Bets engolem orçamento familiar e lucro
bilionário atrai até mesmo grandes mídias para o setor
Brasileiros perderam
R$ 24 bilhões em apostas esportivas e cassinos on-line no último ano. A escala
do prejuízo é tamanha que já se reflete nas vendas do varejo. Para agravar a
situação, os jogos de azar atraem empresas de mídia, responsáveis pela disseminação
das informações ao público, para o setor.
A Sputnik Brasil
questionou especialistas: é ético que essas companhias da indústria da
informação participem desse mercado?
De bancos, grandes
varejistas e firmas financeiras ao comércio local, todos já sentem o impacto
que as casas de apostas esportivas ou cassinos on-line (bets) está tendo no
bolso do brasileiro.
Segundo dados da
consultoria estratégica PwC, o mercado de apostas online movimentou entre R$
67,1 bilhões e R$ 97,6 bilhões só no ano passado, o equivalente a 0,9% do
Produto Interno Bruto (PIB) do país. Neste ano, o número deve chegar a R$ 130
bilhões.
Mais preocupante que
esse número são os dados divulgados em um relatório do banco Itaú. No último
ano, os brasileiros gastaram R$ 68,2 bilhões nas bets. Entre perdas e ganhos,
os brasileiros estão com um saldo negativo de R$ 23,9 bilhões, que foi embolsado
por essas empresas — algumas delas sem sequer possuir sede fixa no país,
portanto, à margem da arrecadação de impostos, por exemplo.
Desde que apareceram
no país em 2018, quando a atividade foi legalizada pelo então presidente Michel
Temer, as casas de apostas on-line se expandiram sem timidez nenhuma e com alta
velocidade.
Em pouco tempo, casas
de apostas começaram a aparecer nas camisas dos maiores clubes de futebol do
país como principais patrocinadoras. Nas publicidades do campo, seus nomes
também figuravam ao lado dos tradicionais varejistas e montadoras.
Na Internet,
influenciadores grandes e pequenos, seduzidos pelos altos valores pagos pelas
publicidades, divulgam para seus seguidores os jogos de azar como uma
oportunidade de ganhar dinheiro rápido e fácil.
Hoje, o Brasil já é o
terceiro maior mercado de apostas online do mundo, atrás apenas dos Estados
Unidos e do Reino Unido, afirmam dados da Comscore, empresa de análise de
dados.
De acordo com o
relatório do Itaú, as bets direcionam entre 45% e 75% de suas receitas para
publicidade. Em comparação, o gasto com propaganda em mercados mais maduros
fica em torno de 20% a 30% da receita bruta.
Tanto gasto com
publicidade se refletiu na adesão dos cidadãos. Cerca de 52 milhões de pessoas
já apostaram on-line ao menos uma vez, apontam dados do Instituto Locomotiva.
Desses, 60% perderam dinheiro, diz um estudo da Sociedade Brasileira de Varejo
e Consumo (SBVC).
Essas perdas nos jogos
de azar já chegam a prejudicar o orçamento familiar, especialmente das classes
D e E, aponta o laudo da PwC. Segundo a consultoria, 1,38% da renda familiar
está comprometida nesses gastos. Já um relatório do Santander coloca essa parcela
em 2,7%.
Ainda que discordem
quanto ao número exato, ambas as análises concordam que esse dinheiro gasto com
apostas está prejudicando outro setores da economia. Segundo o banco, na
esteira da melhora do nível do emprego e o aumento da renda, deveria ter
ocorrido um aumento nas vendas do varejo.
Mas não foi o que
aconteceu. Pelo contrário, as vendas do vestuário, eletrônicos, móveis e
calçados caiu no período. Em conversas não oficiais, as varejistas já especulam
que cerca de 5% de suas receitas tenham sido engolidas pelas bets.
A preocupação é ecoada
pelo diretor de política monetária do Banco Central, Gabriel Galípolo, que
comentou durante um evento no Rio de Janeiro que os incrementos de renda
trazidos pelo governo, como a valorização do salário e a queda do desemprego,
poderiam estar "vazando" para as apostas.
Igor Lucena,
economista, doutor em relações internacionais e CEO da Amero Consulting alerta
que isso causa uma sensação de piora na economia, uma vez que as pessoas, na
tentativa de aumentar sua renda, acabam perdendo dinheiro.
"Parte dos ganhos
econômicos estão indo para apostas, muitas delas que não ficam nem mesmo no
Brasil."
Para o economista, no
entanto, a redistribuição no orçamento das famílias de gastos pessoais com
casas de apostas ainda está longe de afetar o desempenho econômico do governo.
"Isso é visto mais por outras facetas além do aumento das vendas, como o aumento
da produção e o aumento do emprego."
Segundo Lucena, o
governo demorou para agir frente o surgimento das apostas on-line. Há décadas o
Estado proibiu os jogos de azar no país, a menos que realizados na Loteria
Federal. "Mas, com o advento dos sistemas digitais, aconteceu e em vez de
termos tido a visão de como seria a abertura dos jogos, veio tudo de uma vez e
agora estamos tentando regular."
A regulamentação, já
aprovada no Congresso e sancionada por Lula, entra em vigor no ano que vem e
trará benefícios, afirma o CEO da Amero Consulting. De acordo com ele, serão
muito mais do que os R$ 12 bilhões previstos em arrecadação pelo Ministério da Fazenda.
"Quando você
regula os jogos digitais, bingos e cassinos, se traz para o Brasil uma fonte de
renda muito maior no longo prazo, como a produção de prédios físicos,
restaurantes, shows. Ou seja, o desenvolvimento econômico real de cadeias
produtivas de emprego."
A regulamentação do
setor foi comparada por Lucena com o que ocorreu com os cigarros, que passaram
a ganhar avisos sobre os riscos a saúde e foram desenvolvidas regras mais
rígidas sobre locais onde se pode fumar.
Theófilo Rodrigues,
professor do programa de pós-graduação em sociologia política da Universidade
Candido Mendes (UCAM). destaca que de fato a regulamentação é bem-vinda.
"Não é possível
que esse mercado atue de forma desregulada como é hoje, concentrando
riquezas."
O prazo para que as
empresas se regularizassem e obtivessem a certeza de que poderão atuar a partir
de 1º de janeiro do ano que vem terminou na última segunda-feira (19).
No entanto, uma
análise do jornal Folha de S.Paulo descobriu que esse processo pode não ter
sido tão balanceado.
Das 555 reuniões
governamentais dos ministérios da Fazenda e da Saúde, 381 envolviam o mercado
de apostas. Dessas 251 contaram principalmente com representantes das bets. Já
profissionais da saúde foram consultados apenas cinco vezes.
Ex-servidores que
participaram das discussões, José Francisco Manssur (ex-assessor especial da
Secretaria Executiva da Fazenda) e Simone Vicentini (ex-secretária adjunta de
Prêmios e Apostas) assumiram a liderança do setor de apostas esportivos no
escritório advocatício CSMV.
As normas do texto,
consideradas semelhantes aos regulamentos em Gibraltar, Malta e Curaçao, são
também criticados por não abordar investimentos em saúde para prevenir e tratar
a ludopatia, termo que caracteriza o vício em jogos.
Nesse processo outro
ponto chamou a atenção foi o pedido de três grandes conglomerados de mídia para
atuarem como bets: Globo, SBT e Band. Tanto a empresa da família Marinho quando
a da família Abravanel já têm alguma experiência prévia com apostas e jogos de
azar.
A Globo possui em seu
portfólio de produtos o Cartola FC, um jogo fantasia criado pela emissora e que
pode ser jogado por qualquer um. O produto, no entanto, tem uma versão paga em
que há a possibilidade de ganhar prêmios em dinheiro. Já o SBT é dono da Tele-Sena,
um misto de título de capitalização com sorteios. A Band, por sua vez, procura
atuar em parceria com as empresas de apostas já existentes no mercado.
Para o professor da
UCAM, há um "risco de conflito de interesses imenso" na atuação das
empresas de mídia nesse mercado.
"Essas empresas
são concessões públicas de comunicação, logo, constituem certo oligopólio da
informação no audiovisual brasileiro. Não deveriam ter autorização nesse setor
econômico."
Número de pedidos de
licença de bets surpreende o setor
O mercado de bets se
surpreendeu com a quantidade de empresas de apostas que pediram a licença de
operação ao governo federal. Ao todo, 133 empresas pediram habilitação até a
terça-feira (20/8).
O número era 114, mas
a BetBet, que havia sido a 61ª empresa a pedir a licença, retirou a
solicitação.
A estimativa do setor
era que em torno de 70 empresas se habilitariam.
Segundo as regras do
governo, cada empresa habilitada pode registrar até três marcas. Com isso, caso
todas as empresas recebam a licença federal, 399 bets poderão operar no país.
O prazo que terminou
nessa terça-feira é para que as empresas recebam resposta a tempo de começarem
a operar até o dia 1ª de janeiro de 2025.
Outras empresas ainda
podem pedir habilitação, mas caso estejam de acordo com as regras, passarão a
operar em outras datas.
• "Bets" dominam redes com apoio
de influenciadores
No começo de agosto, o
governo restringiu anúncios com influenciadores promovendo apostas no Brasil,
mas as medidas só terão início efetivamente em 2025. Hoje, o cenário de perfis
prometendo ganhos fáceis e riqueza através das plataformas é intenso nas redes
sociais.
Dentre eles, há
denúncias de crianças promovendo jogos, e até promessas de informações
privilegiadas para apostas em partidas manipuladas. Especialistas cobram
maiores restrições, reforçando que a publicidade pode impulsionar o jogo de
forma inconsequente e o vício, contribuindo com perdas financeiras e problemas
emocionais.
Segundo a portaria
publicada pelo governo, serão vedadas as ações de publicidade que
"apresentem a aposta como socialmente atraente ou contenham afirmações de
personalidades conhecidas ou de celebridades que sugiram que o jogo contribui
para o êxito pessoal ou social ou para melhoria das condições
financeiras". As normas também impedem propagandas que deem a entender que
é possível desenvolver habilidade para influenciar o resultado de uma aposta,
como a descoberta de falhas ou métodos "infalíveis”.
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Propaganda desenfreada
No Brasil, as apostas
esportivas operam desde 2018 com uma legalização que não veio acompanhada de
uma regulamentação mais ampla, ou seja, sem medidas mais detalhadas para
publicidade, algo que deverá mudar a partir do próximo ano. Na visão de Carlos
Portugal Gouvêa, professor de Direito Comercial da Universidade de São Paulo
(USP) e sócio fundador do PGLaw, o cenário criou uma situação em que a
publicidade ocorre de forma "calamitosa” no país.
Sobre as medidas
atuais, ele questiona que as regulamentações de um tema "urgente"
irão valer apenas depois de seis meses da publicação da portaria, acreditando
que se trata de um "reconhecimento da própria falha” em lidar com a
questão. O tema ficou a cargo da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério
da Fazenda, que ele acredita ter um espaço limitado de ação.
Em sua visão, a
portaria atual dispõe de questões genéricas em sua maioria, o que deve
dificultar uma maior efetividade das medidas. "O órgão não tem capacidade
de fiscalização e fez normas de difícil aplicação, já que são muito abertas”,
avalia. Em sua visão, a efetividade das medidas dependeria de um volume bem
maior de verificação da publicidade do que aquele que será disponibilizado.
Uma grande parte das
medidas trata de jogo "responsável” e de indicações sobre a proibição para
menores de idade. Além disso, ficarão vetadas as propagandas de empresas que
não estejam regulamentadas junto ao governo, o que também passará a valer no
próximo ano.
"No caso de
bebidas alcóolicas, sabemos fazer isso. Ninguém faz propaganda na internet, e
nem em jogos de futebol, já que sabemos que há crianças assistindo. É preciso
regulamentar a publicidade das apostas da mesma forma que outras coisas que
causam vício, como álcool e fumo”, afirma o professor.
"Existem vários
riscos associados ao marketing, que incentiva as pessoas a jogar quando de
outra forma não fariam”, avalia Heather Wardle, professora da Universidade de
Glasgow, na Escócia, e especialista em apostas esportivas. "Nossas
investigações mostram que as pessoas que já sofrem danos causados pelo jogo são
as mais suscetíveis, o que corre o risco de agravar os danos”, aponta, o é
particularmente preocupante, dada a forte associação entre jogo e suicídio,
conclui.
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Crianças e ações policiais
Já nas redes sociais,
uso de influenciadores na promoção de apostas no Brasil é quase onipresente,
chegando até crianças e a ser caso de polícia. O Instituto Alana, ONG que atua
na defesa da infância e da adolescência, fez uma denúncia ao Ministério Público
(MP) sobre publicidade ilegal de cassinos online veiculada por crianças e
adolescentes em redes sociais. Um destaque é o perfil de uma influenciadora de
apenas seis anos que deu espaço a propagandas de cassinos e bets.
Além disso, uma série
de influenciadores foi alvo de operações policiais por prometer lucro fácil em
caça-níqueis online como o Fortune Tiger, popularmente conhecido como Jogo do
Tigrinho. Em Minas Gerais, a Polícia Civil realizou uma série de ações contra
perfis consolidados nas redes com milhões de seguidores, com frequência tendo
como alvo veículos e outros itens de luxo.
Em um dos casos, um
casal de influenciadores é investigado por movimentar mais de R$ 20 milhões
supostamente adquiridos com a promoção do caça-níquel. Nesta ação, ambos foram
autuados pelos crimes de promoção de jogos de azar e contra a economia popular.
Outras operações tratam ainda de outros crimes, como estelionato.
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Promessas falsas
O segmento das apostas
esportivas apresenta uma ampla gama de influenciadores buscando se destacar
oferecendo dicas e outros serviços para "turbinar os lucros".
Atualmente, em perfis intitulados "traders esportivos", há uma série
de promessas de como "alavancar" os investimentos no mercado, com
frequência ostentando carros e viagens internacionais supostamente pagos com os
rendimentos das apostas no futebol.
Diversos contam com
dezenas de milhares de seguidores, e alguns ultrapassam até mesmo os milhões.
Um dos mais famosos se descreve como "uma máquina de ganhar dinheiro” que
ficou "rico apostando”.
"As relações
comerciais entre estes influenciadores e as empresas de jogo não são nada
claras”, aponta Wardle. "Não está claro se as empresas estão alterando as
hipóteses de ganhar e é improvável que o influenciador esteja apostando o seu
próprio dinheiro e, portanto, provavelmente se comportará de uma forma muito
diferente do que se estivesse se arriscando”, pondera.
Muitas contas têm
anúncios patrocinados nas plataformas, e alguns perfis vão além, prometendo
ganhos a partir de esquemas com robôs e inteligência artificial que
impulsionariam os acertos. "Vender desinformação sobre os benefícios do
jogo sem qualquer informação sobre as possibilidades realistas de ganhar ou o
risco de danos é moral e eticamente duvidoso e não deve ser permitido”, alerta
Wardle.
Em casos mais ousados,
os perfis oferecem supostas informações privilegiadas sobre jogos manipulados,
normalmente envolvendo divisões inferiores do futebol brasileiro. A publicidade
costuma levar a links de grupos no Telegram, onde partidas com resultados
supostamente combinadas são oferecidas. Um dos grupos ao qual a DW teve acesso
contava com mais de 50 mil integrantes.
Em alguns casos, a
promessa de grandes rendimentos com as apostas pode ser base para esquemas de
pirâmides financeiros. Em julho, um homem em Mirandópolis (SP) foi acusado por
centenas de vítimas de fugir com o dinheiro que elas haviam depositado em sua suposta
casa de apostas, que prometia rendimentos de 13% ao mês.
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Exemplos internacionais
Em 2018, a Itália,
país assolado por escândalos históricos de manipulação de resultados
esportivos, decidiu pela proibição completa da publicidade de casas de apostas
esportivas. Desde então, uma série de plataformas, incluindo a Alphabet, que
controla o Youtube, foram processadas no país por supostamente permitir
propagandas de jogos de azar.
Já a França capitaneou
um movimento pela proibição de propagandas de apostas por parte de
influenciadores, que ganhou outras adesões. Na Espanha, a "lei dos
influenciadores” proibiu toda publicidade de apostas para audiências que sejam
consideradas como potencialmente infantis.
Wardle lembra que
muitos países confiaram em códigos de conduta voluntários para regular a
publicidade, mas que existem vários casos em que estes simplesmente não são
cumpridos ou em que são tomadas medidas para contornar os códigos.
Um dos casos mais
emblemáticos é das equipes de futebol britânicas da Premier League, que
anunciaram um banimento voluntário dos patrocínios em casas de apostas em suas
camisas após 2026. Mas até lá, o protagonismo das plataformas no campeonato
deverá seguir rivalizando com os principais jogadores: 11 dos 20 times do
campeonato têm nas apostas seu patrocínio principal.
Fonte: Sputnik
Brasil/Metrópoles/Deutsche Welle
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