No Rio Grande do Sul, indígenas temem
deixar suas casas pela inundação e perder território
A cerca de 60
quilômetros de Porto Alegre, em Capivari do Sul, à beira da rodovia RS-040 e
perto de uma ponte, o rio Capivari invadiu três casas da comunidade Guarani
Araçaty, que vive no local há quase 40 anos.
Vídeos feitos por eles
mostram a água alta o suficiente para molhar camas e roupas, estragar
utensílios e eletrodomésticos. As famílias tiveram que se abrigar na escolinha
do território, esperando a água baixar. Acontece que ali é uma área de
retomada, sem demarcação. Sair do território pode significar não retornar.
‘‘Isso que a gente
pensou, que se fôssemos para lá [abrigo] e voltar e fizessem alguma coisa. Por
isso a gente não foi’’, diz o cacique Rafael Cáceres, 34 anos, que vive no
local há cerca de 20. ‘‘Esperamos algum outro [território] e demarcação também.
Na estrada, só tem 10 metros da largura da rodovia, é muito perigoso. É
pequeno. Nem dá para plantar, só horta a gente tem na escolinha.’’
Com a recorrência das
chuvas em maio, as casas da comunidade alagaram mais de uma vez. Desde 2012,
eles esperam o andamento de um grupo de trabalho instituído pela Fundação
Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para estudos de identificação e
delimitação de terras, e andamento do processo de demarcação. Uma história que
se repete com outras comunidades indígenas pelo estado.
No Lami, zona sul de
Porto Alegre, a comunidade Pindo Poty, que espera desde 2012 o andamento de
estudo para iniciar o processo de demarcação, também foi atingida por
alagamentos que obrigaram os Mbya Guarani a ir para um abrigo. Eles dizem que
cerca de 15 famílias vivem no território. Há cerca de três anos, o Conselho
Indigenista Missionário (Cimi) denunciou tentativas de invasão e loteamento da
área onde está a retomada.
Os indígenas contam
que as cheias não são novidade por ali, mas não no nível de agora. Desta vez,
depois de um tempo em uma igreja, também na zona sul da capital, eles
preferiram voltar para o território assim que a água recuou um pouco. Joenia
Wapichana, presidente da Funai, chegou a visitá-los, no início de maio, ainda
no abrigo.
‘‘Molhou tudo, a água
já estava dentro da casa, levou cadeira, panelas. Alguns perderam galinhas,
cachorrinhos. Nas outras vezes, não foi tanto assim’’, conta Andrea Martins,
42, que mora na Tekoá (aldeia Guarani).
‘‘A gente precisa da
demarcação, porque, se for demarcada, podemos entrar mais para o fundo [do
terreno], onde a água não chega’’, diz o cacique Roberto Ramires.
Um informe do dia 22
de maio, da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da
Saúde, aponta que 16.691 indígenas foram afetados pelas enchentes no Rio Grande
do Sul, de forma direta ou indireta, um total de mais de 5 mil famílias. Já a Funai,
que divulgou uma lista com a situação de comunidades no início de maio, cita
casos de aldeias com desalojados, ilhados (comunidades que perderam acesso por
estradas ou pontes caídas) e atingidos. Questionada pela Agência Pública sobre
atualizações, a Funai não deu retorno.
A Defesa Civil
estadual não confirma se há indígenas entre as 172 mortes registradas ou 42
desaparecidos confirmados até o dia 3 de junho, por não ter recorte de perfil
na lista.
Segundo o Ministério
dos Povos Indígenas (MPI), nos polos-base do estado foram reportados ‘‘impactos
na comunicação, no fornecimento de energia elétrica nas residências e na
unidade de saúde, danos em Sistemas de Abastecimento de Água (SAA) e estruturas
dos serviços de saúde, necessidade de evacuação e dificuldade de acesso às
aldeias’’. Seis dos sete polos no Rio Grande do Sul têm ‘‘aldeias parcialmente
e totalmente isoladas, somando 45 aldeias, com 11.743 indígenas e 3.581
famílias, distribuídos em 30 municípios’’, de acordo com a pasta. Não
conseguimos obter resposta sobre quantas aldeias estão em áreas não demarcadas.
O ministério diz que começou a distribuição de cestas básicas no dia 14 de maio
e faz levantamento de municípios que incluíram comunidades indígenas em seus
planos emergenciais.
‘‘Nesse momento, a
preocupação que a gente tem é por alimento. Tem aldeias que não foram atingidas
pela chuva, mas ficam distante das cidades, e a chuva estraga o caminho até lá
e não conseguem fazer as compras, levar artesanato, e muitas famílias dependem
dessa renda’’, explica Hélio Gimenez Fernandes, da Comissão Yvyrupa Guarani.
A comissão, que
representa povos indígenas de seis estados, lançou uma carta junto a outros
movimentos e apoiadores da articulação indigenista sobre a situação no Rio
Grande do Sul, ainda em maio. Entre as demandas, além de pedidos por resposta
emergencial e coordenação para emergência climática, eles pedem que as terras
que pertencem ao estado do Rio Grande do Sul e hoje estão habitadas por
indígenas sejam convertidas em reserva, uma vez que o pagamento da dívida do
estado com a União foi suspenso.
“A gente tem 67
aldeias, acampamentos, tem só cinco áreas Guarani demarcadas no Rio Grande do
Sul. Não somente hoje, agora, mas as pessoas que estão em acampamento, que a
gente faz retomada, tem áreas que o Estado emprestou e está chegando em prazo
de vencimento, e pode requerer de volta. A maioria das áreas que os Guaranis
estão ocupando são do Estado’’, diz Hélio.
No programa Roda Viva,
em 20 de maio, o governador Eduardo Leite (PSDB) respondeu à uma questão sobre
planos do governo para garantir assistência às comunidades indígenas dizendo
que elas ‘‘são olhadas com o mesmo carinho, mesma atenção que a gente tem que
dar para cada cidadão, seja na zona urbana, zona rural, sejam populações
específicas’’.
Em nota enviada à
Pública, o governo estadual disse estar ciente da carta publicada pela
articulação indigenista e que mapeia ‘‘localidades e comunidades indígenas
necessitadas e o direcionamento das doações’’. Sobre a questão das terras, a
nota ressalta que a titulação cabe à União, mas afirma que tem apoiado
comunidades através da Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária
(Sehab) e ‘‘junto à Justiça Federal na intermediação para que a madeira caída
em áreas de Floresta Nacional (Flona) seja destinada à produção de moradias
indígenas’.’
• A viagem de Kretã Kaingang
Kretã Kaingang
percorreu pontos diferentes do estado para verificar a situação de comunidades
indígenas atingidas nas enchentes. Ele reconhece que há temor entre quem vive
em área não demarcada de sair do território em retomada, mas cita casos
emergenciais que deixaram comunidades sem escolha, como o caso da aldeia
Pekuruty, que tem sete famílias e vive há cerca de 15 anos às margens da
BR-290, em Eldorado do Sul. O município, vizinho à capital gaúcha, teve mais de
90% do território inundado nas enchentes.
‘‘A gente sabe que o
Estado pode usar isso, de não deixar mais o retorno dessas comunidades para
esses territórios’’, afirma Kretã, que é coordenador executivo da Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) pela Articulação na Região Sul (ArpinSul).
‘‘Porto Alegre é uma
capital que era totalmente indígena, tanto Kaingang quanto Guarani. Hoje, das
comunidades que estão na Grande Porto Alegre, 70% delas ainda estão em processo
de regularização, a questão da demarcação das terras, e são as que foram mais
afetadas e que tiveram mais problemas nesta catástrofe’’, diz ele.
Os Mbya Guarani da
Pekuruty tiveram de deixar o local no começo de maio, depois que o rompimento
de uma galeria pluvial deixou casas alagadas na comunidade. Enquanto os
indígenas estavam em abrigos no município, o Departamento Nacional de
Infraestrutura de Transportes (Dnit) derrubou as construções da aldeia.
Segundo o Dnit, a ação
foi emergencial para restabelecer a ligação entre Porto Alegre e outras regiões
do estado e o acesso à assistência humanitária. A autarquia afirma que as
construções serão refeitas em área segura, a ser aprovada pela comunidade e pela
Funai, conforme já estava previsto no Plano Básico Ambiental Indígena (PBAI)
das obras de duplicação da BR-290. A autarquia reforça ainda que a remoção das
moradias não teve relação com as obras.
O Ministério Público
Federal (MPF) no Rio Grande do Sul diz que instaurou procedimento pedindo
informações sobre a ação. ‘‘O objetivo do MPF é não somente exigir do Dnit a
imediata recomposição da aldeia em local a ser definido pelos indígenas, como
também a responsabilização do órgão pelos danos materiais e morais causados à
comunidade, que teve escola, moradias e bens móveis destruídos’’, afirma a
procuradoria em resposta enviada à Pública.
Em todo o estado, há
áreas onde as famílias são obrigadas a viver em áreas degradadas e de risco,
porque não têm acesso à área que deve ser demarcada, explica Roberto Liebgott,
da coordenação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na região Sul. ‘‘Se
houvesse local demarcado, não precisariam ser removidos e instalariam as
comunidades em locais de menos risco. Não podemos afirmar que solucionaria uma
situação catastrófica como essa, mas daria mais segurança’’, avalia.
A comunidade da
Pekuruty deixou o abrigo em Eldorado no dia 19 de maio e, com apoio da Comissão
Yvyrupá e fundos levantados por doações, reconstruiu quatro casas para a
aldeia, com mutirão, em local próximo ao anterior. Em meio à espera, eles se
instalaram em uma aldeia vizinha, com barracas emergenciais cedidas pelo
Exército.
‘‘O Estado tem essa
dívida de demarcar essas terras. O governo estadual precisa, de alguma maneira,
fazer parte disso, para que regularize, assim como os municípios também. Então,
tem que ser uma questão em conjunto hoje, para que os povos indígenas possam
garantir o direito à sua terra. Dá impressão que nós, indígenas, somos
estrangeiros no nosso país, e o invasor é o verdadeiro brasileiro’’, diz Kretã.
• “O mato foi um socorro, não deixou que o
rio viesse”
Na região norte do Rio
Grande do Sul, comunidades em terras indígenas já demarcadas também foram
afetadas pelas enchentes nos rios. A maioria delas Kaingangs. Na TI Serrinha,
com área de 12 mil hectares e território em quatro municípios gaúchos, a água atingiu
famílias em alguns setores da reserva, como o do vice-cacique Vanderlei Soares,
36, onde há cerca de dez famílias.
Ele conta que
moradores tiveram casas alagadas e chegaram a perder móveis, mas permaneceram
no local. Assim como muitas das pessoas atingidas no Rio Grande do Sul, ali,
ele também diz nunca ter visto a água chegar aos pontos onde chegou. ‘‘Tem um
pessoal no meu setor que sofreu duas vezes. Eles sofreram a primeira, limparam
tudo, voltaram para casa, e deu a chuva de novo dias depois, perderam tudo de
novo’’, conta.
Um dos moradores mais
atingidos foi Miguel Sales, 61 anos, que vive com mais cinco pessoas da família
na casa que foi inundada pelas águas. ‘‘A gente não tem condições de fazer
outra casa, então estamos lidando, com um ou outro ajudando com coberta, colchão.
Mas ficou precário. Na minha casa, ficou cama, colchão, mesa, fogão a gás, tudo
se foi’’, conta ele.
Na TI Rio da Várzea,
com cerca de 16 mil hectares de área e abrangendo cinco municípios, o
transbordamento do rio deixou algumas pessoas da comunidade ilhadas por alguns
dias e outras com casas atingidas pela água.
O cacique Antônio
Moreira Venrog, 59, ressalta que, ao contrário do que ocorre em outras terras
indígenas demarcadas na região, na área homologada desde 2003 não há
arrendamento de terras para lavouras. Ele lembra uma enchente histórica que foi
testemunhada pelos seus pais, mas conta que nunca havia vivido nada como a de
agora no território.
‘‘A gente está aqui
porque nossos avós deixaram para nós. A natureza, a gente tem que respeitar.
Porque, se não fosse essa floresta, o meio ambiente, poderia ter ido tudo
embora com essa enchente, mas, graças a Deus, o próprio mato segurou o rio’’,
diz ele.
‘‘O mato foi um
socorro porque atacou tudo o que tinha, não deixou que viesse o rio e tomasse
conta. A gente fica agradecido porque estamos cuidando essa floresta, para que
depois nossos filhos e netos não fiquem passando dificuldade como nós estamos
passando. Não sabemos daqui 15, 20 anos se não pode voltar a mesma enchente.’’
Na primeira visita que
fez ao estado em meio às enchentes, no começo de maio, a presidente da Funai,
Joenia Wapichana, disse à reportagem que a necessidade de planejamento sobre
efeitos climáticos, com discussão de planos de mitigação e adaptação, ajuda a
perceber como comunidades indígenas estão entre as mais afetadas pela crise
climática.
Questionada sobre a
importância de se discutir a demarcação em meio ao contexto atual, ela afirmou
que demarcação é direito dos povos indígenas e obrigação prevista na
Constituição. ‘‘Então, é preciso regularizar as terras indígenas, para que os
povos continuem a exercer os seus manejos sustentáveis, suas práticas, que
ajudam a floresta a se manter de pé, que protegem os mananciais de água, que
fazem com que a cultura seja repassada de geração em geração’’, afirmou.
Fonte: Por Fernanda
Canofre, da Agencia Pública
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