Valerio Arcary: ‘Três peculiaridades
brasileiras’
Todas as nações têm as
suas distinções, originalidades, grandezas e misérias. O Brasil é o país com a
maior economia na periferia do capitalismo, tem uma dimensão continental e se
estende da Amazônia até o Pampa, responde por metade da população da América do
Sul, um pouco mais da metade do povo é negra, e uma imagem internacional
simpática construída na segunda metade do século XX.
Mas, talvez, as três
peculiaridades políticas sejam:
(a) o grau,
absurdamente, grande de desigualdade social que persiste quase intacto;
(b) a capacidade
histórica da classe dominante de procurar soluções para os conflitos sociais e
políticos pela via de concertações negociadas;
(c) a existência de
uma classe trabalhadora gigantesca, e de uma das esquerdas mais influentes no
mundo.
A “excepcionalidade”
brasileira resulta destas peculiaridades e resulta em um paradoxo: a
desconcertante lentidão de qualquer transformação social que diminua a terrível
injustiça que oprime a nação. O que prevaleceu no Brasil, ao longo de muitas
gerações, foram as transições pelo alto, ou concertações entre frações
burguesas.
Os conflitos na classe
dominante se resolvem por conchavos, longas e minuciosas negociações com mútuas
concessões. Não conhecemos guerra civil, a não ser no Rio Grande do Sul, e há
cem anos atrás. A única ruptura foi uma exceção: o golpe militar de 1964.
Muitas razões explicam nossa excepcionalidade. Não é simples.
Há fatores objetivos e
subjetivos que ajudam a compreender esta excepcionalidade. Trata-se de um
paradoxo porque a desigualdade social crônica no país que tem o maior PIB e, ao
mesmo tempo, proporcionalmente, a maior e mais concentrada classe trabalhadora
no mundo periférico, gigantescos centros urbanos, mais de 20 cidades com um
milhão de pessoas, deveriam impulsionar um nível muito elevado de tensão
social. O que favorece mudanças, por via de reformas ou de revolução.
Mas não é assim. Todos
os principais países vizinhos do Brasil – Argentina (2001/02), Venezuela
(2002), Chile (2019), além de Peru, Equador, e Bolívia – conheceram, neste
século, situações pré-revolucionárias. O Brasil não. O que vingou no Brasil foi
a experiência do lulismo. O PT venceu cinco eleições presidenciais desde 2002.
E foi necessário um golpe institucional, ou seja, uma derrubada “a frio” do
governo Dilma Rousseff para abrir o caminho a eleição de um neofascista como
Jair Bolsonaro.
E pode ficar pior. Na
principal cidade do país, um boçal neofascista histriônico, Pablo Marçal acabou
de assumiu a liderança da corrente de extrema direita em dinâmica vertiginosa.
Confirmando que o perigo é real e imediato. E que ninguém pode subestimar o
perigo de que voltem ao poder nacional.
Surgiram diferentes
hipóteses de explicação do paradoxo. Duas são as mais importantes e têm um
“grão de verdade”:
(i)
a teoria ultra-objetivista remete,
essencialmente, à força da burguesia;
(ii)
a teoria ultra-subjetivista remete,
simetricamente, à fragilidade da consciência popular.
Talvez, a síntese
entre elas seja uma hipótese mais produtiva. Afinal, a gigantesca riqueza e
poder, associados ao extremo reacionarismo da burguesia brasileira, só
comparável com sua inteligência estratégica, teve muita importância para conter
a pressão social por mudanças.
A debilidade subjetiva
de uma classe trabalhadora muito heterogênea explica, também, os limites de sua
capacidade de auto-organização e união, e a espantosa paciência política e
ilusões renitentes em soluções concertadas. Mas não se deve esquecer a presença
de um terceiro fator. O papel das camadas médias.
A classe média no
Brasil sempre foi menor, em comparação, que a Argentina. Mas é, como em todo os
países urbanizados, o colchão social que oferece estabilidade à dominação
burguesa. A classe média arrasta, tradicionalmente, os setores mais elevados do
mundo do trabalho assalariado que ascenderam pela escolaridade, e compartilham
um modo de vida das camadas médias. Mas no Brasil, um país fraturado
racialmente, não são negros, e a branquitude goza de um status de privilégio.
Isso importa.
O Brasil de hoje mudou
comparado com o do final dos anos 1970. Ao longo deste ciclo histórico
ocorreram muitas oscilações nas relações de forças entre as classes, umas
favoráveis, outras desfavoráveis para os trabalhadores e seus aliados. Mas não
se abriu uma única vez uma situação revolucionária. Eis um esboço de
periodização do período até à primeira eleição de Lula.
O que deve nos
interessar é que sempre que existiu a possibilidade de ruptura foi contornada:
(a) tivemos uma
ascensão de lutas proletárias e estudantis, entre 1978/81, seguido por uma
estabilização frágil, depois da derrota da greve do ABC de 1981 até o final de
1983, quando o fracasso do plano “asiático” de Delfim Netto de impulsionar
exportações, pela desvalorização cambial, fez disparar a inflação sem recuperar
crescimento.
(b) Em 1984 uma nova
onda contagiou a nação com a campanha pelas Diretas Já, e selou o fim da
ditadura militar, mas o governo de João Figueiredo não caiu;
(c) uma nova
estabilização entre 1985/86 com a posse de Tancredo/Sarney e o Plano Cruzado, e
um novo auge de mobilizações populares contra a superinflação que culminou com
a campanha eleitoral que levou Lula ao segundo turno de 1989.
(d) Uma nova
estabilização breve, com as expectativas geradas pelo Plano Collor, e uma nova
onda a partir de maio de 1992, potencializada pelo desemprego e, agora, da
hiperinflação que culminou com a campanha pelo Fora Collor;
(e) uma estabilização
muito mais duradoura com a posse de Itamar e o Plano Real, uma inflexão
desfavorável para uma situação defensiva a partir da derrota da greve dos
petroleiros em 1995.
(f) Lutas de
resistência entre 1995/99, e uma retomada da capacidade de mobilização que
agigantou-se, em agosto daquele ano, com a manifestação dos cem mil pelo Fora
FHC, interrompida pela expectativa da direção do PT e da CUT de que uma vitória
no horizonte eleitoral de 2002 exigiria uma política de alianças, que não seria
possível em um contexto de radicalização social.
A estabilização
social prevaleceu ao longo dos dez anos de governos de Lula e Dilma, entre 2003
e junho de 2013, quando uma explosão de protesto popular acéfala levou milhões
às ruas, um processo interrompido ainda no primeiro semestre de 2014. Mas o
mais importante foi a inversão muito desfavorável com as mobilizações
reacionárias gigantes da classe média insufladas pelas denúncias da Lava Jato,
entre março de 2015 e março de 2016, quando alguns milhões ofereceram a
sustentação para o golpe jurídico-parlamentar que derrubou Dilma Rousseff.
Parecia que estava encerrado o ciclo histórico. Mas não. O Brasil é lento.
Este ciclo foi a
última fase da tardia, porém, acelerada transformação do Brasil agrário em uma
sociedade urbana; a transição da ditadura militar para um regime
democrático-eleitoral; e a história da gênese, ascensão e apogeu da influência
do petismo, depois transfigurado em lulismo, sobre os trabalhadores; ao longo
destes três processos a classe dominante conseguiu, aos “trancos e barrancos”,
evitar a abertura de uma situação revolucionária no Brasil como aquelas que a
Argentina, Venezuela e Bolívia conheceram, embora, mais de uma vez, tivessem se
aberto situações que podiam ter evoluído nessa direção, mas foram
interrompidas.
A eleição em 2002 de
um presidente operário em um país capitalista semiperiférico, como o Brasil,
foi um acontecimento atípico. Do ponto de vista da burguesia uma anomalia, mas
não foi uma surpresa. O PT já não preocupava a classe dominante, como em 1989.
Um balanço destes treze anos parece irrefutável: o capitalismo brasileiro não
esteve nunca ameaçado pelos governos do PT. Mas isso não impediu que toda a
classe dominante tenha se unido, em 2016, para derrubar Dilma Rousseff com
acusações estapafúrdias. Essa operação política, uma conspiração liderada pelo
vice-presidente Michel Temer, nos revela algo de importância estratégica sobre
o que é a classe dominante brasileira.
Os governos do PT
foram governos de colaboração de classes. Favoreceram algumas reformas
progressivas, como a redução do desemprego, o aumento do salário mínimo, o
Bolsa-Família, e a expansão das Universidades e Institutos Federais. Mas
beneficiaram, sobretudo, os mais ricos, mantendo até 2011 o tripé
macroeconômico liberal intacto: a garantia do superávit primário acima de 3% do
PIB, o câmbio flutuante em torno dos R$2,00 por dólar e a meta de controle da
inflação abaixo de 6,5% ao ano.
Não deveria
surpreender o silêncio da oposição burguesa, e o apoio público indisfarçável de
banqueiros, industriais, latifundiários e dos investidores estrangeiros,
enquanto a situação externa foi favorável. Quando chegou, em 2011/12, o impacto
da crise internacional aberta em 2008, o apoio incondicional da classe
dominante desmoronou. Não houve qualquer hesitação depois da derrota de Aécio
Neves em 2014. Foram para o golpe. A denúncia do “petrolão” pela Lava Jato foi
somente uma bandeira instrumental.
Por isso, embora o
Brasil seja menos pobre e ignorante que há quarenta anos, não é menos injusto.
O balanço histórico é devastador. O país mudou muito pouco. Tudo é
dramaticamente, lento. Pior, aquilo que não avança, recua. Porque a direção
lulista se deixou transformar em presa da operação Lava Jato, desmoralizou-se
diante de parcelas grandes da classe trabalhadora e da juventude, e entregou as
classes médias exasperadas (pelas denúncias de corrupção, pela inflação nos
serviços, pelo aumento dos impostos, etc.) nas mãos do poder da Avenida
Paulista, abrindo o caminho para um governo Temer ultrarreacionário. E depois
Michel Temer entregou nas mãos da extrema direita e de Jair Bolsonaro. Não foi
para isso que uma geração lutou tanto.
Lula conquistou, entre
1978 e 1989, a confiança da imensa maioria da vanguarda operária e popular. A
proeminência de Lula foi uma expressão da grandeza social do proletariado
brasileiro e, paradoxalmente, de sua simplicidade ou inocência política. Uma classe
trabalhadora jovem e com pouca instrução, recém-deslocada dos confins
miseráveis das regiões mais pobres, sem experiência de luta sindical anterior,
sem tradição de organização política independente, porém, concentrada em
grandes regiões metropolitanas de norte a sul e, nos setores mais organizados,
com uma indomável disposição de luta.
As ilusões reformistas
de que seria possível mudar a sociedade sem um conflito de grandes proporções,
sem uma ruptura com a classe dominante, eram majoritárias e a estratégia do
“Lula lá” embalou as expectativas de uma geração. Essa experiência histórica
ainda não foi superada. Mas o governo Lula III não pode se beneficiar da
situação atípica de vinte anos atrás. São muitas as diferenças. Mas a principal
é que há uma corrente de extrema-direita liderada por neofascistas que querem
voltar ao poder. Além de lento, o Brasil é um país perigoso.
Fonte: A Terra é
Redonda
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