Crise dos
agricultores expõe hipocrisia verde e queda da França como celeiro europeu
Nos
últimos meses, a França vem sendo varrida por protestos de agricultores
contrariados com as políticas para o setor do presidente francês, Emmanuel
Macron.
Entre
outras coisas, os manifestantes exigem o fim da negociação do acordo entre a
União Europeia (UE) e o Mercosul, que abriria margem para a competição com
gigantes produtores, em especial o Brasil, e a revogação da proposta do governo
francês que visa retirar subsídios ao setor agrícola, principalmente voltados
ao combustível, um reflexo da agenda ambiental do governo Macron.
Iniciados
no final do ano passado, os protestos vêm escalando e deixando a situação de
Macron cada vez mais complicada. No final de janeiro, milhares de tratores
bloquearam vias cruciais da capital Paris e outras grandes cidades francesas,
levando o presidente Macron a convocar uma reunião de emergência com a
presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para discutir a crise
dos agricultores.
Embora o
acordo Mercosul-UE seja geralmente apontado como o fator que levou à ira dos
agricultores franceses ao auge, especialistas apontam à Sputnik Brasil que o
problema, na realidade, tem raízes muito mais profundas.
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Qual o papel da agricultura na França?
Estêvão
Martins, professor de história contemporânea e relações internacionais na
Universidade de Brasília (UnB), argumenta que a agricultura sempre foi um setor
crítico para a França, e para entender isso é preciso voltar à década de 1960.
"A
França, como outros países, tem uma tendência, no caso da agricultura e da
pecuária, extremamente ciumenta. Eu diria mesmo que é fato que é extremamente
protecionista. E esse ciúme e essa proteção não começaram no ano passado ou em
2019 ou 2020. É uma história que começou logo no início dos primeiros momentos
da União Europeia, quando, em 1962, foi estabelecida pela primeira vez a
chamada Política Agrícola Comum [PAC]", explica Martins.
Ele afirma
que, na época, ainda não existia a UE, mas sim a Comunidade Europeia de Nações,
que contava então com seis membros — Alemanha, Bélgica, França, Itália,
Luxemburgo e Países Baixos —, na qual a França sempre foi um dos celeiros.
Com a
posterior adesão de outros países e a ascensão da UE, que atualmente conta com
27 membros, garantir a segurança alimentar de todos os Estados do bloco e
manter uma renda decente a todos os produtores se tornaram "dois
verdadeiros calos, que permanecem extremamente dolorosos até hoje". A
França, no entanto, recebe cerca de 9,5 bilhões de euros (cerca de R$ 50
bilhões) na conta da distribuição dos subsídios de financiamento por orçamento
da UE para a PAC.
"Isso
remonta a uma situação política muito complicada que aconteceu em 1965, quando
o então presidente da França, que era o general [Charles] de Gaulle,
descontente com uma série de iniciativas que a comunidade europeia estava
tomando naquele momento, notadamente com respeito ao modo de decidir as coisas,
simplesmente adotou o que se chamou de política da cadeira vazia. Ele disse que
a França não participaria mais das reuniões de decisão, e como as decisões
tinham de ser tomadas por unanimidade [entre os então seis membros da
comunidade], durante vários meses, a França simplesmente deixou de comparecer
às reuniões e com isso nenhuma decisão pôde ser tomada."
Martins
ainda acrescenta que a política da cadeira vazia perdurou de 1º de julho de
1965 até 30 de janeiro de 1966, quando ocorreu uma reunião de conciliação, na
qual a França obteve duas vitórias notáveis.
"[…]
o processo de deliberação permaneceria por unanimidade enquanto os assuntos
fossem considerados de primordial interesse nacional, embora essa expressão
seja razoavelmente vaga, e a França disse que um dos interesses nacionais
primordiais do país é a agropecuária. E, por conseguinte, a Política Agrícola
Comum, nesse momento, ficou carimbada com uma marca francesa que, de lá para
cá, não mudou muito."
Por conta
disso, complementa Martins, países que entraram posteriormente na UE, como
Portugal, Espanha e Grécia, e mesmo a Itália, que já constava como membro desde
o início, "tiveram que se submeter a cláusulas razoavelmente duras para se
ajustar ao princípio que estava determinado por esses acordos".
"E
isso está no fundo, uma espécie de nevoeiro que vem do tempo e que está por
trás das exigências de que muitas dessas coisas complicam o trabalho da
negociação para gerar uma convergência que se agravou com o surgimento [adesão
à UE] de outros países que têm forte presença agropecuária, como a Polônia, a
Hungria, a Romênia e a Bulgária."
Martins
aponta que existe uma disputa interna na UE entre o custo de produção agrícola
e pecuária entre Portugal, Espanha, Itália, Grécia, Bélgica, França e Alemanha,
o que explica por que, durante a última rodada de protestos de agricultoras
franceses, "caminhões de produtos agrícolas espanhóis, que estão dentro da
União Europeia e que têm todo o direito de ir e vir porque o mercado comum não
proíbe, foram atacados".
"Os
caminhões foram esvaziados. Derrubaram, queimaram a carga e muitas vezes
queimaram também os caminhões dos agricultores e dos transportadores de
produtos agrícolas."
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Qual o papel do Mercosul no imbróglio
francês?
Somado às
disputas internas de longa data na UE, estão as negociações para o acordo entre
o bloco e o Mercosul. Embora tenham sido iniciadas há 25 anos, a ascensão de
novas questões, como a agenda verde da Europa, que, entre outras coisas, proíbe
o uso de determinados fertilizantes ou de pesticidas, como efeito colateral,
acabou por minar a capacidade do setor agrícola francês de competir com países
que usam esses produtos para impulsionar suas produções, como o Brasil, por
exemplo.
Nesse
contexto, Martins afirma que o acordo se tornou uma espécie de válvula de
escape que permite aos agricultores extravasar as frustações vivenciadas pela
crise econômica que afeta a economia europeia como um todo, e que tem como base
um conjunto de fatores.
"Às
vezes, há um pouco de jogo político também interno para agricultores e
pecuaristas, no caso desse protesto francês recente, de obterem do governo
local vantagens, brandindo esse fantasma ameaçador que seria o acordo do
Mercosul, no qual eles encontraram uma espécie de bode expiatório para soltar a
raiva, a tensão, a frustração com o problema da crise econômica, que atingiu
todas as áreas de trabalho e de produção agrícola na Europa, não só na França,
mas também na Itália, na Espanha, em Portugal, na Grécia, na Alemanha, cuja
recessão econômica está despontando no horizonte", explica Martins.
"Então,
todos esses elementos embaralham o jogo e fazem com que muitas razões internas
acabem sendo projetadas para o espaço externo e comprometem o andamento das
sucessivas negociações [do acordo Mercosul-UE]", complementa.
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Há hipocrisia na retórica ambiental
francesa?
Questionado
se diante de todos esses fatores é possível afirmar que a raiz dos protestos do
setor agrícola francês é o protecionismo, o que tornaria a retórica ambiental
francesa uma bandeira hipócrita, Martins destaca que isso de fato existe, mas
não apenas com relação à França.
"Há
uma dose de protecionismo na hora que aperta o calo. Cada um cuida do seu
próprio pé e larga o pé dos outros para lá. Isso, internacionalmente, sempre
foi chamado de defesa radical do interesse nacional soberano, que é uma
expressão eufemística que também pode ser qualificada como cinismo ou
hipocrisia."
Segundo
ele, essa "atitude maquiavélica da política internacional não é nova e
permanece vigorando para as gerações atuais que decidem nos processos políticos
dos muitos países e das organizações multilaterais existentes, das quais a
Organização das Nações Unidas [ONU] é uma das mais fracassadas dos últimos 50
anos".
"Uma
organização que foi pensada para desatar nós e resolver problemas foi razoável,
mecânica, constante e persistentemente esvaziada para que os interesses
nacionais soberanos prevalecessem, de um jeito ou de outro, o que se reflete no
funcionamento e nos poderes dos membros permanentes do Conselho de Segurança,
que foram escolhidos e designados numa época em que a lógica tinha sido a do
fim da Segunda Guerra Mundial."
Ele
acrescenta que "essas coisas, de certa maneira, com outras roupagens e
outras peças, não mudaram, ou seja, vale para metas climáticas, para metas de
emissão de carbono, para metas de transição da matriz energética".
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Qual a possibilidade de o acordo
Mercosul-UE ser concretizado?
Para
Rodrigo Barros de Albuquerque, professor de relações internacionais da
Universidade Federal de Sergipe (UFS) e de ciência política da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), no cenário atual, a probabilidade de o acordo ser
efetivado está distante no horizonte.
"É
razoável supor que o acordo não será celebrado. A França é um país notoriamente
conhecido por mudanças políticas decorrentes de grande instabilidade social.
Protestos são comuns, o uso de violência nesses protestos é recorrente e a
sociedade francesa é muito politizada. Tamanha comoção social deverá ser ouvida
pelas autoridades francesas, ainda mais agora que a popularidade do governo
Macron está em decadência e ele planeja eleger um sucessor,
evidentemente", explica Albuquerque.
"Quanto
aos outros países, os protestos de agricultores acontecem em quase uma dezena
de países-membros da União Europeia, e o acordo exige unanimidade de votos
favoráveis. Com um número tão grande de países onde há grande insatisfação
popular, em um ano com tantas eleições acontecendo simultaneamente, a
probabilidade de que o Brasil — e o Mercosul — consiga contornar a situação e
fazer com que todos os países europeus assinem o acordo é baixíssima",
complementa.
No que
tange o chamado protecionismo verde, Albuquerque ressalta que "a agenda
ambiental tem grande peso no cenário internacional atualmente, o que leva à sua
utilização sempre que possível para respaldar decisões de governantes".
"No
entanto, há uma distância considerável entre a questão ambiental ser uma
justificativa real ou simplesmente a melhor disponível para subsidiar uma
decisão."
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Alemanha luta para manter relevância
Questionado
sobre qual o papel da Alemanha, que é considerada uma das principais vozes
europeias em prol do acordo Mercosul-UE, na busca pelo consenso, Albuquerque
lembra a alta quantia empregada nas negociações do acordo, bem como o grande
número de pessoas que ele afeta, tanto do lado europeu quanto sul-americano.
"O
mercado alcançado pelo acordo, se celebrado, afeta mais de 30 países, quase 800
milhões de pessoas, mais de 120 bilhões de euros [R$ 645 bilhões] ao ano. É
muita coisa para ser desprezada com tanta facilidade, seja pela Alemanha, seja
pelos outros países que se beneficiariam com o acordo."
Ele
argumenta, no entanto, que a posição alemã precisa ser contextualizada e
destaca que, "historicamente, França e Alemanha são os motores da
integração europeia, os países que assumem a maior parte dos custos para
fazê-la funcionar". Porém, Berlim perdeu seu protagonismo no continente
nos últimos anos.
"Desde
que Angela Merkel deixou o governo alemão, o país luta para manter a relevância
que tinha durante o seu mandato. Olaf Scholz não tem a mesma habilidade
política que Merkel, não tem a mesma capacidade de estabelecer consensos
internamente e tem visto a Alemanha perder cada vez mais capital político na
União Europeia, enquanto a França assume um papel cada vez mais proeminente.
Então, convencer os demais países de que uma opção pragmática — observando os
potenciais ganhos para a comunidade europeia — seria o melhor caminho,
certamente alavancaria a popularidade de Scholz e seu capital político como um
todo. Mas é algo muito difícil de se conseguir a essa altura dos
acontecimentos, e Scholz tem uma difícil missão pela frente se quiser investir
nisso como prioridade da sua agenda de governo", destaca o especialista.
No ano
passado, após anos de negociações e com a possibilidade de fechamento do acordo
tomando forma, a UE enviou ao Mercosul uma carta adicional estabelecendo
cobranças adicionais como exigências para a assinatura do pacto. Na carta,
constavam medidas que os próprios países europeus descumpriram no Acordo de
Paris, o que foi apontado por alguns analistas como uma hipocrisia.
Fonte:
Sputnik Brasil
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