quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Vijay Prashad: Israel quer apartheid ou limpeza étnica, ambos crimes à luz do direito internacional

Em 30 de outubro de 2023, as autoridades israelenses afirmaram ter matado “dezenas” de combatentes do Hamas nos primeiros dias de sua invasão terrestre. Enquanto isso, o Ministério da Saúde de Gaza tem se esforçado para manter seu site no ar, devido à falta de eletricidade, internet e pelos bombardeios israelenses. Ao meio-dia de 29 de outubro, o Ministério da Saúde informou que o número de mortos em Gaza é agora de 8.005 (dos quais 67% são mulheres e crianças). Para aqueles que duvidam dos números, o Ministério da Saúde tem divulgado listas dos mortos com os seus números de identificação israelenses (é um sinal da ocupação dos palestinos de Gaza que, quando nascem, têm de ser registrados não pela Autoridade Palestina, mas por Israel). A organização Save the Children afirma que mais crianças (3.195) foram mortas pelos bombardeios israelenses nestas três semanas do que o total de mortes em todas as zonas de conflito desde 2019.

A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA) declarou que, até domingo, dia 29, 1,4 milhão de palestinos de um total de 2,3 milhões foram deslocados internamente, com 671 mil abrigados em 150 instalações da UNRWA. A maior parte dos mortos pelos bombardeios e tiros dos tanques israelenses são civis. A proporção de mortos entre combatentes (poucos) e civis (muitos) é surpreendente, muito além do que acontece numa guerra (em contraste, dos 1.400 israelenses mortos em 7 de outubro pelo Hamas e outras facções, 48,4% eram soldados). Ao afirmar que mataram "dezenas" de militantes do Hamas – o suposto alvo – e tendo, ao mesmo tempo, matado milhares de palestinos, as autoridades israelenses admitiram ao mundo que a sua guerra provocou muito mais mortes de civis do que de combatentes.

Enquanto isso, os militares israelenses enviaram as suas retroescavadeiras para destruir casas e empresas no norte de Gaza, bem como na cidade de Jenin, na Cisjordânia. Nada nesta manobra se assemelha a uma operação militar, uma vez que estas casas e empresas não são instituições militares. Tendo em vista o histórico de demolição de habitações na Cisjordânia para criar colonatos e o "muro do apartheid", esta demolição em Gaza e Jenin parece uma campanha civilizatória maciça de limpeza étnica para criar aquilo a que a classe política israelense chama de Grande Israel (Eretz Yisrael Hashlema). A classe política israelense é famosa por dizer que quer mudar os "fatos no terreno" para que quaisquer negociações com os palestinos sob ocupação sejam baseadas nesses "fatos" e não em "reivindicações". É isto que o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu tem feito há décadas através dos assentamentos ilegais na Cisjordânia: ignorar as reivindicações palestinas sobre as suas terras e estabelecer o direito dos israelenses a toda a massa terrestre, desde o rio Jordão até ao Mar Mediterrâneo. Efetivamente, a classe política israelense parece estar utilizando o conflito que começou em 7 de outubro como pretexto para fazer o que planejou fazer durante décadas, ou seja, apagar os palestinos da Palestina histórica e apagar a nação palestina como uma entidade.

·         Dois Estados, um Estado, três Estados

Quando as forças políticas palestinas concordaram com um processo de paz que resultou no Acordo Provisório de Cairo (1994) e nos Acordos de Oslo (1994), adotaram o que ficou conhecido como a "solução de dois Estados" para a ocupação israelense da Palestina. A ideia central dos Acordos de Oslo era que uma Autoridade Palestina (AP) governaria o território confiscado por Israel em 1967 (Jerusalém Oriental, Gaza e Cisjordânia). Segundo o professor Haider Eid, de Gaza, os Acordos de Oslo criaram um "bantustão" (como as "pátrias africanas" criadas pela África do Sul do apartheid). A criação da AP implicava a neutralização das verdadeiras reivindicações palestinas à terra (incluindo o direito de regresso dos refugiados palestinos, estabelecido pela resolução 194 da ONU em 1948) e, ao mesmo tempo, permitia ao Estado israelense alterar os "fatos no terreno" através da criação de cada vez mais assentamentos ilegais. Além disso, após a Segunda Intifada (2000-2005), Israel cortou o requisito de "passagem segura" de Oslo, que permitia aos palestinos de Jerusalém Oriental, Gaza e Cisjordânia viajar através destas zonas. Em 2005, Israel anulou os Acordos de Oslo, embora a classe política palestina continuasse ligada a eles como a única esperança de criação do Estado da Palestina (mesmo que fosse um pequeno fragmento da Palestina histórica).

A realidade da "solução dos dois Estados" foi desaparecendo à medida que os assentamentos aumentavam na Cisjordânia, que o controle palestino sobre Jerusalém Oriental era cada vez mais absorvido por Israel, que o direito de regresso era posto de lado e que Gaza era bombardeada quase todos os anos. Neste contexto, vários intelectuais importantes palestinos começaram a levantar a questão da "solução de um Estado", com um Estado israelense-palestino baseado numa ideia de cidadania não-étnica, secular e democrática. Em 2021, a maioria dos estudiosos da região afirmava que os fatos mostram que Israel é "uma realidade de um Estado único semelhante ao apartheid". A ideia de que Israel é um Estado de apartheid está agora bem estabelecida nos documentos das Nações Unidas e nos relatórios de direitos humanos. Esta avaliação demonstra duas coisas: primeiro, que Israel e o Território Palestino Ocupado já são "um Estado" e, segundo, que é um Estado de apartheid, com os palestinos numa categoria de segunda classe. Os defensores da "solução de um só Estado" argumentam que a realidade de um Estado único exige atualmente uma cidadania igual para todos os que vivem em Israel/Palestina. A atual classe política israelense recusa-se a aceitar a ideia de um Estado único democrático e secular, porque está agarrada a um projeto etno-nacionalista de um "Estado judeu" que elimina a possibilidade de cidadania plena para os cristãos e muçulmanos palestinos.

Se a "solução de dois Estados" já não é prática e se a "solução de um Estado" é bloqueada pela classe política israelense, então tudo o que resta a Netanyahu e aos outros é a "solução de três Estados". Esta é a solução que procura retirar grande parte da população palestina de Jerusalém Oriental, de Gaza, da Cisjordânia, e talvez mesmo do interior das linhas de Israel de 1948, e enviá-la para os três Estados do Egito, Jordânia e Líbano. As retroescavadeiras que vêm atrás dos tanques em Gaza estão tentando empurrar os refugiados palestinos (70% deles são descendentes dos que foram enviados para Gaza na Nakba [“Catástrofe”] de 1948) através do cruzamento de Rafah para a Península do Sinai, no Egito. Esta "solução de três Estados" é precisamente uma limpeza étnica, um crime à luz do direito internacional. Durante décadas, a classe política israelense tem estado disposta a conduzir políticas genocidas – incluindo o atual bombardeio de Gaza – para facilitar o seu projeto de Estado de apartheid étnico-nacional, que exige a o apagamento dos palestinos e da Palestina.

Em 2014, após a Operação Margem Protetora de Israel, o Gabinete do Procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI) abriu uma investigação sobre a situação na Palestina. Esta investigação não deu em nada. Durante o atual ataque a Gaza, o procurador Karim A. A. Khan foi até o cruzamento de Rafah e afirmou que o bloqueio de Israel à ajuda humanitária em Gaza pode constituir um crime nos termos da jurisdição do TPI. Na verdade, o fato de existir apartheid já é um crime nos termos do Estatuto de Roma de 2002, que originou o TPI. Tanto a "realidade de um Estado único semelhante ao apartheid" como a "solução de três Estados" de limpeza étnica são crimes graves que exigem investigação. Será que Khan pedirá aos juízes do TPI que emitam mandados de captura contra o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e os seus colegas?

 

Ø  Ataque do Hamas vai inspirar maior ameaça terrorista dos EUA desde o Estado Islâmico, diz diretor do FBI

 

O ataque do Hamas contra Israel vai inspirar a ameaça terrorista mais significativa para os Estados Unidos desde o surgimento do Estado Islâmico há quase uma década, disse o diretor do FBI, Christopher Wray, em uma audiência no Congresso nesta terça-feira (31).

Wray disse que, desde o início do conflito israelense-palestino em Gaza, no começo deste mês, várias organizações terroristas estrangeiras têm pedido ataques contra os norte-americanos e o Ocidente, aumentando significativamente a ameaça representada por extremistas violentos locais dos EUA.

 “As ações do Hamas e de seus aliados servirão de inspiração como nunca vimos desde que o Estado Islâmico lançou seu chamado califado há vários anos”, disse Wray.

Os comentários foram feitos durante uma audiência perante o Comitê de Segurança Interna e Assuntos Governamentais do Senado, com foco nas ameaças aos Estados Unidos.

O governo norte-americano tem observado um aumento nas ameaças contra judeus, muçulmanos e árabes americanos desde o início dos combates em Gaza, segundo as autoridades.

O número de ataques a bases militares dos EUA no exterior por grupos de milícias apoiados pelo Irã aumentou este mês, disse Wray. Os ataques cibernéticos contra os EUA realizados pelo Irã e por agentes não estatais provavelmente piorarão se o conflito se expandir, disse ele.

A missão do Irã na Organização das Nações Unidas não respondeu imediatamente a um pedido de comentário.

Durante a audiência, o secretário de Segurança Interna, Alejandro Mayorkas, disse que o ódio dirigido aos estudantes judeus nos EUA após o início do conflito israelense-palestino em Gaza contribuiu para o aumento do antissemitismo.

Casa Branca expressou alarme nesta semana com os relatos de incidentes antijudaicos em universidades norte-americanas, conforme as tensões levaram as autoridades universitárias a reforçar a segurança.

Em uma reunião de cúpula sobre ransomware organizada pela Casa Branca nesta terça-feira, o procurador-geral Merrick Garland disse que havia instruído o Departamento de Justiça dos EUA a ajudar os israelenses a investigarem os fluxos financeiros para o Hamas, incluindo aqueles que envolvem criptomoeda.

 

Ø  A mãe cruel está em trabalho de parto novamente. Por Lluís Bassets

 

A resposta aos ataques de 7 de outubro "mudará a realidade no terreno em Gaza pelos próximos 50 anos", de acordo com as palavras inflamadas de Yoav Galand, o ministro da Defesa de Israel, enquanto ainda havia terroristas matando inocentes. Sua mistura de ameaça e premonição ficou aquém. A extensa destruição da trama urbana sofrida por Gaza já nos dá uma primeira ideia da magnitude do cataclismo.

A história da humanidade está repleta de atrocidades tão selvagens e primitivas quanto as cometidas pelo Hamas naquele dia fatídico. As imagens de destruição em Gaza, no entanto, eram desconhecidas até a Segunda Guerra Mundial, quando o lançamento em massa de dispositivos altamente destrutivos de aeronaves, canhões ou lançadores sobre áreas densamente povoadas se tornou uma arma de guerra. Gaza é o capítulo mais recente do sombrio álbum de cidades arrasadas pela destruição industrial através do lançamento de explosivos, uma experiência vivida quase um século atrás em Guernica e depois aplicada em cidades como Liverpool e Coventry na Inglaterra, Dresden e Hamburg na Alemanha, logo superada em Hiroshima e Nagasaki, e imitada recentemente em Grozny, Aleppo ou Mariupol.

A morte em larga escala de civis afeta todos os envolvidos: aqueles que são aniquilados, aqueles que aniquilam e até mesmo aqueles que não estão diretamente envolvidos na aniquilação. O Hamas já sabe disso após sua monstruosa incursão, mas em breve Israel também saberá quando vir o que surge das ruínas de Gaza. O Hamas pode desaparecer como organização, mas será difícil eliminar a ideologia, o sombrio coração de um movimento fundamentalista como o dos Irmãos Muçulmanos, profundamente enraizado em grande parte do mundo islâmico.

Quando um assunto gera muita discussão, leia tudo o que há para ser dito.

Israel também mudará, talvez mais do que qualquer outro, e dificilmente para melhor. A unanimidade exigida pela guerra leva ao autoritarismo. Os árabes cidadãos de Israel já estão sentindo isso, representando 20% da população, e os palestinos da Cisjordânia e Jerusalém Oriental ainda mais duramente. Qualquer demonstração de solidariedade com Gaza é vista como apoio ao Hamas. Uma paixão vingativa e inquisitória ameaça o destino de todos os palestinos. Centenas de pessoas estão detidas sem terem cometido outro crime senão serem quem são, incluindo milhares de trabalhadores de Gaza que não puderam retornar para casa após os ataques.

Assim como a guerra na Ucrânia, a guerra em Gaza é o epicentro de um terremoto que transformará a paisagem que conhecemos. Esses tipos de movimentos tectônicos dividem e quebram as sociedades e moldam o futuro, tanto para aqueles diretamente envolvidos, Israel e Palestina, quanto para aqueles mais distantes, mas igualmente envolvidos, como os Estados Unidos e a Europa. É temido que não gostaremos nem reconheceremos a criatura que surgirá chorando dessa carnificina.

 

Ø  A impotência da diplomacia. Por Michel Zaidan

 

Nunca a diplomacia foi tão impotente diante do genocídio praticado e anunciado, como vem sendo praticado pelas tropas israelenses, com o apoio militar e financeiro americano. O representante de Israel na ONU pediu a demissão do secretário-geral, pela denúncia  da opressão colonial a que vem sendo submetido o povo palestino. Está em curso um processo de limpeza étnica na faixa de Gaza, com cerco e “black” total das comunicações. É a reedição  do gueto  de Varsóvia. Morrerão  milhares de palestinos sob o intenso bombardeio  e as incursões  por terra das tropas.

Não há como sair desse inferno. Ninguém  quer refugiados políticos ou de guerra, além do medo das retaliações de Israel. Nem corredores humanitários, nem ajuda humanitária. Não haverá covas suficientes para sepultar os palestinos. E não se move uma palha. Estão sendo censuradas manifestações de apoio à Palestina. Até listas de nomes e entidades estão sendo entregues à embaixada americana no Brasil. O mundo vai continuar entregue a força do mais forte. 

Essa é a ordem internacional que nós temos. Estado de natureza, sem direitos ou sanções. Tudo em nome da autodefesa ou sobrevivência,  mesmo o massacre de inocentes, chamado de efeito colateral. Até Nietzsche negaria absolutamente uma prática supremacista como essa. Não é  justo, digno ou moral que o mais forte usurpe, oprima e sufoque  o mais fraco pela conquista do autointeresse. É preciso rever urgentemente  essa prática. A Palestina tem direito de existir como Estado soberano e livre, apoiado pela comunidade  internacional.

PS - Regime internacional de direitos humanos á lá carte. Cada um cumpre ou respeita o que quer. Uns se submetem  às leis internacionais e reconhecem a jurisdição do Tribunal  Penal Internacional.Outros, não. Parece o mundo hobbesiano, não é o mundo kantiano da paz perpétua.

 

Fonte: Opera Mundi/El País/Brasil 247

 

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