Tarifa zero: Para atacar as desigualdades
entre os cidadãos em relação ao que o Estado fornece
A Tarifa Zero
foi proposta, pela primeira vez, no governo municipal de São Paulo em 1990, pela
então prefeita Luiza Erundina. A Tarifa Zero é uma política pública de
mobilidade urbana universal. Provoca, necessariamente, uma saudável discussão
sobre seu financiamento.
Como ataca claramente
as desigualdades entre os cidadãos em relação ao que o Estado fornece, ponto
central de toda e qualquer discussão política, é objeto de muita polêmica. Ela
é racional, técnica, economicamente viável e deixa claro, em sua formulação,
que todas as políticas públicas requerem decisões democráticas sobre, afinal,
quem paga e quem se beneficia com elas.
E isto vale
especialmente para aquelas que devem proporcionar o exercício pleno dos
direitos constitucionais da cidadania. Um deles é o transporte público de
qualidade para todos (“direito do cidadão, dever do Estado” é o que está
inscrito em cada ônibus em São Paulo e na Constituição do Brasil, graças à
emenda aprovada e proposta por Luiza Erundina).
A Tarifa Zero é
absolutamente racional. A vida nas cidades (e mesmo nas regiões rurais) requer
mobilidade, assim como requer educação, luz, saneamento, segurança pública,
saúde e, logo mais, acesso à internet.
Há uma questão
absolutamente pertinente: quem paga? Como obter fundos para o sistema
contratado por custo, com níveis de serviços minimamente aceitáveis: tempo de
trajeto, frequência de veículos, tempo de espera no ponto, lotação máxima
aceitável, em horários de picos e vales, à noite, no domingo etc.?
Como toca no centro da
convivência urbana e, ao mesmo tempo, da política da urbe e do Estado, desde
1990 a Tarifa Zero vem despertando paixões. Mas como ela faz sentido político e
técnico, não é à toa que sua implantação cresce pelo Brasil afora e no mundo
(como no recentíssimo caso de Montepellier, na França, por exemplo).
No transporte coletivo
urbano, a tarifa, como medida de custo do serviço e, ao mesmo tempo, de preço
cobrado ao usuário, é uma ficção que tem sérias consequências na qualidade do
serviço, em sua acessibilidade e outras. Ela é, ao mesmo tempo, remuneração
pelo serviço e reguladora da demanda.
Quanto maior a tarifa,
maior a capacidade de custeio, de investimento e lucratividade da atividade,
mas… menor a acessibilidade por boa parte da população, o que a torna um
eficiente dispositivo de controle social. No senso comum, entretanto, a tarifa
é compreendida como um “custo por passageiro”. Mas, assim tratada, ela é uma
falácia, porque passageiro não provoca custo. O dimensionamento para obter
indicadores de qualidade é que provoca custo. Essa “tarifa” afasta o passageiro
e, a rigor, tende a infinito, porque o número de passageiros tende a zero
quanto mais se aumentar a “tarifa”.
Primeiro problema
básico do chamado “custo por passageiro”: um direito constitucional que requer
pagamento para ser exercido não é de fato um direito. Segundo: os sistemas de
transporte público de passageiros são viáveis apenas em algumas linhas, para algumas
pessoas com renda para pagar esse custo. Suponhamos que uma tarifa de R$ 15 por
passageiro pudesse sustentar um sistema de qualidade, limpo, com indicadores
muito aceitáveis. Quantos passageiros poderiam pagar esse valor?
A tarifa sempre é
arbitrária, definindo capacidade de investir e operar e, ao mesmo tempo,
excluindo parte da demanda. No Brasil, a história do descasamento entre a
tarifa “justa para custear o sistema” e a tarifa “justa para o passageiro” é a
história da decadência dos serviços (veja que isso não se restringe ao
transporte público).
Como se lidou com
isso? Várias soluções para linhas rentáveis e não rentáveis, trajetos que
servem não para transportar com qualidade, mas para “pescar” passageiros e
lotar os ônibus (mais receita, com praticamente o mesmo custo), câmara de
compensação, tarifa única, empresa estatal (CMTC) criada para absorver o
prejuízo etc.
Não há tarifa que
garanta qualidade, corredores, BRTs, ônibus com energia verde, e seja suportada
unicamente pelos passageiros. E não é só no Brasil que a renda baixa e custo
alto do investimento e da operação não se dão bem. Nem em São Paulo, nem… em Paris,
onde, desde o fim da Segunda Guerra, o sistema público de transporte é
financiado de três modos: um terço oriundo da tarifa paga, mas outros dois
terços pelo tesouro francês e pela taxa paga pelo comércio e demais atividades
econômicas de Paris. Reconhece-se que: (a) a tarifa é incapaz de cobrir os
custos; (b) os benefícios dos sistemas vão muito além dos passageiros usuários.
No Brasil, a tarifa,
por ser fictícia, arbitrária, inútil para financiar os serviço e impedidora do
exercício de direito, pode e deve ser abolida. Mas, como se diz, “não há almoço
grátis”. Nem almoço, nem vacinas, nem educação pública, nem USP. Tudo custa,
alguém paga. Mas porque esses e outros serviços são essenciais para a
sociedade, aquele que os consome não é o único responsável pelo seu pagamento.
A sociedade, com desigualmente justa carga tributária, basicamente conforme
renda e riqueza, “banca” estes serviços. A Tarifa Zero é a mesma coisa.
Políticas públicas
evidentemente custam caro, sobretudo para prover serviços de excelência. E
eventuais deficiências do SUS ou da educação pública devem-se não à gratuidade
dos serviços, mas ao subdimensionamento dos investimentos e do custeio para
operação em níveis de qualidade minimamente aceitáveis. A educação custa caro,
o SUS custa caro, as vacinas custam caro. Tudo custa. O que é preciso é gerir
para que o máximo benefício seja oferecido com o mínimo custo. Sim, isso vale
para toda a atividade do Estado.
A vacina é um
benefício para a sociedade, não apenas para o indivíduo que toma vacina. Por
isso a vacina custa, mas toda a sociedade paga. Faz sentido para a saúde, para
a educação pública, para a segurança pública. Por que não faria sentido para a
mobilidade urbana? Ainda mais porque a Tarifa Zero promove distribuição da
renda não gasta na mobilidade, que será poupada ou consumida como nunca,
gerando… impostos e fluxo na economia.
Argumentos são vários
contra a universalização do transporte e, portanto, da mobilidade urbana para
todos, não apenas para quem tem renda para ter automóvel, que o usa como e
quando quer, para onde quer, apenas pagando um imposto sobre a propriedade e, em
algumas estradas, pedágios. Limite apenas da lei, o código de trânsito, muitas
vezes desrespeitado, assim como a própria lei penal. Mata-se e morre-se
livremente no trânsito, basicamente à Tarifa Zero.
Em 1990, fiz parte da
equipe liderada pelo engenheiro Lucio Gregori, que propôs o projeto Tarifa Zero
no governo Erundina. Desde então, discussões foram realizadas, mas críticas
baseadas em argumentos disparatados foram, com o tempo, abandonadas. Não obstante,
algumas persistem, porque se trata de uma discussão verdadeiramente política:
Crianças
vão viajar sem parar, marginais, velhos, aposentados, punks, verdadeira bagunça: a experiência no Brasil e no exterior mostra que isso não
passa de preconceito. Com disciplina e urbanidade (como no metrô) não há
aposentados passeando sem parar (e, se houvesse, seria ruim?).
·
De graça é, por
definição, ruim: a USP é ruim?
Pessoas
vão usar para viagens curtas que poderiam ser feitas a pé: e se alguém pode se deslocar por três ou cinco quadras na
Avenida Paulista sem pagar, qual o problema? Lotação? E a lotação das vias por
carros, por pessoas que se deslocam três ou cinco quadras para ir à padaria?
Estes podem, mas ou outros não? Sim, é preciso dimensionar a frota, intervalos,
lembrando, acima de tudo, que os ônibus que circulam com 20, 30 ou 40 pessoas
provocam exatamente o mesmo custo (exceto por valores mínimos de combustível
adicional para descolar massa maior).
Haverá
viagens “inúteis”: o que é viagem útil? Quem tem direito de
classificar viagens pela utilidade? Ir ao parque, visitar família, é “inútil”?
Todo mundo
deveria ter renda para pagar tudo: isso é uma
peculiar concepção de Estado e de serviço público, que no limite mercantiliza a
saúde, a segurança, a educação. De fato, a sociedade deve escolher o que deve
ser direito fundamental e o que é fornecimento mediante pagamento. Mas isso é o
mesmo que definir o que é direito ou que é consumo. Alguém chegou a perguntar
retoricamente “por que não pedem passagem grátis para a Disney?”
Os
prestadores de serviços não vão se preocupar em pegar passageiros: irão, sim, porque serão fiscalizados, por GPS, por bluetooth,
por satélite. A estatística e a ciências dos dados permitem verificar o
serviço, os fluxos, as lotações, as paradas nos pontos. Onde está a
dificuldade?
Quem não
usa vai pagar: isso mesmo! Quem anda de carro paga,
assim como eu, idoso, pago pelas vacinas e pela educação básica das crianças e
adolescentes, ou não deveria ser assim?
As pessoas
vão usar mais só porque está disponível: talvez
alguns, marginalmente. Mas ninguém respira mais porque o ar está disponível. As
pessoas usam o transporte porque precisam, porque têm direito ao acesso ao
lazer e ao prazer, além do trabalho. Elas vão em busca de algo, não pelo “raro
prazer” de viajar de ônibus.
Tarifa Zero não é
incentivo ao transporte púbico? Não, sozinha não faz essa proeza. Ao lado da
Tarifa Zero, é preciso elevar muito outras “tarifas” ou custos, por exemplo, o
do uso do sistema viário (este, hoje, de graça, não confundir com IPVA) para
despejar carbono na atmosfera. E sim, corredores bem operados, com semáforos
inteligentes para dar preferência aos ônibus, podem competir com os automóveis.
A Tarifa Zero, mais ainda. Corredores e linhas articulados com sistemas de
bicicletas para a última ou primeira milha – de preferência, não exploradas por
bancos.
A Tarifa Zero é uma
política pública para os tempos de exclusão, de concentração de renda. É a
primeira política de outras que certamente virão, para garantir mínimas
condições de vida para uma sociedade em que o valor é cada vez mais concentrado
e que, o que é fundamental reconhecer: não precisa de parte da força de
trabalho disponível, seja de baixa, média ou altíssima qualificação. A ilusão
de que todos ganhariam o suficiente para comprar o automóvel, a máxima
fordista, ficou no século 20. Vêm aí outras formas de Tarifa Zero para permitir
a vida – digna – em sociedade.
Fonte: Por Mauro
Zilbovicius, em A Terra é Redonda
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