Transfusões de sangue e políticas de tratamento alternativo
A luta pela concretização dos direitos fundamentais de uma minoria
invariavelmente reforça e, muitas vezes, promove os direitos da maioria. A
premissa nos guia neste artigo para discutir a necessidade de implementação de
protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas alternativos a transfusões de
sangue alogênico. Para além dos direitos fundamentais de uma minoria – as
testemunhas de Jeová – que recusa as transfusões, tais protocolos são
recomendados a todas as pessoas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
A história é cheia de exemplos de casos em que a luta das minorias
fortaleceu direitos em favor de todas as pessoas, e as testemunhas de Jeová
construíram um capítulo especial: a liberdade de expressão, como a conhecemos
hoje, e o entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a primeira
emenda da Constituição daquele país se consolidaram justamente após a luta
dessa minoria religiosa. A possibilidade de pregação pública às portas e a
recusa ao juramento à bandeira ajudaram a definir os contornos da liberdade de
expressão naquele paíss, e esses julgamentos influenciaram diversas
cortes no mundo.
No Brasil, chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) mais uma batalha
jurídica que pode fazer jus a esse histórico. No RE 979.742, fixado como tema
952 de Repercussão Geral, o STF deverá analisar o eventual conflito entre a
liberdade religiosa e o dever do Estado de assegurar prestações de saúde
universais e igualitárias, tendo em vista que o tratamento alternativo à
transfusão consiste em uma política pública recomendada pela Organização
Mundial de Saúde, com diretrizes previstas no Sistema Único de Saúde.
Essa discussão ocorre paralelamente à ADPF 618, em que se discute a
possibilidade de excluir a interpretação de que os médicos estão autorizados a
realizar transfusão de sangue independentemente da vontade prévia ou atual de
pacientes maiores e capazes que, por motivo de convicção pessoal, opõem-se ao
tratamento.
Em outras instâncias do Judiciário, a discussão sobre a adoção de uma
política pública permanente destinada ao tratamento alternativo já foi objeto
de apreciação. O caso, trazido pelo Ministério Público Federal no Rio de
Janeiro, continha as características típicas da recusa à transfusão: um
paciente, testemunha de Jeová, adulto e capaz, recebeu transfusões de sangue
contra o seu consentimento.
Ao longo da apuração, o MPF havia constatado que o Brasil se
comprometeu, desde a 63ª Assembleia Mundial da OMS, em 2010, a implementar o
gerenciamento de sangue do paciente (PBM, de acordo com a sigla em inglês), que
consiste em uma abordagem multidisciplinar de estratégias clínicas e
cirúrgicas, seguras e eficazes para tratar anemia e minimizar sangramento, com
o objetivo de reduzir ou eliminar o uso de sangue alogênico (doado), melhorando
assim os resultados para o paciente.
Em 2021, a OMS publicou diretriz mundial com o seguinte título: “A
necessidade urgente de implementar o gerenciamento de sangue do paciente”.
Nessa diretriz, a OMS aponta que tal programa “tem potencial para melhorar
significativamente saúde da população e os resultados clínicos de centenas de
milhões de pacientes cirúrgicos, médicos e obstétricos e da população em geral,
ao mesmo tempo em que reduz os custos nos cuidados de saúde em bilhões de
dólares americanos” e que “é essencial que os sistemas de saúde de todo o mundo
implementem o PBM como padrão de tratamento” (tradução livre).
A Justiça Federal no Rio de Janeiro acolheu parcialmente os pedidos do
MPF e condenou neste ano a União a coordenar a implementação do programa de
gerenciamento do sangue do paciente (PBM) nos hospitais federais do Rio de
Janeiro e estabeleceu prazo para que os hospitais federais do Rio:
- a)
adequassem seus protocolos para tratar os pacientes à luz do PBM no pré,
intra e pós-operatório;
- b)
viabilizassem a transferência do paciente quando não fosse possível fazer
o tratamento no próprio hospital; e
- c)
permitissem aos pacientes expressarem sua recusa terapêutica nos
formulários e documentos hospitalares.
Na ocasião, a Justiça reconheceu que há uma política pública – a
Política Nacional do Sangue, Componentes e Hemoderivados (PNSCH) -, que tem por
objetivo estabelecer mecanismos que garantam reserva de sangue, componentes e
hemoderivados (art. 16, XIII, da Lei nº 10.205/01). Assim, é necessária sua
implementação no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Nacional
de Sangue, Componentes e Derivados – SINASAN (art. 8º e 9º da Lei nº
10.205/01).
Note-se que a recusa à transfusão, quando não vem acompanhada da
garantia de uma política pública alternativa, gera risco de desrespeito aos
direitos e insegurança jurídica. É nesse ponto que a ADPF 618 e o RE 979.742 se
encontram: conquanto por trás do debate da ADPF esteja a defesa dos direitos de
uma minoria, a implementação de uma política estabelecida pela OMS acarretará a
promoção dos direitos de toda a coletividade.
Afinal o estabelecimento da autonomia do paciente adulto e capaz é um
reforço para os direitos de todos nós que, cedo ou tarde, seremos pacientes e
desejaremos ter o nosso direito ao consentimento informado respeitado pelos
profissionais médicos que nos atenderão. Por outro lado, a incorporação
nacional do PBM é um investimento na saúde pública, uma vez que a OMS afirma
que esse tratamento é melhor para os pacientes, para os profissionais médicos,
para as instituições hospitalares e para os cofres públicos.
Ademais, a implementação da política em questão está em sintonia com o
tema de Segurança do Paciente escolhido pela OMS para o ano de 2023: “Elevar a
voz do paciente”, celebrado mundialmente no dia 17 de setembro. Segundo a OMS,
a escolha do tema desse ano levou em consideração que as evidências mostram que
“quando os pacientes são tratados como parceiros em seus cuidados, ganhos
significativos são obtidos em segurança, satisfação do paciente e resultados de
saúde”.
Mais uma vez, os direitos de uma minoria podem transformar
procedimentos, no interesse de toda a população. As testemunhas de Jeová estão
mais uma vez no centro do debate constitucional. Está nas mãos do Supremo
Tribunal Federal (STF).
Fonte: Por Julio José Araujo Junior e Eliza Gomes Morais Akiyama, na
ANPR
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