Máfia siciliana: como foi fotografar o
ápice da guerra de facções rivais
Para ser fotógrafo de jornal em Palermo, no auge do
poder da máfia siciliana, era necessário se acostumar a ser acordado por
telefonemas no meio da noite.
Houve um assassinato, diria o editor, antes de dar
o endereço de onde o fotógrafo deveria chegar o mais rápido possível.
Correr para cobrir um assassinato ou uma prisão
policial já era bastante perigoso, mas pior era ser enviado para fotografar um
funeral da máfia.
Diferente de um repórter, que podia se misturar à
multidão, ser fotógrafo significava estar na linha de frente e expor-se, com
sua câmera, a familiares furiosos.
Quando o trabalho terminava, era importante, ainda,
certificar-se de não ter sido seguido até em casa.
O fotógrafo Franco Zecchin lembra bem dessa vida.
A partir do final da década de 1970, ele trabalhou
em estreita colaboração com a lendária fotógrafa Letizia Battaglia documentando
a guerra mortífera entre gangues rivais da máfia siciliana (também conhecida
como "Cosa Nostra") e o derramamento de sangue nas ruas da cidade.
O período brutal ficou conhecido como la
mattanza (a matança).
Juntos, organizaram um grupo de fotógrafos
independentes (na sua maioria jovens de Palermo ansiosos por aprender o ofício)
que trabalhavam para o jornal de esquerda L'Ora, famoso por suas investigações
sobre a máfia.
Ali fazia-se um fotojornalismo acelerado, por isso
o estilo fotográfico do cotidiano da cidade – e até a impressão e processamento
das imagens – tinha que ser rápido, para poder passar à próxima edição.
A Sicília estava, na época, no centro das atenções
da imprensa internacional, e os fotógrafos tinham de estar disponíveis 24 horas
por dia.
Ir ao cinema significava deixar um bilhete para o
gerente de bilheteria para que avisasse caso recebesse uma ligação do jornal.
·
Ameaças
Zecchin e Battaglia enfrentaram ameaças físicas
reais.
Eles foram maltratados e chegaram a ter suas
câmeras quebradas.
Houve épocas em que chegaram a cobrir cinco
assassinatos por dia.
Para Zecchin, o momento mais assustador ocorreu
quando Battaglia recebeu uma carta anônima ameaçadora alertando-a para deixar a
cidade imediatamente e não retornar.
Mas Battaglia, que recebia elogios internacionais
pelo seu trabalho, não se deixou intimidar.
"É uma questão de caráter", disse Zecchin
à BBC Culture.
"Quando estava convencida de algo, ia em
direção sem esperar nem pensar muito nas consequências."
Apesar do perigo, ou talvez por causa dele, a vida
juntos em Palermo foi "uma aventura”", diz Zecchin.
O trabalho de Battaglia e Zecchin esteve em
exposição na Fondazione Merz em Turim, ao lado de fotografias de Enzo Sellerio,
Fabio Sgroi e Lia Pasqualino.
A exposição "Palermo Mon Amour" retratou
a vida pública de Palermo dos anos 1950 a 1992, tanto a violência quanto os
momentos tranquilos e cotidianos.
A curadora Valentina Greco, natural de Palermo,
disse à BBC Culture que nascer na cidade naquela época "era nascer num
período muito violento".
E a vida sob a máfia continua a fascinar: em 2023
será lançado um novo museu da máfia em Palermo e o drama policial
anglo-italiano The Good Mothers.
A série, que poderá ser vista na plataforma
Disney+, é baseada na história real de três mulheres que lutam para derrubar um
clã mafioso por dentro.
·
Código de silêncio
Leoluca Orlando foi prefeita de Palermo por mais de
20 anos.
E recorda que desde criança a cidade era a capital
da máfia.
Era "uma cidade cinzenta", diz ele à BBC
Culture, onde todos sabiam do forte controle da máfia, mas ninguém falava sobre
isso, graças a um código de silêncio estritamente aplicado, conhecido como
"omertà".
Segundo um relatório, a máfia siciliana matou mais
de 1.000 pessoas entre 1978 e 1983.
E por causa de seu cargo, Orlando às vezes era
considerado o "morto-vivo" da cidade, ou seja, seu nome estava na
lista de alvos da máfia.
Em muitas ocasiões, ele teve que alterar seus
horários no último minuto para evitar que sua localização fosse descoberta. Ele
também morou em um quartel militar por um tempo e, certa vez, tamanho foi o
perigo que teve que fugir com a família para a Geórgia.
Em última análise, foram os infames assassinatos
dos juízes antimáfia Paolo Borsellino e Giovanni Falcone, em 1992, que
provocaram mudanças na Sicília, diz Orlando.
"As pessoas reagiram e disseram: 'Basta!
Basta!'", lembra Orlando. "Foi realmente um momento importante."
·
O início
Zecchin lembra o dia que conheceu Battaglia, num
workshop de teatro organizado pelo famoso realizador polonês Jerzy Grotowski,
antes de darem início ao trabalho de expor a máfia siciliana.
Battaglia havia levado sua câmera e estava tirando
fotos, embora tenham dito a ela que não era permitido.
"Para alguém como Battaglia, isso não era algo
que devia ser respeitado", lembra Zecchin com um sorriso. Battaglia
simplesmente perguntou: "Por quê?"
Mas alguém a denunciou. E quando pediram que
entregasse o filme, ela se recusou.
Embora tivessem acabado de se conhecer, Zecchin
elaborou um plano para ajudá-la: em uma loja próxima, ele comprou um novo rolo
de filme não utilizado e deu-o a Battaglia, dizendo que fingisse ser seu.
"Isso criou, é claro, algo entre nós”, diz
Zecchin, "e depois se transformou em uma história de amor".
Poucos meses depois, Zecchin deixou Milão, sua
cidade natal, e se juntou a Battaglia em sua Palermo natal.
Battaglia, uma das primeiras fotojornalistas da
Itália, certa vez chamou seu trabalho de cobertura da guerra da máfia de
"arquivo de sangue".
·
Ícone da fotografia
Autodidata e armada com uma câmera e um scanner de
rádio policial, ela ganhou muitos prêmios, incluindo o prestigiado W Eugene
Smith, em 1985.
Em 2019, foi lançado um documentário sobre sua
vida, Shooting the Mafia.
Segundo Greco, Battaglia é "sem dúvida, um dos
ícones da fotografia italiana".
Mas nem sempre foi fácil ser um casal de
fotógrafos, diz Zecchin, explicando que eles tinham estilos muito diferentes.
Enquanto Battaglia sempre buscava provocar uma
reação em seus modelos – "Estou aqui, estou na sua frente, tenho uma
câmera" – o estilo de Zecchin é mais discreto, de "tentar ficar o
mais silencioso possível".
Na década de 1980, Battaglia, que lutava contra
problemas psiquiátricos, segundo Zecchin, e frequentemente fotografava
pacientes em instituições psiquiátricas, seguiu carreira na política, atuando
na Câmara Municipal de Palermo e na Assembleia Regional da Sicília.
Esperava que a sua contribuição política pudesse
ser tão eficaz (ou mais) quanto a de sua fotografia.
·
'O Poderoso Chefão é perigoso'
Durante décadas, a Sicília e a máfia siciliana
capturaram a imaginação de artistas, escritores e cineastas.
O mais notável é o clássico policial de 1972 de
Francis Ford Coppola, O Poderoso Chefão, filmado parcialmente na
Sicília, que ficou em segundo lugar na lista da BBC Culture dos melhores filmes
americanos já feitos.
Mas embora o prefeito Orlando chame O
Poderoso Chefão e seu astro Marlon Brando de "fantásticos",
ele afirma que o legado do filme de Coppola é "uma tragédia para os
sicilianos".
Ao passar a mensagem de que um chefe da máfia como
Don Vito Corleone é um bom homem, argumenta Orlando, existe o risco de as
pessoas "esquecerem que os mafiosos são criminosos terríveis e
cruéis".
Zecchin concorda, acrescentando que O
Poderoso Chefão e outros filmes e programas de TV semelhantes são
"perigosos" porque não mostram de forma adequada o verdadeiro e
devastador impacto sobre as vítimas da máfia.
Para Greco, porém, existe um mundo rico de cultura
de Palermo que capta a essência da vida na cidade, dos escritos da jornalista
Giuliana Saladino até os filmes de Ciprì e Maresco.
·
A mudança é possível
Segundo Orlando, a Palermo de hoje tornou-se um
símbolo de que a mudança é possível.
Embora a máfia ainda exista na Sicília, diz ele,
viver hoje em Palermo "pode ser emocionante e seguro".
Como explica Orlando, o aeroporto Falcone
Borsellino de Palermo, outrora um ponto para que os mafiosos transportassem
dinheiro e drogas, e para jornalistas que chegavam para cobrir a violência,
atualmente está repleto de turistas.
"Palermo é hoje uma cidade turística",
diz Orlando.
"Não era possível imaginar isso quando a máfia
governava".
Segundo um especialista em imagens, o
"efeito The White Lotus", em referência à comédia
dramática da HBO ambientada na ilha italiana, significa que atualmente pode ser
difícil reservar um quarto de hotel na Sicília.
Palermo é uma cidade que foi reconstruída de forma
contínua, diz Greco, "e isso definitivamente aumenta o fascínio".
"É uma cidade pela qual se tem um grande
sentimento de amor", acrescenta. "Já foi um centro de grande
violência, mas agora é mais amor."
Fonte: BBC Culture
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