‘O rejeito sobe e desce no nosso rio e manguezal, conforme a maré.
Pesca acabou’
“Oito anos do crime de Mariana e agora o
desembargador pede para fazer tudo de novo. Quer deixar tudo para trás, as
nossas lutas. Somos diretamente impactados, porque nós pescamos no rio e no
mar. Morreu tudo na época [em 2015], os peixes, a flora, os caranguejos,
ostras, mariscos…depois foi ficando esses ciclos de ‘morre e volta’. Dependendo
da lua, se é maré cheia, o mar entra no rio e no estuário, revirando o rejeito,
vai remexendo conforme a maré. A pesca acabou, não tem como mais”.
O desabafo é da pescadora Silvia Lafaiete, moradora
de São Miguel da Ilha Preta, no distrito de Barra Nova, em São Mateus, uma das
muitas comunidades pesqueiras tradicionais do litoral norte do Espírito Santo
atingidas pelo crime da Samarco/Vale-BHP, que completa oito anos de impunidade
neste domingo (5).
A fala dolorida da pescadora atingida se refere à
decisão do desembargador Ricardo Machado Rabelo, do Tribunal Regional Federal
da 6ª Região (TRF-6), em que ele acata os agravos impetrados pelas mineradoras
Vale, Samarco e BHP Billiton e pela Fundação Renova, que questionam a
legitimidade da inclusão de dezenas de comunidades costeiras nos programas de
reparação e compensação de danos pelo crime, conforme estabelecido na
Deliberação nº 58/2017 do Comitê Interfederativo (CIF).
A plena implementação da Deliberação havia sido
determinada em agosto pelo novo juiz do caso, Vinícius Cobucci, da 4ª Vara
Federal de Belo Horizonte, que, de forma inédita, decidiu no mérito o imbróglio
referente à inclusão do litoral norte no escopo dos programas socioeconômicos da
Renova. As empresas recorreram da sentença, na forma de um agravo de
instrumento, e foram atendidas pelo desembargador.
Chama atenção, na leitura da decisão, o fato de o
desembargador desconsiderar vasta argumentação do juiz do caso, inclusive com
citações dos Ministérios e Defensorias Públicas sobre o tema, que expõem as
manobras jurídicas empreendidas pelas empresas criminosas nos últimos seis
anos, desde a publicação da Deliberação 58 pelo CIF.
“O que se vê é que as empresas poluidoras (Samarco,
Vale e BHP) simplesmente não aceitam as conclusões eminentemente técnicas
realizadas pelo CIF, apesar da previsão constante no TTAC. E mais: os estudos
técnicos apresentados em impugnação à Deliberação CIF nº 58/2017, quando muito,
fariam surgir situação de dúvida científica razoável em relação aos impactos,
atraindo a incidência dos Princípios da Precaução e do In Dubio Pro Natura,
demandando ações concretas à reparação integral dos danos socioambientais e
socioeconômicos indicados como consequentes à gravíssima poluição proporcionada
pelo rompimento da barragem de Fundão”, consta trecho da decisão do juiz.
Assim, afirma Vinícius Cobucci, “ao contrário do
estudo apresentado pelas sociedades [empresas] e pela Fundação Renova, o MPF
trouxe aos autos estudo tecnicamente mais embasado [do que o estudo contratado
pela Renova], com mais dados técnicos e que comprova situações potenciais de
risco grave e irreversível”.
A despeito dessas exposições, Ricardo Machado
Rabelo afirma, em seu despacho, que “seja realizada a prova pericial requerida
pelas agravantes, com direito ao contraditório e à ampla defesa”, concordando
com a argumentação de que, na decisão do juiz federal, “não lhes teria sido
oportunizada a realização de prova pericial, de natureza técnica, para fins de impugnar,
quanto ao mérito, o teor da Deliberação 58/2017 do CIF”.
·
Poucas alternativas
Silvia conta que, com o fim da pesca na região, sua
comunidade e outras, da região do Nativo, têm procurado melhorar o trabalho
também tradicionalmente desenvolvido com a coleta da pimenta-rosa ou aroeira.
“Nós somos produtores rurais também de
pimenta-rosa. Por enquanto, é a aroeira que rende alguma coisa, mas quando
acaba a safra dela, não tem o que fazer. Em maio começa a catagem, por volta do
dia 10. Depois, os pescadores mesmo vão para o mar se arriscar. Os outros ficam
sem opção. Eu mesma não tenho barco pra enfrentar o mar. Minha pesca era aqui
no estuário do rio Mariricu. São três bocas de barra da ligação com o mar. Não
recebi o cartão da Renova, estou na luta há oito anos”.
Em Conceição da Barra, pescadores de camarão e de
peixes também viram seu pescado desaparecer na região e ainda sofrem restrições
na Foz do Rio Doce, onde atuavam tradicionalmente. “No começo do crime, ficou
muito grave mesmo. E continua duvidosa a situação do pescado. Tem peixaria que
não compra peixe mais nosso daqui, trazem de Santa Catarina. No Festival do
Camarão, mês passado, veio tudo da Bahia”, relata o pescador Leandro Paranaguá,
vereador pelo Cidadania no município.
Ele acrescenta que os pescadores da cidade foram
indenizados pelos danos causados com o fim da pesca que faziam na Foz do Rio
Doce, porém de forma injusta pela Renova. “Ludibriaram os pescadores. Nos
informamos melhor e começamos a solicitar via Justiça com a Defensoria Pública”.
No próximo dia 10, conta, haverá uma manifestação
em Conceição da Barra contra a decisão do desembargador Ricardo Machado Rabelo.
Será na volta de uma grande caravana que irá a Brasília por ocasião dos oito
anos do crime. “Vamos fazer uma assembleia geral pedindo a aprovação da Penab
[Política Nacional dos Atingidos por Barragens], vamos ao Ministério da Pesca
com as pautas para o governo federal, de retomada produtiva”.
·
‘Fartos elementos’
A Defensoria Pública endossa a súplica dos
atingidos no litoral capixaba e, junto com o MPF e o governo do Estado,
preparam recurso contra a decisão do desembargador. “No nosso entendimento, há
fartos elementos que demonstram cabalmente que o litoral foi impactado por esta
tragédia. Não só temos a perícia judicial atestando que há contaminação por
mercúrio do pescado da foz do Rio Doce, como também temos anos de monitoramento
da Rede Rio Doce Mar e levantamentos dos experts do MPF que deveriam consolidar
essa discussão. Nosso receio é que esta interminável briga de laudos se
perpetue”, afirma o defensor público estadual Rafael Portella.
Ele alerta ainda para ramificações possíveis entre
a tramitação desta ação que questiona a Deliberação 58/2017 do CIF e uma outra
impetrada pelas empresas e a Renova, que questiona até a proibição da pesca na
Foz do Rio Doce. A última decisão sobre esse ponto se deu em novembro de 2020,
com o juiz Wellington Lopes da Silva, da 1ª Vara Federal de Linhares, de manter
a proibição.
A proibição foi estabelecida em fevereiro de 2016 –
atendendo a pedido da Defensoria Pública da União, do Ministério Público
Federal e da Federação das Colônias e Associações de Pescadores e Aquicultores
do Estado do Espírito Santo (Fecopes) na Ação Civil Pública nº
0002571-13.2016.4.02.5004/ES – e continua vigente por tempo indeterminado.
“É importante lembrar que no bojo da ACP que
discute a proibição da pesca, tem sido insistentemente colocado o desejo das
empresas de suspender qualquer proibição. A nosso ver, o enfraquecimento da
Deliberação 58 irradia efeitos para outras discussões, como essa, que
necessitam de todo o suporte técnico produzido pelo Poder Público em quase oito
anos de desastre”, explica o defensor Rafael Portella.
Nesta segunda-feira (30), pescadores de Barra do
Riacho, em Aracruz, divulgaram em suas redes sociais imagens de um peixe
encontrado na beira da praia com um tumor na parte posterior do corpo. “Olha só
o que está nas costas desse peixe: um tumor, não sei o que é. A única coisa que
eu sei é que é um cangoá e isso não deveria estar nas costas dele. Deixa a
gente muito preocupado. A única resposta para isso aqui é o caso Samarco”,
descreve Alexandre Barbosa, membro da Associação e da Colônia de Pesca local e
do Sindicato dos Pescadores e Marisqueiros do Espírito Santo (Sindpesmes).
·
Histórico
A sentença que decidiu no mérito pela plena
implementação da Deliberação 58, em agosto último, reforçou a decisão emitida
em outubro de 2022 , pelo juiz anterior do caso, Michael Procópio Ribeiro Alves
Avelar, em que ele expande a área de atuação da Renova para Aracruz, Serra,
Fundão, São Mateus e Conceição da Barra.
Em março passado, Michael já havia determinado o
bloqueio de R$ 10,3 bilhões das contas da Vale e da BHP Billiton para garantir
os programas de compensação e reparação dos danos. Dois meses depois, em maio,
o TRF-6 atendeu a embargos e recursos impetrados pelas empresas contra a
decisão do bloqueio, sendo uma semana depois contestado pelo magistrado.
No final daquele mês, Michael Procópio autorizou
uma intervenção cautelar na Fundação Renova, como forma de cessar sua “relação
umbilical” com suas mantenedoras e, assim, garantir que a entidade cumpra “sua
missão de existir no mundo” e imprimir mais agilidade no processo de reparação
e compensação dos danos.
Fonte: Século Diário
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