A proposta educacional do capital
Por que a Secretaria
Estadual de Educação de São Paulo está usando vídeos do Brasil Paralelo e
MBL? Por que fundações de bancos e bilionários, como Fundação Lemann,
Instituto Itaú Social e Instituto Ayrton Sena, se instalaram no Ministério da
Educação? Qual é a relação do Brasil Paralelo e MBL com a Fundação Lemann,
Instituto Itaú Social e Instituto Ayrton Sena? Qual é a relação entre
revisionismo reacionário e neoliberalismo? Qual é a articulação de institutos
da burguesia e “movimentos” da extrema direita com as propostas de Educação
Integral, Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e Novo Ensino Médio?
A esquerda defende uma
formação ampla e humanista vinculada ontologicamente ao trabalho, às artes, à
filosofia e à compreensão da realidade, ou seja, uma educação cujo princípio
esteja no trabalho enquanto elemento que nos faz humanos. A classe dominante,
em contrapartida, sempre impôs uma educação para o emprego, ou melhor, à
adaptação ao emprego. Formar, à luz do taylorismo, do fordismo e do toytismo, o
trabalhador produtivo. Contudo, estamos sob o neoliberalismo.
A nova proposta
educacional do capital é formar para o “não emprego”, pois não existem mais.
Dessa forma, o neoliberalismo transforma educação integral em educação de tempo
integral procurando preencher o tempo do jovem sem emprego com uma matriz
distinta da formação parcializada sob a acumulação fordista/taylorista e/ou
toyotista. A parcialidade não é mais suficiente.
A conjuntura
neoliberal é complexa. A expectativa da geração mais nova de ultrapassar a
renda dos pais, reproduzindo ao menos os seus empregos, em conformidade com o
sonho da classe média dos Estados de Bem-Estar Social nos países centrais no
pós-guerra, não existe mais. Há duas gerações, no mínimo, a renda cai em
relação aos pais. Se antes setores específicos da classe trabalhadora tinham
acesso à casa própria, emprego razoavelmente estável e um salário com bom poder
aquisitivo, hoje se amontoam gerações de jovens sem qualquer expectativa de
reprodução positiva de classe, resultando na ascensão de ideologias fascistas
da extrema-direita sobre jovens homens e brancos, como o neonazismo.
Explicações simplistas
trabalhadas nas redes sociais e deep web, como as que
responsabilizam a imigração nos países centrais e as políticas afirmativas no
Brasil, são propagadas abertamente como um falso paradoxo à esfinge do bom
liberal que se utiliza do fascismo para aprovar reformas ultraneoliberais. Os
banqueiros também disputam os jovens e, não paradoxalmente, na prática se aliam
a movimentos de extrema direita vinculados à essência de qualquer grupo
neonazista, como o MBL e o Brasil Paralelo.
O negacionismo é um
método político. Somente é possível negar a exploração capitalista sob a
hegemonia da acumulação rentista por meio da negação da história (materialismo
histórico), transformando o indivíduo em senhor de si, ou como dizia Friedrich
Hayek, no indivíduo soberano, inclusive (por que não?) em oposição à soberania
do Estado-nação.
Para as fundações de
banqueiros e bilionários, faltariam aos “pobres” estudo e educação para gerarem
renda, ressuscitando preceitos apologéticos da teoria do capital humano, agora
insuflados pela teologia da prosperidade. Essa nova proposta dialoga com a
defesa de uma escola bifurcada, uma para a classe trabalhadora e outra para a
classe média tradicional e a burguesia, ao mesmo tempo em que se aproxima de
problemas urgentes da classe trabalhadora, como o afastamento do filho da
violência. Logo, é eficiente politicamente.
A educação em tempo
integral, a Base Nacional Curricular Comum e o Novo Ensino Médio se fundamentam
em teorias e propostas utilitaristas, solipsistas e fragmentadas, com a
apresentação de proposituras anticientíficas que mitificam a realidade, como o
empreendedorismo. Para tanto, fundamentam-se em uma lógica oficineira, na qual
tudo pode ser conhecimento escolar por meio de uma transposição mecânica da
ideologia empresarial para a classe trabalhadora (“pequeno patrão”).
Os professores não
devem mais ter formação, pois devem ser polivalentes, práticos e com formação
“fluída”, derivando uma enorme fragmentação da realidade que aliena ainda mais
o aluno por tornar a miséria produto de suas escolhas.
Ciência não existe
mais. É um ensino negacionista. É o que explica a utilização de vídeos do
Brasil Paralelo e MBL, uma vez que agora os conhecimentos não científicos são o
parâmetro pedagógico ideal para a adaptação da classe à exploração neoliberal
(precarização, somatização de doenças e ausência de perspectiva). Ocorre que
não são apenas os vídeos. O golpe já foi dado.
A implosão das bases
cientificas do trabalho pedagógico é legalizada e legitimada na Base Nacional
Curricular Comum e no Novo Ensino Médio. Essas duas medidas relativizam o
conhecimento científico, tornando-o em saberes e competências a serem
apreendidos pelo jovem em um mundo que seria informatizado e tecnológico. Se o
Brasil passa por um processo de desindustrialização e desnacionalização de sua
economia pouco importa, pois a tecnologia pensada e trabalhada é a do senso
comum, é a das plataformas precarizantes como Uber e Ifood e de aplicativos de
celular. Em outras palavras, é a radicalização de uma abordagem fetichista da
tecnologia submetida à perspectiva do consumidor e do trabalhador precarizado
formados pela ideologia do pequeno patrão.
O negacionismo
historiográfico, histórico e sociológico é fundamental para os segmentos
sociais dominantes porque naturaliza a posição que possuem, transmitindo a
ideia liberal-escolanovista de que conseguiram o status em uma disputa aberta e
justa sobre um sistema meritocrático que formou uma sociedade alicerçada na
“hierarquia das capacidades”. O autoritarismo da escolha da profissão, por
exemplo, se daria apenas se o Estado interviesse, jamais como produto das
relações econômicas, sociais e políticas.
Assim, assiste-se à
glorificação pelo ideário liberal das figuras do herdeiro escravista
oitocentista e do bilionário salvador enquanto o mesmo ideário justifica a
oposição à legislação trabalhista, às cotas e ao Bolsa-Família, refutando
qualquer intervenção do Estado (autoritarismo), inclusive para salvamento de
vidas em eventos ambientais e climáticos, como ocorre no Rio Grande do Sul.
É aqui que entram o
MBL e o Brasil Paralelo na jogada. Negação do papel do escravismo, do
embranquecimento, da segregação e da desigualdade para a concentração de
capitais e da propriedade privada reforça a ideologia da classe dominante que
não pode mais disfarçar as mazelas do neoliberalismo, ao mesmo tempo em que
precisa naturalizar ideologicamente os seus capitais ocultando as suas origens
e seus “pecados”. No limite, há a defesa da negação da exploração do capital
sobre o trabalho, cuja defesa das mazelas do capitalismo em sua fase rentista
fetichiza o indivíduo “selecionado e forte” (darwinismo social),
transformando-as em currículo positivo ao jovem com uma educação adaptativa
para o não emprego. Chamemos de fetichismo da meritocracia.
Antes do negacionismo
biológico e físico, que negam a vacina e o formato do planeta, o negacionismo
histórico, historiográfico e sociológico foi, por anos, arma de luta da classe
dominante usada por grupos que se popularizaram com forte financiamento do capital
e auxílio dos algoritmos das plataformas privadas de bilionários estrangeiros.
Legitimado, o negacionismo entrou no currículo articulado no Ministério da
Educação por fundações de direito privado ligados a bilionários objetivando
naturalizar a acumulação rentista.
A atuação desses
grandes bancos não pode ser entendida como normalmente se apresenta, na qual
estaria circunscrita em ganhar recursos de secretarias e ministério e
isentá-los no imposto de renda. São aspectos absolutamente marginais do
trabalho das fundações de bilionários. Muitas vezes, a atuação desses
institutos não possui qualquer transferência de recursos públicos. Não faz
sentido pensar com essa variável mecanicista, pois nenhum setor acumula mais do
que bancos e rentistas por meio da isenção de lucros e dividendos e das
exorbitantes taxas bancárias e de juros. O interesse está na formação do
trabalhador neoliberal.
É que se percebe nas
propostas do governo do estado de São Paulo, possuidor da rede que mais avançou
em tais políticas em virtude de sua aplicação ininterrupta por 30 anos.
Reproduzimos no presente texto uma proposta da aula de “liderança” da rede
estadual para alunos do ensino médio. As três primeiras fotos são da aula de
“liderança”, tratando um conceito não científico, a resiliência. Aqui o aluno é
preparado para suportar o não emprego e convencido a entender a realidade a
partir de sua vida e “escolhas”.
A autora utilizada,
Diane L. Couti, é uma coaching (jornalista) que escreveu um
artigo denominado How Resilience Works na Havard
Business Review. Não há qualquer citação de dado científico no pequeno
artigo, o qual é jornalístico e panfletário. As referências da jornalista são
frases de CEOs de grandes empresas em que é destacado um pensamento do CEO Dean
Becker: “Mais do que educação, mais do que experiência, mais do que formação, o
nível de resiliência de uma pessoa determinará quem terá sucesso e quem fracassará.
Isso é verdade no adoecimento de câncer, é verdade nas Olimpíadas e é verdade
na sala de reuniões”. Qual é o parâmetro científico dessa besteira normalmente
proferida por coachings?
A conclusão da aula
exige que os alunos passem a aplicar o que aprenderam, a “resiliência”,
encarando “a realidade” e buscando “sentido” para “improvisar”. A realidade,
produto das relações de produção, da exploração e da desigualdade, é
mistificada porque deve ser apreendida para ser encarada, ou melhor, aceita
como ela é para ser suportada. Não existe mais a aprendizagem, a compreensão e
a análise. A improvisação, por sua vez, é uma figura de linguagem malfeita para
que o aluno “se vire”.
Concatenada com a aula
de “liderança”, os alunos são convencidos na aula de sociologia a acreditar que
“ansiedade” e “depressão” são frutos do “consumismo” porque viveriam em uma
“sociedade de consumidores”. Aqui se tem literalmente a ideia apregoada por
qualquer think tank neoliberal que não existiriam classes
sociais, mas apenas indivíduos consumidores, na qual a sociedade não possuiria
qualquer dimensão coletiva por estar submetida aos gostos dos consumidores e à
precificação das mercadorias em relação de oferta e demanda cuja variável
determinante seria o consumo. Logo, quem tem poder é o consumidor em detrimento
da cidadania emanada da Constituição de 1988 (políticas sociais), do
trabalhador e do movimento político.
Nega-se a existência
de classes, racismo, especulação imobiliária, concentração de terra, acumulação
de capitais, exploração etc. Mesmo conceitos mais amenos, como gentrificação,
são expelidos do material didático. A aula de sociologia dialoga com a aula de
“liderança” na medida em que exige do aluno praticar um novo comportamento
adaptativo e adaptável à “realidade”, com “condutas éticas frente aos desafios
da sociedade de consumidores”. Se há alguma luta, é como consumidor, escolhendo
não consumir produtos de empresas “que prejudicam seus empregados, a sociedade
ou o meio ambiente”. O pronome possessivo “seus” dando direito de propriedade à
empresa não foi um erro.
Se o aluno enquanto
indivíduo conseguir superar o “consumismo” por meio do poder da mente
(charlatanismo), ou seja, não querer consumir o que é convencido (sugestionado)
por meio de propagandas de grandes complexos industriais-financeiros desde que
nasceu, não terá “depressão” e “ansiedade”. A lógica implícita é a de uma aula
de autoajuda, não ornando com os dados mais básicos: o grupo social que mais
comete suicídio é o de trabalhadoras negras, aquelas que, comprovadamente,
possuem menor renda, piores trabalhos, menor consumo e, por conseguinte, o que
o material chama de “consumismo”. O material irresponsavelmente estabelece uma
relação criminosa de causa e efeito entre consumo e depressão, na qual a
depressão poderia ser evitada com um consumo “responsável” (sic!).
A entrada do Brasil
Paralelo e do MBL é uma consequência coerente do negacionismo neoliberal. Na
prática, tais movimentos de extrema direita já estão na educação brasileira há
alguns anos, especialmente no Ministério da Educação, representados oficialmente
por Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Ayrton Senna. É uma
proposta de educação para o não emprego amparada exclusivamente pelo
negacionismo científico como método didático-pedagógico e matriz curricular
nacional. É a expressão da vitória do neoliberalismo.
Fonte:
Por Leonardo Sacramento, em Outras Palavras
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