Como o STF vem confundindo terceirização com ‘pejotização’ em fraudes à CLT
EM JULHO DO ANO
PASSADO, Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF),
anulou uma ação trabalhista vencida por uma médica contra um hospital. A profissional da saúde havia trabalhado por oito anos
recebendo salário como pessoa jurídica (PJ), e cobrava o reconhecimento de
vínculo empregatício e o pagamento de direitos.
Quatro meses depois, a
ministra Carmen Lúcia invalidou decisão semelhante, favorável a um diretor de
programas do SBT que atuou na emissora por 11 anos, também como PJ.
Em dezembro, foi a vez
de Gilmar Mendes derrubar uma decisão da Justiça do Trabalho que beneficiava um
representante comercial. Já em janeiro deste
ano, Moraes cancelou novamente outra ação vencida por uma médica
“pejotizada”.
Em todos esses casos,
os ministros do STF cassaram vínculos empregatícios reconhecidos em ao menos
uma das três instâncias da Justiça do Trabalho – varas, tribunais
regionais e Tribunal Superior do Trabalho (TST). Com isso, também anularam o
pagamento de 13º, férias remuneradas, dentre outros direitos previstos na
CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), reivindicados por profissionais
contratados inicialmente como PJs.
Em linhas gerais, o
discurso dos magistrados do STF bate na tecla de que a legislação trabalhista
brasileira já não dá conta das transformações do mundo do trabalho, e de que a
suprema corte já tem um entendimento consolidado sobre a constitucionalidade de
todo tipo de terceirização. Em suas decisões, também têm invocado o princípio
da livre iniciativa e defendido a redução dos custos de contratação para os
empregadores.
Só entre janeiro e
agosto do ano passado, ministros do STF julgaram monocraticamente (ou seja, de
forma individual) 841 reclamações de empregadores contra decisões de tribunais
trabalhistas, ligadas à pejotização e à terceirização, de acordo com uma pesquisa
da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
No entanto, fontes
ouvidas pela Repórter Brasil afirmam que os juízes da suprema corte não só vêm
misturando indevidamente os conceitos de terceirização e pejotização, como
também têm aberto espaço para fraudes trabalhistas. Os especialistas alertam
ainda que os ministros podem tornar letra morta a CLT, além de esvaziar a
competência da Justiça do Trabalho para julgar toda e qualquer relação laboral,
como manda a Constituição.
“Há essa confusão no
STF ao analisar casos de terceirização e pejotização como se fossem as mesmas
coisas, mas não são. O STF não enfrenta o tema da forma correta”, afirma Rafael
Neiva, auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Procurada, a
assessoria de imprensa do STF afirmou que “muitos desses temas ainda não
tiveram julgamento com repercussão geral concluído” e, por essa razão, a corte
“não pode se manifestar”.
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Recorde de abertura de empresas
Desde a reforma
trabalhista de 2017, que liberou a terceirização de serviços em qualquer tipo
de atividade, mas estabeleceu regras para que isso pudesse ser feito, os dados
de abertura de CNPJs vêm batendo recorde atrás de recorde.
Só em 2023, quase quatro milhões de novas empresas foram registradas, a maioria de MEIs (Microempreendedores Individuais). Já em
2017, o número de trabalhadores sem carteira assinada ou por conta própria
ultrapassou o de CLTs pela primeira vez desde 2012, início da série histórica
da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).
“As alterações
trabalhistas permitem de fato a possibilidade de prestar serviço em qualquer
atividade da empresa. Isso não é ilegal, não tem nem discussão. Mas não podem
estar presentes os requisitos caracterizadores da relação de emprego, como a
subordinação e a pessoalidade”, explica o auditor fiscal Rafael Neiva.
“Na pejotização,
empresas exigem que os trabalhadores sejam pessoas jurídicas, obrigam a abrir
CNPJ, mas no fundo eles trabalham como funcionários. Ou seja, eles vestem a
roupagem do profissional autônomo, mas na verdade são empregados. Isso é um
contrato fraudulento”, resume Neiva.
É o que acontece com mais da metade dos MEIs no Brasil. Segundo uma pesquisa da
FGV (Fundação Getúlio Vargas), 53% deles são, na realidade, empregados de outras empresas.
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Esvaziamento da Justiça do Trabalho
As empresas
contratantes que buscam o STF contra o reconhecimento de vínculo empregatício
com profissionais pejotizados se baseiam em duas normas estabelecidas pela
corte: a ADPF 324, votada em 2018, e o Tema 725 de Repercussão Geral, de 2020.
Em ambos os
julgamentos, o Supremo tornou constitucional qualquer forma de terceirização de
serviço, desde que não haja vínculo empregatício. Vem daí o precedente
encontrado pelas empresas para apelar ao STF: elas alegam que os magistrados
trabalhistas, ao reconhecer o vínculo empregatício, estariam contrariando as
ordens da suprema corte.
No entanto, as regras
que caracterizam o vínculo (subordinação, habitualidade, pessoalidade e
onerosidade) seguem valendo, assim como a proibição de contratação via PJ
para casos em que se verifica a existência desses quatro requisitos. Segundo o
próprio STF, cabe à empresa contratante “responder subsidiariamente pelo
descumprimento das normas trabalhistas”.
“É lícita uma empresa
contratar outra para prestação de determinado serviço especializado. Mas isso
não acontece quando há pejotização, porque não há uma empresa — é uma pessoa
que, em tese, virou empresa [para ser funcionário]. O próprio precedente da terceirização
estipula que a Justiça do Trabalho analise casos de fraude”, afirma Luciana
Conforti, presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da
Justiça do Trabalho).
O principal temor da
presidente da Anamatra sobre as decisões do STF diz respeito ao esvaziamento da
competência da Justiça do Trabalho. Por definição, a relação entre duas
empresas tem natureza civil e comercial, e não trabalhista. Dessa forma, um
eventual processo movido por um funcionário PJ que reclama de uma contratante
deveria ser julgado pela chamada Justiça comum, não especializada no tema do
trabalho.
Segundo Conforti, há
outro agravante: as empresas têm recorrido ao Supremo antes mesmo de
extinguirem os recursos nas três instâncias da Justiça do Trabalho. “Há um
custo para recorrer em outras instâncias [trabalhistas], e nenhum gasto para
fazer uma reclamação no STF. Além disso, não há como reformar mais a decisão
[depois de julgada pelo STF], é a instância final”, explica.
Ainda de acordo com a
presidente da Anamatra, essa situação não é interessante para o próprio STF. A
corte pode sofrer com uma avalanche de recursos trabalhistas, apesar de não ter
estrutura e nem vocação para analisar esse tipo de processo.
Apesar disso, parte
dos ministros do STF vem declarando guerra contra a Justiça trabalhista.
Em outubro do ano passado, Gilmar Mendes disse que “os caprichos da JT estavam sobrecarregando o STF” e que ignoravam os entendimentos da suprema corte. Mais
recentemente, Mendes afirmou que “é preciso repensar o tamanho da Justiça do Trabalho“.
Em suas decisões,
Alexandre de Moraes tem seguido a mesma linha do colega, subindo o tom contra
os TRTs. Em dezembro, a primeira turma do STF chegou a acionar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para denunciar o descumprimento, por parte dos tribunais
trabalhistas, da jurisprudência firmada pelo STF.
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Dino e Fachin: vozes dissonantes no STF
Dos onze ministros do
STF, Edson Fachin e Flávio Dino têm sido os únicos a remar contra a maré. Em
voto recente, Dino argumentou que uma empresa não pode apelar ao STF antes de
esgotar a tramitação de um processo na Justiça do Trabalho. Além disso, reiterou
que o fato de o STF ter liberado a terceirização não significa que esse tipo de
contratação possa ser utilizado para driblar o vínculo empregatício de forma
fraudulenta.
O raciocínio segue
linha semelhante à de Augusto Aras, titular da Procuradoria-Geral da República
(PGR). No ano passado, antes de se aposentar, Aras enviou um ofício ao Supremo
reiterando a importância de se esgotarem as instâncias recursais da Justiça do
Trabalho, antes do recebimento das reclamações pelo Supremo.
O ofício alerta ainda
sobre os riscos financeiros para o caixa da Previdência Social com a explosão
da pejotização. “Tal artifício aniquilaria o dever que vincula profissionais
liberais qualificados ao pagamento de imposto de renda e desfalcaria o caixa da
Previdência Social, afastando-se da incidência da contribuição social
patronal”, diz o texto.
Em contratos de
carteira assinada, os empregadores depositam de 7,5% a 14% dos salários de cada
empregado para o INSS. Já no caso dos microempreendedores individuais, os
depósitos são fixados em 5% do salário mínimo, pagos apenas pelos
trabalhadores, sem contrapartida dos contratantes. Segundo cálculos de Rogério
Nagamine, autor de um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas
Aplicadas), o regime especial dos MEIs
pode gerar um déficit de ao menos R$ 600 bilhões para os cofres do
INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), até 2060.
“Seria bom se a PGR
mantivesse a mesma linha dada pelo Aras, mas com o Dr. Paulo Gonet [substituto
de Aras] tem sido diferente”, finaliza Luciana Conforti.
¨ Maioria dos trabalhadores rurais do Brasil seguem informais e
sem trabalho fixo, diz líder sindical
Mais de 60% dos
trabalhadores rurais estão na informalidade e realizam funções de curta duração
ligadas ao ciclo agrícola, como o plantio e a colheita. Por conta disso,
segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas
Rurais (Contar), possuem uma remuneração irregular que contribui para a grande
vulnerabilidade econômica da categoria.
São pessoas que, em
sua maioria, recebem salário “no máximo [durante] três meses por ano”, estima o
presidente da entidade, Gabriel Bezerra.
A Contar, fundada em
2015, inicia hoje seu 3º Congresso Nacional, em Brasília. Além da diminuição da
informalidade e da sazonalidade, estão na pauta do evento o combate ao trabalho
escravo no campo, o impacto dos agrotóxicos na saúde dos empregados e a discriminação
racial, de gênero e etária na contratação dos trabalhadores.
Em 2021, o Brasil
possuía mais de 3,6 milhões de assalariados e assalariadas rurais, segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de
Domicílio, do IBGE. A região Sudeste lidera a geração de empregos (44% do
total), seguida pelo Nordeste (26%), Sul (15%), Centro-Oeste (11%) e Norte
(4%).
Os empregos rurais, no
entanto, estão frequentemente distantes do local de origem dos trabalhadores.
Segundo o presidente da Contar, o Nordeste é a principal fonte de mão de obra
para as fazendas do país. “Essa migração é sempre uma preocupação, pois o trabalhador
é levado para outro estado e infelizmente ainda ocorrem muitos casos de
trabalho escravo [nesse processo]”, afirma.
Desde 1995, o Brasil
contabiliza mais de 60 mil trabalhadores identificados
em situação de escravidão durante fiscalizações do governo federal. A grande
maioria deles (90%) trabalhava em áreas rurais. Segundo dados compilados pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT), a pecuária bovina e o cultivo de cana-de-açúcar
lideram entre as atividades com o maior número de resgatados.
Para combater a
precarização das condições trabalhistas no setor, o presidente da Contar
defende uma revisão da reforma trabalhista aprovada em 2017. Entre os
principais impactos, ele destaca o enfraquecimento dos sindicatos e a perda do
pagamento das horas in itinere – que corresponde ao tempo
gasto para chegar até fazendas de difícil acesso, em transporte fornecido pelo
patrão. Bezerra ressalta ainda que não ocorreu o prometido aumento de postos de
trabalho oriundos da reforma. “O número de desempregados cresceu e o número de
trabalhadores resgatados também”, diz.
A reforma
trabalhista flexibilizou as relações de emprego no país. Dados do Departamento Intersindical de
Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que o trabalho intermitente – em que a mão
de obra é convocada apenas quando necessário, de acordo com a demanda sazonal
das atividades – cresceu notavelmente no
setor agropecuário após a reforma.
Para Bezerra, a
histórica demanda por acesso à terra permanece como uma das prioridades para
enfrentar as más condições de trabalho e renda no setor. Ele defende a adoção
de políticas que garantam prioridade a trabalhadores resgatados da escravidão
em projetos de reforma agrária do governo federal.
PARTICIPAÇÃO
FEMININA
Entre os milhões de
assalariados no meio rural, as mulheres seguem tendo participação muito
minoritária. Eram apenas 11% do total, segundo
dados de 2021 do IBGE. O cultivo de café e a criação de bovinos foram os dois
maiores empregadores da mão de obra feminina identificados pelo órgão.
“As mulheres rurais
frequentemente enfrentam disparidades salariais em relação aos homens e têm
acesso limitado a oportunidades de emprego e a cargos de liderança no campo”,
afirma Maria Helena Dourado, secretária de gênero e geração da CONTAR. A
dificuldade para obter benefícios trabalhistas, como licença-maternidade,
seguro-saúde e a aposentadoria, é outro problema que atinge em especial as
mulheres do setor.
Em julho, foi
sancionado o projeto de lei 1.085/2023, que prevê indenizações mais rigorosas
para casos de discriminação salarial entre homens e mulheres – e também motivos
de raça, etnia, origem ou idade. A nova lei prevê ainda publicação de
relatórios de transparência salarial pelas empresas com mais de 100 empregados.
Um dos objetivos é justamente garantir uma comparação efetiva dos critérios
remuneratórios por gênero.
“Cabe a nós do
movimento sindical ficar atento a se isso está sendo cumprido”, diz Bezerra.
Fonte: Repórter Brasil
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