de Silvio, um sorriso sedutor, uma esperteza comercial e a capacidade de se
adaptar como um camaleão aos diversos poderes constituídos.
Mas muitas
inteligências brilhantes e muitos sorrisos bonitos não atingem nenhum mérito
nessa sociedade capitalista, se estiverem a serviço de causas justas e semeando
ideias transformadoras.
E o Lula nesta
história? É uma pessoa que admiro, mas que me permito também criticar. Outro
que não passa pelo crivo da crítica dos que o idolatram. Ele fez o elogio de
ambos os mortos, dentro da sua postura de construir pontes com todo mundo – o
que por um lado é muito humano, mas por outro, perde-se a firmeza necessária na
construção de causas justas.
Podemos e até devemos
perdoar pessoalmente quem nos prejudica, dentro de uma ética que inclui a
espiritualidade cristã. Mas a história não pode perdoar ninguém. Se não
fizermos um justo balanço de pessoas que detiveram o poder e influenciaram o
curso da história, não podemos fazer avançá-la – como aliás é o mais comum no
Brasil. Aqui, qualquer personagem pernicioso passa ileso no julgamento de seus
contemporâneos e é até venerado por muitos. E isso sempre representa um entrave
na conscientização das massas e uma manipulação de seus afetos. Por isso tudo,
é dever nosso escrever a narrativa reta de a cada um segundo as suas obras!
Fonte: Jornal GGN
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