Brasil
– o “sentido” da história
O
desafio marxista é elaborar análises que ofereçam uma explicação ao desenlace
das lutas sociais do passado. Atribuir “sentido” à história de uma nação não é
uma previsão de destino, mas exige uma “régua”. A periodização política pode
ser feita utilizando diferentes critérios. O mais instigante, longe de
exclusivo, se inspira na luta de classes. Esse é o método marxista.
Ainda
que o marxismo não reduza a interpretação histórica à luta de classes elege
este critério ou determinação como a principal chave de elucidação. Mas a luta
de classes não se resume à luta entre capital e trabalho. A burguesia não é, em
nenhum país, uma classe homogênea: está dividida em frações que rivalizam
interesses – regionais e econômicos, entre outros – e disputam entre si, em
certas etapas de forma mais aguda, estratégias e projetos distintos.
Os
trabalhadores, ainda que mais homogêneos que os capitalistas, não são, tampouco
homogêneos e, em nosso país, mantiveram estratificações internas variadas – de
gênero e raça, entre outras. O conflito entre capital e trabalho não foi o
principal antagonismo nas etapas de formação da nação brasileira. E, embora
decisivo, sobretudo depois dos anos cinquenta [1950], não se deve diminuir na
análise o papel das camadas médias. Existem sempre outras determinações,
distintas da luta de classes, mas subordinadas ao conflito central.
A
história política do Estado, que assumiu a forma de diferentes regimes
políticos, ou a arquitetura institucional do exercício do poder, não se explica
sem uma complexa história social de formação das principais classes, e nos
remete à história econômica e o lugar do país no mercado mundial. Isto posto,
podemos discernir nesta chave de interpretação dez etapas político-sociais,
alternando fases de aceleração, estagnação e regressão, na evolução do Brasil
como nação em construção.
Podemos
periodizar, em resumo brutal, nossa história política em três épocas ou etapas
históricas. Uma primeira longa época ou período histórico em que o Brasil era,
essencialmente, uma sociedade agrária, a luta das classes populares, uma
maioria negra, se desenvolvia em condições estruturais defensivas, perderam-se
oportunidades históricas de sair da condição periférica, que a Argentina,
comparativamente, aproveitou muito melhor, se estendendo até o final da Segunda
Guerra Mundial.
Esta
primeira época pode ser subdividida em três períodos: (a) entre 1822/88, o que
prevaleceu foi a escravidão tardia que condicionou lutas de baixa
intensidade entre frações burguesas urbano-importadoras e agrário-exportadoras
muito regionalizadas, que abraçaram a forma monárquica do Estado, perpetuando a
dinastia Bragança, e estrangularam o país com uma longa estagnação, atrasou o
desenvolvimento econômico-social por três gerações, condenou o país a mais um
século de semicolonização inglesa, ainda que preservando a unidade do Estado
nacional.
(b)
Entre 1889/1930, o que prevaleceu foram as lutas de oligarquias regionais, em
especial paulista, pela hegemonia no Estado Nacional, um lento desenvolvimento
com o crescimento demográfico, e a formação de uma classe média urbana de
imigrantes europeus, à excepção do sul em que surgiu uma pequena-burguesia
agrária.
Entre
1930/45, o que prevaleceu foi o papel de Vargas como árbitro bonapartista de
lutas oligárquicas regionais, em especial, o conflito contra a hegemonia de São
Paulo, e conflitos entre uma burguesia urbana interessada no mercado interno e
frações “compradoras”, contidos pela ditadura do Estado Novo, manobrando entre
as pressões norte-americanas e alemãs.
A
segunda época ou etapa se inicia com o golpe de Estado que derruba Getúlio
Vargas e o fim da guerra, se estende até os anos 1980, com o fim da ditadura, e
se define pelo papel crescente da mobilização operária e popular, ainda sem
expressão política protagonista, sendo arrastada por outras classes, frações
burguesas e das camadas médias.
Nesta
etapa histórica o Brasil se transformou no principal destino do investimento
norte-americano, e a burguesia brasileira, na mais poderosa da periferia, mas a
nação passou a ser campeã mundial desigualdade social.
Pode
ser subdividida em dois períodos: (i) entre 1945/64, se iniciou a fase dinâmica
de intensa aceleração da urbanização, foi preservado um regime
democrático-liberal deformado pela ilegalização do PCB, a primeira geração
proletária se colocou em movimento, ainda que sem independência de classe, e
abraçou o getulismo como vocabulário político, e o que prevaleceu foi o
conflito entre uma fração burguesa associada umbilicalmente com Washington e a
defesa do papel dos investimentos externos como motor da industrialização, e
uma fração burguesa que apostava no potencial do mercado interno.
(ii)
entre 1964/79 a classe dominante se uniu no apoio à ditadura militar como
estratégia de emergência preventiva diante do impacto continental da revolução
cubana, e a derrota histórica da classe trabalhadora, que precisou do intervalo
de uma geração para se recuperar, potencializou o “milagre” econômico com uma
vertiginosa migração interna de mais de cinco milhões que se deslocaram do
nordeste para o sudeste.
A
terceira etapa foi ainda mais turbulenta que as duas anteriores. Ela se inicia
na fase final da luta contra a ditadura, e se estende até hoje. O fator chave
deste período foi o protagonismo da luta da classe trabalhadora, que produziu
divisões na classe dominante e, em dois períodos, conseguiu arrastar uma
maioria nas camadas médias.
Ela
pode ser subdividida em cinco fases: (a) entre 1979/92, a “longa década de
oitenta”, a nação viveu a fase de mais intensa luta de classes de sua história,
em que o que prevaleceu foi a polarização capital/trabalho, inaugurada pela
explosão de greves operárias que fermentaram a formação da UNE, do PT, da CUT,
do MST, a onda de mobilização de massas das Diretas Já, de dois ensaios de
greves gerais nacionais em 1987 e 1989, e o Fora Collor, que derrubou o
primeiro presidente eleito sob as regras da nova Constituição, arrastando
segmentos da classe média.
(b)
Entre 1992/2002, o que prevaleceu foi a estabilização do regime
democrático-eleitoral com direito de alternância, a unidade burguesa e um giro
da classe média para a direita, a estabilização da moeda com uma política de
juros estratosférica, mas o capitalismo periférico perdeu o impulso de
crescimento, o investimento externo passou a privilegiar a China, surgiu a
armadilha da estagnação social com o PIB per capita andando de lado, o avanço
de choques neoliberais de desnacionalização, desindustrialização, e
privatizações.
(c)
Entre 2002/16, o que vingou foi o impulso reformista com a eleição de Lula, que
teria sido impossível sem apoio na nova classe média urbana, e, na sequência,
vitórias eleitorais sucessivas, prevalecendo um papel regulador do Estado,
através de políticas de distribuição de renda, mas também associado ao extremo
gradualismo e moderação, sem anulação do tripé macroeconômico neoliberal de
câmbio flutuante, busca de superavit fiscal e metas de inflação, e um lento
deslocamento das camadas médias, inclusive entre trabalhadores remediados mas
com instrução mais elevada, para a oposição que culmina na explosão
multitudinária de 2013.
(d)
Entre 2016/22 o país passou pela tragédia do golpe parlamentar institucional,
sustentado por mobilizações de milhões nas ruas, o mandato usurpador de Michel
Temer, a prisão de Lula que abriu o caminho para que um neofascista como Jair
Bolsonaro chegasse ao poder através de eleições, no contexto de uma
fragmentação social devastadora, uma inversão desfavorável da relação de forças
muito pior que nos anos 1990.
(e)
Entre 2022/25, em função do desgaste de Jair Bolsonaro na pandemia e de uma
divisão na classe dominante, ocorreu a vitória eleitoral de Lula, mas sem uma
derrota política da extrema direita, que permaneceu quase intacta, com um apoio
consolidado na classe média, no sudeste e no sul do país.
O
argumento deste texto é que essas etapas e períodos são definidos por mudanças
qualitativas nas relações sociais de força, ou seja, na posição respectiva das
classes sociais na estrutura da sociedade. Mas se manifestam na superestrutura
institucional do Estado em alterações na arquitetura do poder.
Nessa
perspectiva, o reacionarismo atávico da classe dominante perdeu as
oportunidades de se libertar da condição de semicolônia inglesa no século XIX
adiando, indefinidamente, o fim da escravidão, impedindo uma reforma agrária, e
preservando uma monarquia obsoleta e anacrônica.
Uma das
peculiaridades brasileiras é que a classe dominante renunciou a uma revolução
burguesa porque temia, acima de tudo, o desenlace de uma guerra civil, como na
Argentina ou nos EUA, apavorada diante de uma maioria popular negra. A
revolução de trinta, que começou com a “batalha de Itararé” e abriu a
possibilidades de erguer o Estado nacional acima dos horizontes mesquinhos da
cafeicultura paulista, a fração mais poderosa da burguesia, mas Getúlio Vargas
optou pela ditadura para derrotar o integralismo que defendia uma ditadura.
Em
comparação com as nações vizinhas, o que prevaleceu na longa duração, na escala
das décadas, foi a relativa estabilidade da dominação burguesa no Brasil em
transições concertadas, e a lentidão das transformações sociais, em contraste
com um dinamismo econômico intenso. Mesmo o golpe de 1964, uma ruptura
institucional, foi precipitado preventivamente, temendo a onda de contágio da
revolução cubana.
Nunca
conhecemos uma revolução democrática. A ditadura acabou em 1985 sem que o
governo de João Figueiredo tenha sido derrubado. Mas este padrão se alterou,
dramaticamente, desde o fim da ditadura militar. A tendência histórica tem
sido, desde então, apesar de oscilações, uma aceleração da luta de classes.
A
principal mudança objetiva foi a entrada em cena de uma nova classe
trabalhadora, incomparavelmente mais poderosa. O proletariado brasileiro é um
gigante social. O mais forte da América do Sul. A intensa industrialização nos
trinta anos do pós-guerra, apesar de desigualdades regionais muito grandes,
gerou uma sociedade hiper-urbanizada com vinte e duas cidades com mais de um
milhão de habitantes e duas capitais, desproporcionalmente, macrocéfalas: São
Paulo e Rio de Janeiro.
A
relação de forças entre campo e cidade se inverteu. Até os anos cinquenta o
mundo agrário era a fortaleza social da classe dominante. Desde os anos oitenta
se impôs um “despotismo” urbano e uma nova relação estrutural de forças entre
as classes. O regime democrático-liberal se institucionalizou nos últimos
quarenta anos, mas a um custo econômico gigantesco, uma carga fiscal só
comparável com a dos países centrais para sustentar previdência social, SUS,
educação pública gratuita e programas de transferência de renda para diminuir a
miséria extrema.
As
condições objetivas e subjetivas da dominação capitalista mudaram porque os
trabalhadores organizaram o maior partido de esquerda do continente. Neste
processo o capitalismo periférico perdeu o impulso de crescimento, mergulhou em
estagnação, reprimarizou com a expansão do agronegócio e mineração, e uma
fração burguesa radicalizou até à extrema-direita apoiando o golpismo
bolsonarista.
O
capitalismo mundial escapou do terremoto de 2008 somente com uma década
recessiva, evitando uma depressão como nos anos trinta, à custa de uma “fuga em
frente”: uma explosão estratosférica de crédito, não elevação de investimento.
O Brasil viveu um período de “decadência” nacional. Mas o paradoxo é que não
foi a classe trabalhadora que desafiou os limites do regime liberal-eleitoral,
foi a burguesia que rompeu com a democracia.
No
Brasil, ao contrário da Bolívia e Venezuela, ou mesmo da Argentina, não se
abriu uma situação revolucionária, mas ocorreu um golpe institucional à maneira
“paraguaia”. Este desfecho se explica por dois fatores: (i) pela força social e
inteligência política da burguesia brasileira que se uniu cooperando com
governos de coalizão com o PT até o impacto da crise mundial de 2008, mas
também seu uniu para derrubá-lo, quando se sentiu ameaçada, depois de 2014;
(ii) pela força e longevidade do lulismo que venceu quatro eleições
presidenciais seguidas, sofreu o impeachment de Dilma Rousseff, mas conseguiu
voltar à presidência em 2022, e lutará pela reeleição de Lula em 2026.
Quando
uma nação mergulha em decadência a luta de classes muda de patamar. As
duas classes mais poderosas da sociedade vão ter que medir forças. Uma das
chaves de previsão da evolução da luta de classes nos próximos anos repousa na
“ausência” dos “dois fatores”.
Hoje a
burguesia está procurando superar a divisão interna provocada pelo
bolsonarismo, e a crise de sucessão de Lula, embora contida, já começou. Depois
do fracasso do mandato Jair Bolsonaro e da derrota do ensaio geral golpista, a
classe dominante procura costurar fissuras em torno de um projeto histórico de
alinhamento incondicional com os EUA, e a aposta de crescimento turbinado pelo
investimento norte-americano e europeu que abandona a China, e está na ofensiva
política para derrotar o governo Lula.
Mas o
lulismo, a corrente majoritária entre os trabalhadores, está à deriva, sem
projeto estratégico. O “reformismo fraco” repousou no “crescimento forte” que
garantiu a paz social até 2013. Não estamos em 2005. Nem a China preserva
crescimento de dois dígitos, nem Obama está na Casa Branca. Os aliados na
Frente Ampla estão em debandada. A questão decisiva no cálculo político é
avaliar o grau de risco de retorno da extrema direita ao governo do país.
A
presença de Donald Trump na Casa Branca pode favorecer uma união da classe
dominante em torno de um projeto que unifique a fração liberal com os radicais
bolsonaristas, mas sem Jair Bolsonaro, que deve ser condenado, e a capacidade
deste Frente Ampla reacionária arrastar a maioria das camadas médias, inclusive
entre os trabalhadores.
Por
outro lado, é mais do que claro que sem o lulismo será impossível evitar a
ameaça de uma derrota histórica, mas não menos importante é compreender que os
limites do lulismo são boa parte das razões deste impasse estratégico. A
esquerda socialista deve golpear junto, mas saber se proteger e marchar
separada.
Fonte:
Por Valerio Arcary, em Opera Mundi
Nenhum comentário:
Postar um comentário