Efeito tóxico em células é alerta por mais
estudos com suplemento "anti-envelhecimento"
Suplemento que traz a
promessa de retardar o envelhecimento e prevenir o desenvolvimento de doenças,
a vitamina nicotinamida ribosídeo (derivada da vitamina B3) ainda vem sendo
testada em uma variedade de estudos clínicos, mas já está no mercado. Apesar de
estudos em animais terem sugerido efeito benéfico na produção da coenzima NAD +
pelas células, que favorece os mecanismos de geração de energia, pesquisadores
da USP mostraram, em testes de laboratório, que a nicotinamida ribosídeo pode
causar estresse energético e induzir a morte celular, mesmo em baixas
concentrações, o que possivelmente favoreceria a ocorrência e o agravamento de
doenças. Os cientistas apontam a necessidade de mais estudos sobre possíveis
efeitos adversos do suplemento para que se estabeleçam condições de uso
seguras.
As conclusões do
trabalho estão em artigo publicado na revista científica Chemical Research in
Toxicology, em 11 de julho. “A nicotinamida ribosídeo é um dos substratos para
a síntese da coenzima NAD + nas células. É encontrada em baixas concentrações
no leite e tem sido considerada uma vitamina precursora de NAD + , juntamente
com o ácido nicotínico e nicotinamida, conhecidos como niacina ou vitamina B3”,
explica ao Jornal da USP a professora Ana Paula de Melo Loureiro, da Faculdade
de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, que coordenou a pesquisa. “As coenzimas
NAD + e NADH são importantes moduladores da produção de energia (ATP) no
interior das células. A NAD + é também consumida por enzimas envolvidas no
controle da sobrevivência, diferenciação, crescimento e morte celular, sendo de
fundamental importância para a saúde a sua constante geração pelas células, o
que depende, em parte, dos precursores presentes nos alimentos”.
“A deficiência grave
na síntese de NAD + resulta na pelagra, doença caracterizada pela ocorrência de
dermatite, diarreia, demência e morte. Uma grave epidemia aconteceu na primeira
metade do século 20, atingindo cerca de 3 milhões de pessoas, sendo controlada
a partir de meados da década de 1940, quando pesquisadores concluíram que a
deficiência de niacina na dieta era o cerne do problema”, relata a professora.
“Atualmente, a diminuição da produção de NAD + nas células ao longo dos anos é
considerada um fator que propicia o desenvolvimento de doenças relacionadas ao
envelhecimento, como câncer, diabetes e doenças neurodegenerativas. Assim, há o
interesse na suplementação com precursores de NAD + , a fim de retardar o
envelhecimento e prevenir o surgimento de doenças”.
Os pesquisadores
expuseram células BEAS-2B, linhagem estabelecida a partir de células
encontradas nos tecidos do sistema respiratório, à nicotinamida ribosídeo para
verificar se o aumento da geração de NAD + nas células protegeria contra a
transformação maligna induzida pelo carcinógeno benzo[a]pireno, substância
causadora de câncer, em modelo estabelecido pelo grupo, envolvendo a exposição
ao longo de sete a oito dias. “Para nossa surpresa, as células expostas somente
à nicotinamida ribosídeo morreram após três dias ao utilizarmos uma
concentração considerada não tóxica a partir de estudos de outros pesquisadores
com outras linhagens. Fizemos novos testes até atingirmos a concentração não
tóxica de 1 micromolar (µM) na exposição diária ao longo de oito dias”,
descreve Ana Paula. “Em seguida, investigamos se a baixa concentração geraria
algum efeito no metabolismo celular, e apesar de não verificarmos a morte das
células, ela foi suficiente para diminuir a concentração de ATP ao longo do
tempo, o que nos alertou sobre a ocorrência de um desbalanço energético na
exposição a nicotinamida ribosídeo”.
Essas alterações foram
observadas entre o terceiro e sétimo dia da exposição, retornando ao normal no
oitavo dia, quando a demanda energética das células era menor em virtude do
crescimento mais lento. “A partir de informações da literatura assumimos que a
nicotinamida ribosídeo aumentaria a função mitocondrial, aumentando a geração
de ATP, o que de fato só ocorreu no primeiro dia de exposição. Outra surpresa
foi que mesmo com a exposição bem baixa, conseguimos observar aumento da
concentração de NAD + nas células, mas somente após o oitavo dia de exposição”,
observa a professora da FCF, relatando que em seguida foram avaliadas as
mitocôndrias, estruturas das células que produzem energia. “Por meio de um
teste de estresse feito com analisador Seahorse, verificamos a diminuição da
respiração mitocondrial. Ou seja, por alguma razão ainda não conhecida, a
exposição persistente à nicotinamida ribosídeo diminui a geração de ATP pelas
mitocôndrias das células BEAS- 2B. Assim, espera-se a morte das células com a
maior intensidade desse efeito, o que ocorre com o aumento da concentração de
nicotinamida ribosídeo”.
• Reprogramação metabólica
Os pesquisadores
observaram, por meio da análise proteômica shotgun, a qual compreende todas as
proteínas expressadas pelas células, que elas sofrem reprogramação metabólica,
provavelmente em resposta à diminuição da geração de ATP mitocondrial. “Observamos
o aumento da abundância de 19 proteínas relacionadas a essa reprogramação, e,
paralelamente, a diminuição da quantidade de 12 proteínas que têm algum papel
no desenvolvimento de câncer, sendo 11 delas reguladas positivamente em
diferentes tipos de câncer, envolvidas no dobramento, agregação ou renovação de
proteínas, na biossíntese do aminoácido L- serina, na transcrição de RNA
mensageiro (mRNA), no silenciamento gênico pós- transcricional, no reparo de
quebra do DNA, e na regulação da fosforilação de proteínas”, aponta Ana Paula.
O L-serina está envolvido na síntese de proteínas e a fosforilação é a última
etapa da respiração celular, onde é produzida a energia necessária para o
funcionamento das células. “A diminuição da abundância desse conjunto de proteínas
pode ter papel na diminuição do crescimento e na indução de morte celular”.
A pesquisa também
demonstra a robustez dos efeitos da nicotinamida ribosídeo nas células BEAS-2B
por meio da alteração do modelo de cultura celular. “Para isso, fizemos o
cultivo em modelo 3D (esferoides) para apresentarem características mais
semelhantes com as das células em um tecido, e expusemos a diferentes
concentrações de nicotinamida ribosídeo ao longo de uma semana”, relata a
professora. “Com essa abordagem, mostramos que mesmo alterando as
características celulares por meio do crescimento no modelo 3D, a nicotinamida
ribosídeo induziu a morte, em todas as concentrações testadas (1 a 50 µM), e
desequilibrou o estado energético das células, com estresse energético evidente
para a exposição dos esferoides a 10 e 50 µM de nicotinamida ribosídeo”.
De acordo com a
professora, é possível que um pequeno aumento persistente da concentração
intracelular de nicotinamida ribosídeo seja suficiente para desencadear o
estresse energético, que pode levar a reprogramação metabólica ou morte das
células, dependendo da condição metabólica em que se encontram. “Os resultados
apresentados aqui levantam uma preocupação com tentativas de aumentar a
biodisponibilidade da nicotinamida ribosídeo, assumindo que é completamente
segura e que aumentar persistentemente sua concentração trará benefícios
associados ao aumento do conteúdo celular de NAD + ”, aponta. “Mostramos que
isso não é verdade, pelo menos para as células das linhagens BEAS-2B e 1198,
que parecem ser modelos interessantes para revelar efeitos não relatados em
outro experimento in vitro”.
“Por outro lado,
estratégias para entregar nicotinamida ribosídeo às células poderiam ser
projetadas para matar células que já estejam sob estresse energético, como
células tumorais, sendo possível que haja toxicidade seletiva”, afirma Ana
Paula. “Nós verificamos que a linhagem celular pré-maligna 1198, derivada de
tumores originários de células BEAS-2B expostas ao condensado de fumaça de
cigarro e enxertadas em camundongos, foi mais sensível do que as células
BEAS-2B ao efeito tóxico da nicotinamida ribosídeo”.
A professora enfatiza
que mais estudos são necessários para entender o papel do estresse energético
induzido por nicotinamida ribosídeo em seus efeitos benéficos. “Muitos
benefícios da suplementação são relatados em modelos experimentais. Embora os
benefícios sejam atribuídos ao aumento da concentração de NAD + , alterações do
metabolismo energético devido a concentrações baixas, mas persistentes, também
podem estar envolvidas. Por outro lado, a demonstração do prejuízo no balanço
energético das células acende um alerta para que seu uso não seja promovido até
que as condições que favorecem os efeitos benéficos sejam conhecidas”,
recomenda. “Os achados do nosso estudo também podem servir como recomendação de
cuidado para estudos clínicos com altas doses de nicotinamida ribosídeo, que
podem resultar em efeitos adversos principalmente em pessoas que já sofram de
alguma condição que favoreça o estresse energético, como diabetes, câncer,
intoxicações com outras substâncias, e síndromes respiratórias, citando alguns
exemplos”.
Os resultados
apresentados na pesquisa resultam da tese de doutorado de Everson Willian
Fialho Cordeiro, do trabalho de doutorado em andamento de Elisabete Leide
Marzola, da dissertação de mestrado de Matheus Relvas dos Santos, e dos
trabalhos de iniciação científica de Thainá Gomes Cury Batista, Lucas Gade
Assunção e Ricardo Soei Maekawa, todos orientados pela professora Ana Paula de
Melo Loureiro na FCF. O trabalho também teve o envolvimento das então mestranda
Joseana de Oliveira e da doutoranda Maria Cármen Oliveira Pinho de Sales na
realização de experimentos, além da colaboração dos professores Silvya Stuchi
Maria-Engler, da FCF, Marisa Helena Gennari de Medeiros, Paolo di Mascio,
Graziella Eliza Ronsein, do Instituto de Química (IQ) da USP, da técnica
especialista em proteômica Mariana Pereira Massafera, do IQ, e da ajuda de
funcionários e centrais multiusuárias. O desenvolvimento do trabalho foi
possível graças aos financiamentos de bolsas e projetos pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e Conselho Nacional de Desenvolvimento
científico e tecnológico (CNPq).
Fonte: Jornal da USP
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