Como jovem descobriu que foi roubada quando era bebê pelos próprios
'pais'
Até 7 de fevereiro de 2000, Claudia Poblete Hlaczik se chamava Mercedes
Landa Moreira e comemorava seu aniversário todo dia 13 de junho. Mas naquele
dia ela soube que não, que seu nome não era esse e que, na verdade, ela havia
nascido em 25 de março de 1978.
Claudia também descobriu que seus pais não eram Ceferino e Mercedes, as
pessoas que a criaram, mas sim José e Gertrudis.
Ela descobriu que era uma garota roubada, sequestrada pelos próprios
pais, que ela mesma havia sido retirada de sua mãe quando tinha apenas 8 meses
de idade. E apenas ela sobreviveu.
Ao mesmo tempo, descobriu que seu documento de identidade era falso, e
que os seus boletins escolares seriam usados como prova para que seus pais
fossem presos.
Em Seu Nome não é seu Nome (sem edição no Brasil), o jornalista e
escritor argentino Federico Bianchini conta a história de Claudia e o complexo
processo que ela viveu desde o momento em que descobriu sua origem, como
enfrentou a nova verdade sobre sua vida, e como assimilou o que lhe aconteceu e
finalmente conheceu a família que a procurava há décadas.
Mas Bianchini faz outra coisa: através da história de Claudia, o
jornalista lançou luz sobre as milhares de vítimas sequestradas pela ditadura
da Argentina, que governou o país entre 1976 e 1983. E as feridas e cicatrizes
que permanecem.
O livro está em sua segunda edição e tem sido elogiado não só pelo tema,
mas também pela qualidade da narrativa. A BBC News Mundo, serviço em espanhol
da BBC, conversou com o autor.
• Queria começar a falar da
epígrafe que você colocou no livro, uma frase Svetlana Aleksievich, vencedora
do Nobel de Literatura: ‘A história parece se preocupar apenas com os fatos, as
emoções são sempre marginalizadas’. Por que você escolheu essa frase?
Federico Bianchini - Abordei essa história pela primeira vez pelo que
ela representava no plano jurisprudencial, como um fato histórico na Argentina,
porque é o caso usado pela Justiça para revogar as chamadas leis da impunidade:
a Lei do Ponto Final e da Devida Obediência.
Mas à medida que fui me aprofundando e entrevistando a Claudia, comecei
a perceber que havia pontos que não se podia chegar, que não podiam ser
contados e que tinham muito valor histórico, pontos que muitas vezes estavam
relacionados com emoções.
É por isso que quando encontrei a frase de Svetlana ela me pareceu tão
precisa. É que quando se lê os casos históricos, a jurisprudência, o que
aconteceu e até os depoimentos nos julgamentos, o que se sabe são os dados, mas
muita emoção fica de fora.
E eu queria me aprofundar justamente nisso. Tentando, por um lado,
mapear as sensações e emoções de uma pessoa que, aos 21 anos, foi informada de
que tudo em que acreditava era mentira.
Por outro lado, utilizei recursos narrativos para tentar transmitir ao
leitor toda aquela emoção que pensei que havia na história.
• É uma gama de emoções
muito complexa, não é?
Bianchini - Quando você pensa em uma história como essa, a primeira
coisa que você se pergunta é: quando uma pessoa é informada, o que ela faz a
seguir com essa verdade, como ela lida com isso? Você pode seguir em frente com
sua vida como ela era antes?
Claudia me disse que tem consciência de que se tivesse continuado sua
vida normal, apesar de saber de tudo, talvez tivesse uma vida mais tranquila e
que, no entanto, não se arrepende de ter descoberto tudo.
De certa forma, a verdade tem um efeito calmante, é como retirar um
espinho preso em algum espaço da sua memória.
Mas não é só Claudia. Todas as pessoas com quem conversei me disseram
que essa história gerou muitas emoções.
Para o tio Fernando, por exemplo, ter encontrado a sobrinha foi uma
vitória em uma vida com tantas derrotas.
Ou perguntaria à sua prima Florencia: ‘por que vocês ficaram tão mal
quando Claudia conversou com seus pais sequestradores? Ela me respondeu:
‘porque para mim eles são os assassinos dos meus tios.’
• Há cenas muito
reveladoras, como quando Claudia e o primo de Claudia se conheceram. É um
momento de emoções e quando se aproxima para abraçá-la, ela dá um passo para
trás. Ou quando você conta o caso para um amigo psicólogo e ele responde “que
bom para a sociedade, para a família, e que complicado para eles”.
Bianchini - Sim, em cada uma das coisas que cercam o caso existe uma
grande carga sentimental. E no centro está uma pessoa que sente, decide e deve
administrar tudo isso, que é a Cláudia.
Não foi fácil, ela precisou de anos e muita terapia para entender tudo
isso sem ser atropelada pelo poder da história.
A princípio ela disse que tentou negar, esquecer seus sequestradores, e
que a qualquer momento, organizando as panelas em sua casa, por exemplo,
percebeu que estava fazendo isso igual ao seu sequestrador. E ela entrou em uma
grande briga.
Até aceitar que viveu 21 anos de uma forma que não pôde evitar. Foi uma
mentira planejada de maneira metódica, feita por pessoas com poder absoluto,
como os pais, neste caso a figura do pai e da mãe.
Porque quando você é criança, se seu pai e sua mãe te contam alguma
coisa, você não começa a revisar, a verificar. Mas e se o que eles te contam
não é realmente o seu mundo?
• Além disso, são pessoas
que ela amava, os pais com quem ela cresceu. Aliás, uma das coisas que
surpreende no livro é que em algum momento ela até volta a morar com os pais
que a sequestraram.
Bianchini - Isso é algo que torna a história muito complexa. Ela diz que
se você perguntar se ela teve uma infância feliz, ela tem que dizer que sim,
porque ela amava aqueles pais. E eles a amavam à sua maneira. Ela viajou pelo
mundo, saiu de férias, tinha amigos.
Uma coisa muito diferente é se alguém tiver que se opor a algo que
odeia. Se tivessem batido nela, se a tivessem tratado mal.
Mas não, então no final das contas é romper com a família, porque para
ela naquele momento aquela era a família dela, a casa dela, os pais dela.
• Essa é uma história cheia
de particularidades mas no livro encontramos frases ou situações arquetípicas,
provavelmente ligadas à identidade e à perda de Claudia... Até o título apela a
algo que todos temos: um nome.
Bianchini - Sim, o título pretende colocar o leitor no momento em que
Claudia recebe a notícia. Por isso uso a segunda pessoa do singular. O que você
faria nesse caso, como você resolveria isso?
Então, isso acontece com Claudia, mas também com outras pessoas.
Há algumas semanas, Estela de Carlotto (presidente das Avós da Plaza de
Mayo) disse que vai solicitar uma reunião com (o presidente eleito) Javier
Milei quando ele assumir o cargo e que vão continuar procurando os netos,
independentemente de quem é o presidente, porque eles são ‘desaparecidos com
vida.’
Na Argentina ainda há 300 ‘desaparecidos vivos’, pessoas que naquela
época eram crianças, e agora têm cerca de 40, 45 anos, e não sabem sua
verdadeira identidade.
E aqui me parece que voltamos à questão da complexidade, certo?
Quanto mais aprendia sobre o caso de Claudia, e crescia em mim a ideia
de escrever um livro, mais percebia a universalidade da história, que
independentemente do que acontecesse na Argentina com aquele contexto político.
Há algo que tem a ver com decisões morais, com identidade, com a forma
como pensamos e como nos baseamos naquilo que os outros também estão
construindo.
• Falando em saber a
verdade, Claudia relata a impossibilidade institucional de pronunciá-la, quando
explica que em qualquer documento oficial seus pais aparecem como falecidos, e
não como desaparecidos...
Bianchini - Por isso digo que narrar um desaparecimento é como descrever
um silêncio.
Eu conversei com Daniel Rafecas, o juiz federal responsável pelo caso
ESMA (investigação de uma série de processos judiciais por crimes contra a
humanidade), e perguntei se ele queria saber o que aconteceu com os pais de
Claudia, qual seria a pista, o que poderia ser investigado para tentar
descobrir seus paradeiros, se eles foram jogados ao mar, como se supõe, ou
enterrados em algum lugar.
E ele me disse que não há pistas, não há como saber. Os soldados não
testemunharam, não disseram uma palavra. Ele me contou sobre uma rígida cortina
probatória: as pessoas que deveriam poder testemunhar estão desaparecidas e os
responsáveis por esse desaparecimento não falam.
Há testemunhas que dizem tê-los visto em algum lugar, mas são
fragmentos, são recortes, e com esses recortes não se consegue montar o
quebra-cabeça.
Isso é algo que tortura os familiares dos desaparecidos. O horror de não
saber de nada foi um tema recorrente nas entrevistas que fiz.
Há uma espécie de ação reflexa, uma necessidade de verificar, de
silenciar aquela angústia que permanece.
• Outro sentimento que
permeia o livro é o medo. Isso se reflete muito bem quando você diz que os
vizinhos do centro de detenção El Olimpo (onde estavam detidos os pais de
Claudia) sabiam que ali aconteciam torturas, mas preferiram permanecer calados.
40 anos após o retorno da democracia, que efeitos você acha que esse silêncio
teve na sociedade argentina?
Bianchini - É interessante. Claudia me disse que para sustentar uma
história como a dela, pelo menos, em cálculo aproximado, seria necessário o
silêncio de cerca de 100 pessoas, incluindo parentes dos sequestradores, e
outros que de repente vêem que alguém que não teve um filho de repente aparece
com um bebê.
Ela me contou que até mesmo vários de seus primos da família militar a
contataram e pediram desculpas, dizendo que eles realmente desconfiavam, ou
talvez até soubessem, mas seus pais pediram que não dissessem nada para ela.
Quase 40 anos após o regresso da democracia na Argentina, esses
silêncios ainda existem. É muita em silêncio sobre uma verdade. Não sei se é
por medo, se é por cumplicidade… A verdade é que existem 300 pessoas que não
sabem quem são nem que podem ser uma dessas vítimas.
A própria Claudia não tinha nenhuma indicação sobre sua identidade, além
do fato de seus pais serem mais velhos, de que ela pudesse ter sido uma criança
roubada.
*Claudia Poblete Hlaczik tem 45 anos, é casada e tem dois filhos.
Dedica-se à informática e apoia ativamente o trabalho das Avós da Plaza de
Mayo, organização da qual sua avó, Buscarita Roa, é vice-presidente.
O ex-tenente-coronel Ceferino Landa foi o primeiro soldado condenado por
roubo de bebês na Argentina. Em 29 de junho de 2001, foi condenado a 9 anos e
seis meses de prisão. Um mês e meio depois completou 70 anos e pediu prisão
domiciliar.
Mercedes Moreira foi condenada à pena de 5 anos e 6 meses, mas não
precisou ir para a prisão: por ter mais de 70 anos, pediu prisão domiciliar.
Fonte: BBC News Mundo
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