‘Área agricultável do Cerrado baiano já
perdeu 90% de vegetação nativa’
Geógrafo e professor
do Instituto Federal de Brasília (IFB), o baiano Tássio Barreto Cunha assistiu à expansão do agronegócio em seu
Estado natal muito antes do reconhecimento oficial da região do Matopiba, em
2015. A familiaridade com o impacto sobre as comunidades tradicionais e com as
andanças nos territórios o levou a percorrer nove mil quilômetros durante o
trabalho de campo realizado no desenvolvimento de sua tese de doutorado. A
pesquisa abrangeu análises sobre questões relacionadas à terra, água e trabalho
no contexto do avanço da fronteira agrícola no Oeste da Bahia. Em entrevista
exclusiva à Eco Nordeste, o pesquisador resgata os elementos históricos e
naturais do povoamento e da formação social da região, aponta fatores
econômicos globais para a chegada das empresas do agronegócio e menciona dados
sobre os impactos decorrentes do desmatamento e do uso exagerado das águas na
irrigação. Leia a entrevista a seguir.
CAMILA AGUIAR – Quais
são as características da formação dos povos tradicionais no oeste da Bahia?
TÁSSIO CUNHA – Para
entender as comunidades, sem dúvida alguma é preciso entender o processo
histórico de povoamento no território brasileiro. A Bahia é um ponto central do
País porque é o Estado que representa a chegada dos portugueses, as primeiras
invasões no território, os primeiros golpes que nós sofremos, desvirtuando e
desestruturando todos os moldes civilizatórios das nossas populações
tradicionais, dos povos originários, e depois com os povos africanos
escravizados.
Outra condição central
que é necessária para compreender esse povoamento e a formação é o Velho Chico,
o famoso Rio São Francisco. Essa região do Oeste da Bahia é conhecida hoje
pelos geólogos como o “pulmão do São Francisco”. Lá existe um aquífero chamado
Urucuia. Segundo os levantamentos que a Agência Nacional de Águas (ANA) e
alguns outros pesquisadores apresentam, é o aquífero com a terceira maior
capacidade de armazenamento de água no território brasileiro. Isso proporciona
a formação de rios com quantidades de vazões consideráveis na Bacia do São
Francisco, consequentemente, também no território baiano. Por essa
característica, eles proporcionam a desenvoltura da navegação, então esse
povoamento, junto com os povos originários do Oeste da Bahia, se dá
principalmente pelo Rio São Francisco, de início.
Aí é que vem a questão
da criação do gado e toda essa cadeia produtiva que até hoje persiste com as
populações tradicionais que ali existem. É muito comum a formação de derivados
do gado bovino, como leite, queijo, requeijão e os mais variados doces que se
possa imaginar. A inserção da cana-de-açúcar, que ainda é muito produzida,
sobretudo para a produção da rapadura por essas populações. Esse povoamento se
dá não pelo litoral, mas sim pelo Rio São Francisco. Os rios são os principais
canais de povoamento.
Junto a isso, o
território baiano foi palco de diversos conflitos intensos e, consequentemente,
matanças ao longo dos séculos. Não é à toa a quantidade de povos aquilombados,
inclusive essas populações em grande parcela ou já são reconhecidas, sendo certificadas
e titularizadas, ou mesmo sem esse reconhecimento do Estado possuem diversas
dessas características. Desses conflitos, temos por exemplo a Guerra de
Canudos, no Norte do Estado, que provocou uma migração intensa para vários
lugares do território baiano e nordestino. O Oeste da Bahia foi um deles.
CA – Como se deu a
implantação e a expansão da fronteira agrícola nessa região?
TC – Para entender a
criação e também o avanço dessa fronteira agrícola é preciso partir de uma
leitura multiescalar, ou seja, da condição de mundo. Não tem como entender essa
dinâmica isolando o Oeste da Bahia, o Nordeste ou o Brasil. Dentro dessa lógica,
nós fomos no caminho do modo de produção vigente, que tem como centralidade a
expansão e acumulação de riqueza, com o viés central de aumento do lucro da
classe que controla as regras, as instituições de forma majoritária, que é a
elite ou a burguesia.
Até onde se tem
notícia, o olhar frente à expansão agrícola no mundo não se deu na década de
1970 e tampouco é de hoje. Isso está numa perspectiva histórica e é preciso
irmos em marcos mundiais para compreendermos mais essas questões, como a
Segunda Guerra Mundial e toda a lógica de destruir para reconstruir. Os
vencedores da guerra tiveram esse plano de expandir o capital agrícola no mundo
e o Brasil foi um dos focos por conta da sua dimensão territorial, variedade
climática, solos, vegetação, relevos etc. Os estudos sobre o Planalto Central e
também do Oeste da Bahia se dão a partir desse momento. Depois disso tem toda
aquela convulsão com Getúlio Vargas, sua morte, aí vem Brasília, Juscelino
Kubitschek, João Goulart e golpe de 1964, aliança com os norte americanos e,
consequentemente, um momento propício para começar a instalação e expansão das
fronteiras agrícolas no Brasil. Inicialmente, o Rio Grande do Sul é palco dessa
proposta, essencialmente por uma condição conjuntural das políticas junto aos
militares, e também uma condição climática e ambiental de forma geral. Os
gaúchos, depois os paranaenses, foram direcionados a se encaminhar pelo Brasil
afora para ocupar essas fronteiras, a imensa maioria de terras devolutas
ocupadas por populações centenárias.
A partir da década de
1970, no Oeste da Bahia, começam os primeiros plantios e a invenção das
primeiras lendas sobre os “desbravadores” de lugares onde não existia nada nem
ninguém. Acontece também uma entrada de forças internacionais, com as grandes
corporações multinacionais e a produção de commodities.
CA – E o que muda a
partir da entrada dessa atuação estrangeira na expansão da fronteira agrícola?
TC – Temos dois
vieses: a compra de terras por estrangeiros e o controle da cadeia produtiva.
São cerca de 31 grupos controlando mais de 70% da produção no Oeste da Bahia,
as mais conhecidas com a Bungee, a Cargill. Não são necessariamente apenas
detentores de terras, mas controlam a produção e desenvolvem verdadeiros
oligopólios atuando na produção de sementes e venenos, no financiamento com
seus próprios bancos, no armazenamento e distribuição com grandes galpões,
transportadoras e estruturas para exportação nos portos. Mas também existem os
grupos nacionais, os maiores são os Horitas e os Bozzatos.
CA – Como a
fragilidade da legislação ambiental agrava o desmatamento e a destruição do
Cerrado nessa região?
TC – As áreas no Sul
global, com grandes dimensões territoriais escolhidas para a produção de
commodities agrícolas dentro dessa lógica, são as mais impactadas e também as
que possuem legislações ambientais mais frágeis, com menor poder de punição e
de fiscalização, e o pouco que se tem não é respeitado. A Bahia possui
legislações extremamente frágeis e o Instituto do Meio Ambiente e Recursos
Hídricos (Inema), que é o órgão ambiental estadual, é literalmente
desestruturado para atender à demanda dessa grande dimensão territorial do
Estado. Há várias denúncias de fraude dentro do órgão e, assim, se tem a
licença para avançar da forma que se bem entende. A parte agricultável nos
“chapadões” do Cerrado baiano, que são as mais cobiçadas, já perdeu cerca de
90% de vegetação nativa.
O direcionamento do
avanço da fronteira tem algumas estratégias relacionadas, por exemplo, ao
índice de chuvas, à questão do relevo, tipos de solo, que exigem uma adaptação
das culturas e práticas a serem desenvolvidas. A soja, por exemplo, não tem
condições de ser cultivada em relevos ondulados e com índice pluviométrico
abaixo de mil milímetros anuais. Para isso existem os projetos de irrigação nas
margens de rios. Olhando para o mapeamento dos pivôs centrais que eu fiz na
tese de doutorado, temos o dado de que mais de 80% das vazões dos rios tinham
sido outorgadas pelo Inema para uso na cadeia produtiva do agronegócio.
CA – Como o
agronegócio está afetando a água na porção baiana do Matopiba?
TC – A água é um
elemento que constitui a vida e sempre foi elemento central nessa cadeia
produtiva. É preciso ter condições atmosféricas e regularidade hábil das chuvas
para ter plantações, ou mesmo a questão da irrigação próxima a rios, a
perímetros de irrigação ou sobreposta a grandes aquíferos. Seja superficial,
subterrânea ou atmosférica, a água é disputada e controlada pelas forças
dominantes do capital. A contradição é que ao mesmo tempo em que você implanta,
expande e intensifica o lucro, também aumenta o impacto na natureza, porque o
desmatamento desequilibra o ciclo das águas, a irrigação diminui a quantidade
de água disponível. Os estudiosos vêm apontando a relação da ação antrópica com
o aquecimento global, as variações climáticas e no Oeste da Bahia nós
conseguimos levantar que as chuvas diminuíram a partir desse momento da
abertura das fronteiras agrícolas, mas as águas superficiais diminuíram mais
ainda. Diminuiu a chuva? Sim, mas as águas superficiais diminuíram duas vezes
mais.
O Velho Chico, além de
sua representação histórica e cultural no Brasil, é um rio responsável por toda
uma cadeia de produção hidroelétrica, responsável por abastecer diretamente a
região Nordeste. A diminuição das águas no Oeste da Bahia impacta diretamente
na vazão do seu curso principal e, consequentemente, na produção de energia. Os
dados da Agência Nacional de Águas (ANA) apontam que cerca de 18% da vazão do
Rio São Francisco reduziu por conta do impacto nas águas do Oeste da Bahia, com
a implementação desse modelo de cadeia produtiva.
As águas de aquíferos
também são impactadas porque isso é uma totalidade integrada. Os rios
apresentam verdadeiros afloramentos de águas subterrâneas, sobretudo no período
seco. O São Francisco só consegue percorrer no período seco por causa do
Aquífero Urucuia. As águas afloram nos vales, nesses vales se formam os rios
com a água subterrânea e elas se transferem para o Rio São Francisco. Sem o
aquífero, o rio não teria capacidade alguma, porque dentro da sua bacia, além
da imensa maioria estar em área de clima semiárido, com chuva escassa e
irregular, há poucas áreas com capacidade de armazenamento em quantidade hábil
para atender a demanda no período seco.
CA – Você realizou um
extenso trabalho de campo para desenvolver sua tese. Como foi essa jornada e
experiência?
TC – Eu nasci em
Irecê, uma cidade no sertão baiano que foi palco de expansão da fronteira
agrícola antes mesmo do Oeste da Bahia. Meu pai e minha mãe nasceram em
território quilombola, tive um tataravô que fundou um quilombo, meu pentavô foi
escravizado. Então, tenho uma relação direta com essas populações tradicionais,
nasci nesse contexto de condições sociais de miséria econômica, mas de riqueza
de produção agrícola, riqueza cultural e de uma força interna diante das
dificuldades da vida.
Migrei para estudar em
João Pessoa. Eu fiz Geografia porque gostava dessa dinâmica de estar no meio
rural, da relação com os grupos sindicais. Eu ia muito pro meio do mato com meu
avô e na escola a Geografia foi a disciplina que eu mais me identificava. Na
faculdade eu tive contato com essas práticas de campo, que eu fazia com muita
tranquilidade porque eu nasci me movimentando assim e assistia esses problemas
sociais desde pequeno.
No doutorado, eu fiz
um imenso campo. Comecei no Oeste do Paraná, conversando com pessoas migrantes,
que estavam indo pro Oeste da Bahia ou que já tinham voltado. Morei durante
seis meses em Barreiras, no Oeste da Bahia, e circulei de leste a oeste, de sul
a norte, no meu carro Uno preto, com motor 1.0 e setenta cavalos, apelidado de
“Bacharel”, que me ajudou bastante nas estradas entre aquelas carretas
mirabolantes. Fiz um campo de mais de nove mil quilômetros para entender tudo
isso, e a base do trabalho foram os discursos das pessoas.
CA – Você catalogou 29
corpos d’água mortos. Foi só pelo discurso das pessoas ou você chegou a visitar
algum desses lugares?
TC – O que acontece é
que quando a gente começa a caminhar é extremamente comum, em todo local, ter
algum camponês ou camponesa que diz assim: “aqui tinha uma nascente, uma lagoa,
um pequeno rio, um pequeno córrego. É muito comum porque diante da natureza do
relevo, do solo, do próprio aquífero a região é muito abundante em água e os
processos de destruição vão literalmente impedir o afloramento. Matam
nascentes, desequilibram ciclos. O que eu consegui catalogar a partir do
discurso das pessoas foram pequenos córregos que pararam de existir durante a
época seca. E deixei claro no trabalho que na realidade esse número deve ser
imensamente maior.
Mais sobre o Matopiba
Denominado com as
sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e
Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como
um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais
desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho
e algodão.
O Matopiba tem 73
milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o
equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a
7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida
como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o
Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.
Este conteúdo faz
parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio
do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz
matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a
região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que
aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta
experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de
jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.
O projeto é executado
por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar,
com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação-geral da jornalista
Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel
é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; Adriana
Pimentel a edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das
redes sociais.
Fonte: Por Camila
Aguiar, da Agência Eco Nordeste / MST
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