Por que privatização da Sabesp coloca Brasil na contramão de outros
países
Na noite desta quarta-feira (06/12), o Estado de São Paulo deu mais um
passo em direção à privatização da Sabesp, projeto do governador Tarcísio de
Freitas que foi aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo
(Alesp).
Agora, o projeto deverá ser sancionado pelo governo estadual, que
pretende depois disso negociar com municípios a renovação de contratos de
concessão até 2060 e definir um modelo para tarifas e investimentos.
A previsão é que todo o processo de desestatização — como vem chamando o
governo de Tarcísio —, incluindo a oferta pública de ações, seja finalizado até
julho de 2024.
Com isso, o Estado segue tendência de outros no país que já passaram a
gestão de serviços de água e saneamento para o controle privado, como Rio de
Janeiro e Rio Grande do Sul.
Enquanto a tendência de privatização de sistemas de saneamento caminha a
passos largos no Brasil, crescem no mundo exemplos que vão na direção oposta,
devolvendo a gestão das águas ao controle público após períodos de concessão
privada.
Entre 2000 e 2023, houve 344 casos de “remunicipalização” de sistemas de
água e esgoto mundo afora, a maioria na Europa, de acordo com levantamento do
banco de dados Public Futures (futuros públicos; publicfutures.org), coordenado
pelo Instituto Transnacional (TNI), na Holanda, e pela Universidade de Glasgow,
na Escócia.
De acordo com Lavinia Steinfort, coordenadora do projeto de Alternativas
Públicas do TNI, essas reversões têm sido motivadas por problemas reincidentes
em experiências de privatização e parcerias público-privadas (PPPs), como
serviços inflacionados, falta de transparência e investimentos insuficientes.
“A experiência mostra repetidamente como a privatização gera aumentos de
tarifas e torna a água menos acessível à maioria da população”, afirma a
pesquisadora e geógrafa política à BBC News Brasil.
De acordo com Steinfort, frequentemente a remunicipalização é motivada
por saltos nos preços após concessões privadas. Ela cita os exemplos de Paris,
onde as tarifas de água aumentaram 174% entre a privatização, em 1985, e 2009;
Berlim, onde subiram 24% entre 2003 e 2006; e Jacarta, capital da Indonésia,
onde triplicaram entre 1997 e 2015, quando um processo judicial movido por
cidadãos obteve uma primeira vitória judicial para anular contratos com o setor
privado.
Além disso, investimentos privados são movidos por metas de lucros, o
que a seu ver termina por comprometer o acesso a um direito humano essencial
que exige investimentos volumosos que não podem depender de gerar retorno
financeiro.
• Gestão pública prevalece
Cidades como Berlim, Paris, La Paz, Maputo e Buenos Aires são exemplos
de lugares que retomaram o controle público sobre seus sistemas de saneamento,
algumas após lutas judiciais ou sociais, revertendo processos de privatização –
ao contrário da tendência que se vê no Brasil.
“A tendência a privatizar se baseia em uma ideologia ultrapassada de que
o setor privado é mais eficiente. Hoje, temos evidências crescentes de que não
é o caso”, afirma Steinfort, ressaltando que a preocupação se torna ainda mais
premente com o agravamento da crise climática, o avanço de governos da
extrema-direita no mundo e ameaças cada vez maiores ao direito humano à água.
De acordo com estudos da TNI, cerca de 90% dos sistemas de água no mundo
são de gestão pública. Dados da Federação Mundial de Operadores Privados da
Água, a AquaFed, indicam que cerca de 10% da população mundial é atendida por
sistemas privados.
A privatização de serviços de água e esgotamento sanitário começou a se
expandir nos anos 1980, em muitos casos impulsionada por cenários de
austeridade, crises fiscais e instituições financeiras internacionais.
Entretanto, a gestão privada ainda representa uma fatia pequena do setor.
“É uma desproporção enorme”, afirma o pesquisador Léo Heller, da Fiocruz
Minas, ex-relator especial da ONU para o direito à água e ao saneamento.
Mundialmente, ele diz que não há uma movimentação em curso para inverter esse
balanço.
“O Brasil hoje é a grande exceção do mundo”, afirma Heller. “A tendência
mais forte tem sido de fortalecer sistemas públicos ou de remunicipalizar
sistemas privados. Há iniciativas de privatização, mas menos que no passado. A
tendência predominante tem sido de se afastar de sistemas privados”, afirma
ele, que é coordenador de relações internacionais do Observatório Nacional para
Direitos a Água e Saneamento (Ondas).
Segundo Heller, não há um padrão linear entre gestão pública ou privada
de sistemas de água baseado no nível de riqueza ou desenvolvimento de um país.
“Tanto países mais pobres quanto os mais ricos implantaram sistemas privados.
Países estatizantes como a França privatizaram massivamente, enquanto os
Estados Unidos, com toda a sua tradição neoliberal, privatizaram muito pouco”,
exemplifica.
Na Europa, países escandinavos, Bélgica e Holanda mantêm sistemas
públicos; França e Espanha são exemplos de países onde sistemas privados se
proliferaram.
“Hoje, o Brasil é o único país que está ingressando de forma determinada
e com velocidade em direção à privatização. O que surpreende, aqui, é que não
são casos individuais, impulsionados por características locais, mas sim um
direcionamento de política pública, estimulado pelo governo através de
incentivos do BNDES”, considera Heller.
• Investimentos para
universalizar acesso
No Brasil, a concessão de serviços de água e esgoto à iniciativa ocorreu
a partir de 1995, com o caso de Limeira, no interior de São Paulo. A cidade foi
a quinta colocada no ranking de melhor saneamento do país feito pelo Instituto
Trata Brasil para 2023.
O movimento ganhou mais impulso a partir de 2016, quando o BNDES lançou
um edital para estimular a concessão de serviços públicos e a criação de PPPs,
conquistando a adesão de 18 estados interessados em aderir ao programa de
concessão de companhias de água e esgoto.
A concessão da Cedae, no Rio de Janeiro, que teve o pontapé inicial em
2017, foi o começo da onda. Em 2020, a lei 14.026, do marco do saneamento
básico, sacramentou a direção, estimulando a entrada da iniciativa privada no
setor de água e esgoto.
Defensores da abertura dos serviços de água e esgoto ao capital privado
destacam o enorme déficit de saneamento no Brasil e a falta de recursos do
Estado brasileiro para suprir o volume de investimentos necessários.
De acordo com o Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (Snis),
hoje, 16% da população não tem acesso à água tratada – quase 35 milhões de
brasileiros – e 44% não tem acesso a redes de esgoto – quase 100 milhões de
pessoas.
O percentuais estão muito longe das metas estabelecidas pelo marco do
saneamento: até 2033, 99% dos domicílios brasileiros devem ter acesso à água
tratada, e 90% devem ser atendidos por redes de esgoto.
“Se o Estado não está conseguindo fazer os investimentos necessários,
não tem por que a população ficar esperando 20 ou 30 anos para a situação
fiscal melhorar se o poder público pode chamar parceiros privados para acelerar
esse investimento”, defende Percy Soares Neto, diretor executivo da Associação
e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água
e Esgoto (Abcon).
Para alcançar as metas do marco do saneamento básico, estudo da Abcon e
da KPMG estima que sejam necessários R$ 50 bilhões de investimentos por ano no
setor, contra os cerca de R$ 20 bilhões que foram feitos, em média, nos últimos
anos.
“Uma coisa é fazer essa discussão entre o público e o privado em lugares
onde a população já tem acesso universal a água e esgoto. Outra coisa é o
contexto brasileiro, onde metade segue sem esgoto tratado. Temos um enorme
problema social e ambiental, que precisa ser resolvido com a maior celeridade
possível”, argumenta.
Levantamento da Abcon estima que, entre os brasileiros que recebem menos
de um salário mínimo por mês, 75% são pessoas que não têm acesso a redes de
esgoto.
“A discussão urgente que precisa ser feita é como levar este serviço
para quem não tem”, defende.
De acordo com a Abcon, o setor tem 178 contratos privados no Brasil,
atendendo a 850 municípios, entre concessões plenas (72%), PPPs (12%) e
concessões parciais (13%).
• Difícil voltar atrás
Centro de pesquisas com sede na Holanda, o Instituto Transnacional
começou a mapear casos de desprivatização de sistemas de água em 2007,
compilando ocorrências a partir do ano 2000.
Hoje, o levantamento é coordenado em parceria com a Universidade de
Glasgow e tem colaboração de outras 17 organizações, que agregam casos
ocorridos no mundo todo à base de dados para pesquisa colaborativa “Public
Futures”.
O levantamento passou a abranger outros serviços que saíram das mãos
privadas e voltaram ao poder público, abrangendo setores como fornecimento de
energia elétrica, saúde e educação. Nesse leque mais amplo, foram 1.701 casos
de desprivatização ou estabelecimento de novos serviços públicos de 2000 para
cá, em 79 países diferentes.
Uma “remunicipalização” ou reestatização pode ocorrer de maneiras
variadas.
Os casos envolvem desde privatizações desfeitas, com o poder público
comprando o controle que detinha “de volta”; a rupturas de contratos de
concessão, o que pode acarretar multas pesadas ao poder público.
Há a possibilidade também de resgate da gestão pública após o fim de um
período de concessão, o que exige muito planejamento para retomar o serviço.
A pesquisadora da TNI Lavinia Steinfort frisa que, seja qual a forma, a
reversão não é fácil. Há casos que envolvem lutas árduas e longos períodos de
engajamento de cidadãos, batalhas judiciais e grandes ônus aos cofres públicos,
seja por multas impostas por quebras de contrato ou por litígios dispendiosos.
• 'Contagioso
remunicipalizar'
Um exemplo é o caso de Berlim, onde o governo privatizara 49,99% do
sistema hídrico em 1999. A medida fora extremamente impopular e, após anos de
mobilização de moradores – e um referendo em 2011 –, foi revertida por completo
em 2013. Foi uma vitória popular, mas por outro lado o Estado precisou pagar
1,3 bilhão de euros para reaver o que já lhe pertencia. A dívida está sendo
paga pela população ao longo de 30 anos.
Por outro lado, Steinfort aponta que a mobilização na capital alemã
acabou desembocando em movimentos em prol da habitação e do fornecimento de
eletricidade, “mostrando como é contagioso remunicipalizar, democratizar e
retomar o controle público de serviços essenciais”, afirma.
Para Léo Heller, Estados e municípios brasileiros estão ingressando em
modelos de concessão muito duradouros e difíceis de reverter. Ele cita o
exemplo da Cedae, que teve concessão de 35 anos.
“É uma decisão que vai repercutir por quase nove mandatos políticos”,
destaca.
“Há grande preocupação quanto à performance dessas empresas, em que
medida vão investir, com a elevação de tarifas, com a redução do alcance de
tarifas sociais e com o acesso das populações mais pobres à água, em um país
com um número enorme de pessoas vivendo na pobreza”, diz Heller.
Entretanto, o diretor executivo da Abcon, Percy Soares Neto, afirma que
o Estado não abre mão do domínio sobre o setor ao firmar contratos privados.
“O poder concedente sempre será público. O Estado segue sendo o dono do
serviço. O poder regulador também é uma entidade pública. Ter estruturas
reguladoras fortes é a melhor forma de ter um bom desempenho no contrato com o
privado”, afirma.
“O parceiro privado é convocado para acelerar o investimento que o poder
público está com dificuldade para fazer. Melhorar a eficiência, a governança.
Depois disso feito, transcorrido o contrato, o governo pode optar por retomar o
controle do serviço. Faz parte do jogo.”
• Mobilização em torno da
água
Para Lavinia Steinfort, movimentos sociais defendendo o acesso à água
são dos mais vibrantes e efetivos que vê globalmente.
“O acesso à água é tão fundamental que engaja as pessoas em torno deste
bem comum absolutamente necessário à sobrevivência”, afirma.
Ela cita como exemplo o movimento que conseguiu frear em 2018 a
privatização em Lagos, capital da Nigéria, unindo grupos de mulheres,
religiosos, sindicatos, comunidades.
Outro exemplo recente foi Terrassa, a 30 quilômetros de Barcelona, na
Espanha. Em 2018, após cinco anos de luta, a cidade conseguiu obter a
remunicipalização dos sistemas de água e esgoto após amplo engajamento social.
O processo envolveu a aprovação de um pacto social que delineia valores
e pilares para o sistema público de água, e levou à criação do Observatório de
Águas de Terrassa, reunindo grupos da sociedade civil, políticos, funcionários
e técnicos da área de saneamento, entre outros.
“O que é interessante neste caso é que a remunicipalização foi um ponto
de partida para criar uma nova cultura em torno da água, não apenas em termos
de conscientização, mas também na criação de mecanismos de participação de
integrantes do observatório nos processos estratégicos de tomada de decisão,
como por exemplo em relação a tarifas e investimentos”, destaca Steinfort.
“Isso está inspirando outros locais que estão lutando pela
remunicipalização e por modelos mais democráticos de gestão da água.
Fonte: BBC News Brasil
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