“Uma Só Saúde” perante um modelo econômico
predatório
O governo federal
anunciou o plano de ação Uma Só Saúde. Capitaneada pelo Ministério de Nísia
Trindade, a iniciativa visa coordenar ações que incidem na saúde humana, animal
e vegetal, esforço de caráter intersetorial que necessariamente inclui a
participação de outras pastas da administração pública, em especial os
ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura.
Baseada no conceito de
One Health (e também tratado por Saúde Única) defendido pela OMS em seus
fóruns, o plano anuncia quatro abordagens essenciais: doenças zoonóticas e
novas epidemias/pandemias; resistência aos antimicrobianos; segurança alimentar
e segurança dos alimentos; biodiversidade, mudanças climáticas e saúde.
“Nossa maior
preocupação”, afirmou Ethel Maciel, secretária de Vigilância em Saúde e
Ambiente do ministério da Saúde, durante o evento de apresentação do plano. “É
com o que devemos enfrentar nos próximos anos. Trabalhamos com um conceito de
indissociabilidade de saúde humana, ambiental e animal. E hoje temos pouco
compartilhamento de informações. É uma ação para mobilizar a sociedade e o
Brasil como liderança em saúde, um país que tem muito a se orgulhar de seu
sistema de saúde, talvez o melhor do mundo. E devemos integrar ações para nos
fortalecer cada vez mais, visando a questão da água e dos alimentos.”
O evento, transmitido
ao vivo, revelou intenções do governo em avançar na compreensão pelo Estado
brasileiro das transformações pelas quais passa o planeta, sobretudo
climáticas, com consequências indisfarçáveis na saúde pública. A catástrofe do
Rio Grande do Sul serve como inflexão histórica. “Vivemos nesta quadra do
século uma transição demográfica, epidemiológica e nutricional“, lembra o
ex-ministro da Saúde, Arthur Chioro, atual presidente da Ebserh. “E se associa
um quarto elemento, da transição climática. O RS não nos deixa mentir. Temos de
lidar pra valer tanto em prevenção como intervenção”.
A rigor, o plano de
ação sugere um reforço no conceito de Saúde Coletiva, desenvolvido pelo
movimento sanitário brasileiro a partir dos anos 1970 e que está nas bases
fundamentais de concepção do SUS no Brasil. Tal noção considera que a saúde não
é simplesmente a prestação de serviços com vistas a curar uma determinada da
doença, mas toda uma confluência de fatores externos que conforma um perfil
epidemiológico da população. Por isso mesmo seus defensores enxergam com
cautela a iniciativa governamental.
“Que as questões
propriamente ditas das doenças zoonóticas, resistências antimicrobianas,
segurança alimentar, agrotóxicos, estejam no centro da questão é ótimo. Nós que
trabalhamos na saúde coletiva, com determinação social e ambiental, já temos
isso na nossa agenda. Se há uma ação governamental que vai favorecer, facilitar
essa articulação, ótimo. A minha preocupação é reduzir isso a uma articulação
para tratar de zoonoses”, afirmou José Noronha, sanitarista histórico,
ex-secretário do ministério e presidente do projeto Saúde Amanhã, da Fiocruz,
em entrevista ao Outra Saúde.
Para ele, o plano só
tem chance real de avançar se houver uma liderança enfática do Ministério do
Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas. Apesar de ter sua nomenclatura
atualizada e ampliada pelo novo governo Lula, é evidente que a pasta liderada
por Marina Silva tem atuado em um papel coadjuvante. A rigor, políticas de meio
ambiente sempre ocuparam o segundo escalão de prioridades da ação do Estado,
dominado pela lógica do grande capital.
A proeminência do
Ministério da Agricultura, inclusive orçamentária, com uma hegemonia do
agronegócio e sua classe política amplamente conservadora e lógica reprodutiva
predatória, parecem tornar as ambições pouco factíveis. A racionalidade
neoliberal e sua política de Estado mínimo, ainda vigentes, como se vê na
atuação do Banco Central em franca oposição ao projeto eleito nas urnas e sua
autonomia frente ao interesse social, completam um quadro onde a realidade é
hostil a qualquer projeto de sustentabilidade.
De toda forma, o
projeto Uma Só Saúde dialoga com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
Agenda 2030 da ONU, que colocam as metas ambientais em primeiro plano. Além
disso, corrobora as diretrizes da OMS no sentido de prevenir futuras epidemias
e criar condições de respostas rápidas. “Não vi em 60 anos esse esforço na área
da saúde, com uma visão holística muito importante. E fico feliz de ouvir
tantas referências à questão climática”, comemorou Antonio Barra Torres,
diretor da Anvisa, no evento de lançamento do plano.
Seu otimismo tem
lastro na realidade. Mas como alerta Noronha, os discursos precisam ser
transformados em ações práticas. E no fim das contas nada disso ocorrerá sem
uma confrontação direta com o atual modelo de desenvolvimento econômico: “É
necessária uma liderança da política ambiental. Não pode ser só mais um
penduricalho, um jogo de palavras, mas que seja realmente uma coordenação de
ação. Eu me preocupo porque isso deve ser articulado com a questão social das
populações. Não se trata de uma ideia vazia de ‘Saúde Única’, e sim também de
uma saúde única equitativa, que trate questões maiores do meio ambiente, em
situação cada vez mais crítica. Como se diz por aí, estamos caminhando não para
o fim da história, mas para o fim da humanidade”.
<><> A
seguir, leia a entrevista completa com o médico e sanitarista José Noronha.
• Como analisa o projeto Uma Só Saúde
lançado pelo Ministério, em consonância com o conceito de One Health, assumido
pela OMS através da complementaridade das dimensões humana, animal e vegetal?
A iniciativa do Saúde
Única (One Health) vem da Organização Mundial de Saúde e, segundo eles, procura
uma abordagem integrada à saúde animal e ecossistemas. É basicamente a ideia de
que todas as espécies e sua saúde estão interconectados e são interdependentes.
Procura-se enfatizar a influência ambiental e a própria questão ambiental com a
saúde animal. Dessa forma, eu diria que é uma iniciativa alvissareira. Embora a
vigilância sanitária e sua integração com a saúde animal sejam importantes,
trazer tais questões para um protagonismo maior do Ministério da Saúde é
extremamente salutar.
No entanto, não pode
ser uma iniciativa dependente apenas da pasta da saúde. Envolve e exige atuação
do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente e
Mudanças Climáticas, é necessariamente interministerial. E às vésperas da COP
de Belém em 2025, precisa de um alcance maior do que a simples conexão ao
interior da saúde.
A política fala de
prevenir e controlar as zoonoses, doenças transmitidas por vetores, a exemplo
da pandemia, das enchentes do RS, agora a febre oropouche… É uma coisa
virtuosa. Mas para prevenir e preparar respostas a epidemias deve enfrentar os
efeitos das mudanças climáticas. Se servir para mobilizar maior articulação
governamental, é uma coisa boa.
• A noção de saúde coletiva que perpassa o
SUS e a concepção de saúde no Brasil se ancora muito na ideia de “determinantes
sociais”. Estaríamos diante de uma atualização deste conceito, com ênfase maior
na questão ambiental?
De acordo com o
Ministério da Saúde, trata-se de uma coordenação para tratar doenças
zoonóticas, novas epidemias e pandemias, resistências antimicrobianas,
segurança alimentar e segurança dos alimentos, biodiversidade e mudanças
climáticas. Mas não são coisas do mesmo nível de hierarquia. Biodiversidade,
mudanças climáticas e saúde são uma coisa muito maior.
Que as questões,
propriamente ditas, das doenças zoonóticas, resistências antimicrobianas,
segurança alimentar, agrotóxicos, estejam no centro da questão é ótimo. Nós que
trabalhamos na saúde coletiva, com determinação social e ambiental, já temos
isso na nossa agenda. Se há uma ação governamental que vai favorecer e
facilitar essa articulação, ótimo. A minha preocupação é reduzi-la a uma
articulação para tratar de zoonoses.
É necessária uma
liderança da política ambiental. Temos, portanto, de fortalecer o combate às
doenças transmitidas pela degradação ambiental, eventos climáticos. Não pode
ser só mais um penduricalho, um jogo de palavras, mas que seja realmente uma
coordenação de ação. Eu me preocupo porque deve ser articulado com a questão
social das populações. Não se trata de uma ideia vazia de “saúde única”, e sim
também de uma saúde única equitativa, que trate questões maiores do meio
ambiente, em situação cada vez mais crítica. Como se diz por aí, estamos
caminhando não para o fim da história, mas para o fim da humanidade.
É bom que o Ministério
da Saúde e o governo tomem essa atitude. Mas quero enfatizar duas coisas: 1) o
conceito tem de incorporar a dimensão social; 2) a liderança deve vir da
política ambiental, pois as mudanças climáticas têm efeitos fundamentais na saúde
da população.
Permitir maior
integração entre o controle de zoonoses e o controle de saúde humana é ótimo,
mas a ideia em si já existe. Trata-se, portanto, de ampliar a importância da
política ambiental.
• O plano de ação não colide claramente
com uma realidade de macropolíticas dominada pelo grande capital e sua atuação
notoriamente predatória das condições ambientais?
Exatamente. Eu tenho
medo de uma iniciativa dessas dissociar e segmentar uma ação que é muito mais
integrada e articulada. Deve tratar, simultaneamente, do modelo de
desenvolvimento, mas com componentes setoriais. Esse tipo de coisa, às vezes,
dissolve, abandona, a segmentação social, as desigualdades, as iniquidades.
Simplifica a ideia da determinação social. Esse é o meu temor.
A Saúde Única deve vir
para expandir o conceito de saúde coletiva, deve colocar a questão ambiental
como uma algo maior, com abordagem social, uma vez que vemos certas camadas da
população mais atingidas, como se vê no Rio Grande do Sul. Se a Saúde Única ou
One Health for de fato uma aproximação de um novo modelo de desenvolvimento, um
novo modelo de construção ambiental, se essa ideia ampara uma maior articulação
para o controle de vetores e atuação em eventos climáticos extremos, com o
Ministério do Desenvolvimento Agrário, da Agricultura, Anvisa, o varejo de
alimentos, é importante. Se for para modelar o incentivo e o papel da Embrapa,
da agricultura familiar, combater o consumo de alimentos ultraprocessados, é
uma ótima iniciativa.
Porém, meu medo é que
fique só nas palavras, porque na prática devemos falar do modelo de
desenvolvimento econômico, da política ambiental, agrária, da distribuição da
renda… E só assim poderemos prevenir novos eventos como o do RS.
• Ao mesmo tempo, é uma política
necessariamente global.
Desde a Rio 92 falamos
isso, pois estamos caminhando para o fim da humanidade. Como disse o Paulo
Artaxo em uma palestra, nossos filhos, aos 50 anos, estarão no meio de uma
situação muito pior do que a nossa atual. O prognóstico é muito ruim. Encarar a
ideia de Saúde Única dentro dessa perspectiva é excelente, mas resta ver qual
papel será desempenhado pelos demais ministérios, não só o da Saúde.
Outra questão
importante é a abordagem da questão veterinária, uma vez que, segundo o
Ministério, a maior parte das doenças tem origem animal. O que isso implica em
termos de ações de saúde? É possível diminuir essa incidência nos atuais marcos
de reprodução social e econômica?
Zoonoses no sentido
restrito são ameaças globais, mas, ainda vão ganhar mais importância do que
aquelas transmitidas por animais, no conceito restrito de zoonoses, isto é,
passar do cachorro, do gato, do boi, para a pessoa. Se também incluem os
vetores, os insetos, já fica um pouquinho mais complicado. Aí você começa a
empastelar as coisas, corre-se um risco de botar tudo num saco que não ajuda
muito o raciocínio. Mas se vão adicionar questões ambientais e ampliar o
conceito tradicional, tudo bem.
• Parece improvável que este debate avance
de forma harmônica por meio de um poder público fatiado em comandos políticos
diferentes e muitas vezes pouco conciliáveis.
Sim. Se esse conceito
vem para trazer a questão ambiental ao centro da noção de saúde humana, eu
aplaudo. Mas precisa envolver Ministério da Indústria e Comércio, do Meio do
Ambiente, que deve pilotar e facilitar uma integração mais operacional entre o
Ministério da Agricultura, a Anvisa, o Ministério da Saúde etc. Se for para
botar tudo no mesmo saco, não sei se vale a pena, não sei se ajuda.
• Por fim, você trabalha num projeto da
Fiocruz denominado Saúde Amanhã, que tenta construir conhecimento para a
produção de políticas públicas relacionadas aos objetivos de desenvolvimento
sustentável. Neste sentido, como analisa a atuação geral do ministério neste
exercício presidencial de Lula e o somatório de iniciativas?
O ministério tem tido
um protagonismo na Agenda 2030, com o objetivo de desenvolvimento sustentável,
sob a ideia de não deixar ninguém pra trás, de ações integradas de governo. Tem
um papel bastante importante. A ministra Nísia não se furta a marcar a presença
do Ministério da Saúde nas ações do governo Lula no sentido de diminuir as
iniquidades do país.
O lema é União e
Reconstrução e ainda estamos executando essa agenda. Mas nós temos uma agenda
de construção pela frente, e uma agenda de futuro que ainda tem muito a
percorrer. Agora, nós estamos começando a trabalhar com foco em objetivos
assumidos pelo país para 2030, logo deveremos pensar em 2050.
O Ministério da Saúde
tem procurado dar respostas, como deu na catástrofe do Rio Grande do Sul, um
bom exemplo de ação coordenada. Nísia tem trabalhado no sentido de favorecer
maior integração, a divisão tripartite do SUS, seguir os encaminhamentos da Conferência
Nacional de Saúde. Ela tem feito seu papel.
• No entanto, essa reconstrução também
lida com “determinantes econômicos”, de maneira que sua atuação parece
impossibilitada de ir além das necessidades mais evidentes no plano imediato.
Sim, temos problemas
que vão além de sua atuação, a exemplo do atual esquema do arcabouço fiscal,
que nos coloca limitações de expansão dos recursos para o desenvolvimento e
para a saúde, em particular. De vez em quando especulam com o fim do piso de
saúde e educação, são coisas que nos preocupam. Mas a ministra Nísia e sua
equipe, nesse esforço de reconstrução, têm avançado bastante.
Dito isso, é preciso
maior recurso, profissionalização e maior integração no processo de formação da
força de trabalho em Saúde. É uma agenda muito grande, mas como nós estamos na
fase de reconstrução, de sair do desastre, esses temas ficam secundarizados. No
entanto, em algum momento teremos de passar para a fase da construção de um
futuro, fazer o sistema de saúde mais democrático.
Uma das questões
críticas, que ainda estamos muito atrasados, é na incorporação da assistência
farmacêutica no SUS. Pesquisa mostrou que o poder público entra só com 9% do
gasto com medicamentos; cerca de 91%, 92%, é gasto das famílias. Sai do próprio
bolso e atinge mais os pobres. Com toda a retomada do Farmácia Popular, ainda
está muito distante da necessidade de atendimento de medicamentos da população.
Nós ainda temos problemas, que nos esperam ainda muito importantes, para acesso
a tratamentos de câncer, para cirurgia.
Temos muita coisa para
construir ainda. E temos uma relação ainda muito frouxa, digamos, com o setor
de planos de saúde. Isso é uma questão também, há uma espécie de sequestro de
boa parte dos recursos, inclusive humanos, pelos planos de saúde, que cobrem
apenas 25% da população, e parcialmente, porque não fazem a vigilância
sanitária, vacinação, transferem medicamentos de alto custo para o Ministério
da Saúde… São coisas que também precisam ser vistas.
Fonte: Por Gabriel
Brito, em Outra Saúde
Nenhum comentário:
Postar um comentário