SP, Estado
que foi a “locomotiva do país” lidera a marcha à ré: agora, até as águas correm
para trás
A Câmara Municipal de
São Paulo voltou o polêmico Projeto de Lei (PL) 163/2024. Obscura, predatória e provavelmente ilegal, a matéria foi
empurrada a toque de caixa pela maioria dos vereadores, favoráveis ao prefeito
Ricardo Nunes e ao governador Tarcísio de Freitas. De sua aprovação depende, ao
que tudo indica, a privatização da Companhia de Saneamento do Estado de São
Paulo (Sabesp). Mas além de ferir a autonomia do município, a proposta
resultará, ao que indicam todos os estudos, em piora dos serviços, aumento das
tarifas e destruição de uma joia da engenharia brasileira. Por isso, a pressa e
a ausência de debate.
Segundo as regras
atuais, em caso de venda da estatal, o contrato com a prefeitura paulistana
estaria automaticamente rompido. O município representa 47% da receita
operacional da companhia. Sem esse quinhão é improvável que a Sabesp desperte
interesse entre possíveis compradores. A tramitação do PL 163/2024 chegou a ser
interrompida em 24 de abril, quando a juíza Celina Kiyomi Toyoshima, da 4ª Vara
da Fazenda Pública da Justiça de São Paulo, determinou que a apreciação só
tivesse prosseguimento após realização de audiências públicas e apresentação do
estudo de impacto orçamentário. A intervenção da Justiça foi provocada por ação
movida por vereadores do PT e do PSOL, encampada pelo Ministério Público de São
Paulo e pela Defensoria Pública do Estado. Todos estes entes apontaram o
cerceamento à participação popular, tendo em vista a tentativa de realizar a
votação antes mesmo que a sociedade conhecesse o assunto e tivesse oportunidade
de se manifestar.
No dia 16 de
abril, o presidente da Casa, Milton Leite, havia lançado mão de manobra parlamentar para fazer com que o
projeto passasse pelas diversas comissões da Câmara em bloco. Já no dia
seguinte, após a realização de uma única audiência, em sessão tensa e sob
protestos, o PL foi aprovado em primeira votação, com 36 votos favoráveis e 18
contrários. A maioria governista derrubou até mesmo emenda da
oposição que buscava frear provável tarifaço. Previa-se a criação
de serviço público municipal para o setor, em caso de privatização;
estabeleciam-se garantias contra o aumento abusivo dos preços a partir de
mecanismos como regras mais específicas para tarifa social. O dispositivo
foi rejeitado por 36 x 14.
- Vereadores contra o povo?
Um arremedo de
audiências e um laudo, providenciados pela mesa diretora da Câmara Municipal no
final de abril, permitem agora, em princípio, que seja realizada a segunda
votação. Ao insistir nesse caminho, contudo, os vereadores que compõem a base
do Executivo estarão ignorando a vontade de 61% dos paulistanos que, segundo
pesquisa do Instituto Quaest, são contrários à privatização do saneamento.
O levantamento foi
destacado em reunião da Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio
Ambiente pela diretora do Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo
(SEESP) e engenheira da Sabesp, Fátima Blockwitz. No debate, ela lembrou ainda
a importância para a saúde pública do saneamento básico, responsabilidade “que
o governo deve assumir”, tendo em vista o direito dos cidadãos ao serviço.
A dirigente do
sindicato compõe um amplo grupo de técnicos do setor e representantes dos
movimentos sociais que, sob o mote “Privatizar a Sabesp é a gota d’água”, vêm
há meses se manifestando contra a desestatização e alertando para seus
prováveis efeitos nefastos.
O exemplo negativo
mais próximo é a cidade do Rio de Janeiro, onde, após a privatização da
companhia de água e esgoto, o custo elevou-se a um patamar 56,2% acima do cobrado em São Paulo, na estimativa de consumo de 10
mil litros por mês. No caso da tarifa social, a disparidade chegou a
102,4% (R$ 22,38 x R$ 45,32), conforme estudo do Sindicato dos Trabalhadores em
Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema).
A pergunta até agora
não respondida pela Prefeitura e pelo Governo do Estado, que patrocinam a
entrega da Sabesp ao mercado, é qual seria a motivação para se verem livres de
uma companhia cujos resultados são considerados excelentes. Nos 375 municípios
em que opera, a empresa já atingiu 100% de abastecimento de água e 90% de
coleta de esgoto, com tratamento de 77%. A expectativa é atingir a
universalização até 2030, antecipando em três anos o prazo determinado
pela Lei 14.026/2020.
Na capital, a
cobertura atinge 97% no abastecimento de água e 94,2% na coleta de esgoto, com
97,1% de tratamento, segundo dados apresentados por Francisca Adalgisa da
Silva, diretora da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp (APU)
e especialista em Gestão Ambiental e de Políticas Públicas, em live promovida
pela Rede Ambiental Butantã (RAB).
Além disso, a Sabesp,
que registrou lucro anual de mais de R$ 3 bilhões, gera ganhos consideráveis a
seus acionistas privados e ao tesouro do Estado. “Nada justifica tamanha
ansiedade de entregar ao mercado um ótimo negócio e uma estrutura vital à saúde
pública. O risco que se corre, como observado nas várias partes do mundo em que
serviços de água vêm sendo reestatizados após o malogro da atuação privada, é a
queda na qualidade e o aumento dos preços, tendo em vista o foco na obtenção de
lucro”, alerta o presidente do SEESP, Murilo Pinheiro.
Presidente da Frente
Parlamentar da Infraestrutura e Engenharia de São Paulo, o vereador Eliseu
Gabriel (PSB) também está entre os que combatem a medida. “Tudo indica que será
um desastre”, resume.
- Desinvestimento, refluxo de esgoto e ilegalidades
Fator a prenunciar a
queda na qualidade é a provável redução dos investimentos da empresa, como
alertou Adalgisa. Conforme ela, atualmente, a Sabesp está obrigada por seu
estatuto a reinvestir 75% dos seus lucros, sendo os 25% restantes destinados ao
pagamento de dividendos. Essa política tem sido responsável pelo sucesso
operacional da companhia e por sua constante valorização no mercado. Com a
privatização, pontua Adalgisa, a tendência é que a reversão de ganhos aos
acionistas aumente significativamente, à semelhança do que se observou na
Inglaterra. “Uma boa parte da arrecadação era repassada, o que levou a um baita
endividamento das empresas e hoje está levando o Estado a fazer a
reestatização.”
O país europeu, contou
ela, foi o primeiro a privatizar o serviço de saneamento na onda neoliberal há
40 anos e é exemplo a não ser seguido. “Durante o período de concessão, as
empresas aumentaram a tarifa, pioraram a qualidade do serviço, não fizeram investimento.
Até o Rio Tâmisa voltou a ser poluído porque deixaram de fazer o tratamento de
esgoto. As maiores reclamações dos ingleses são refluxo de esgoto para as
casas, contaminação de rios e nascentes e tarifas abusivas”, descreveu.
Se os resultados
previstos com a venda do controle acionário da Sabesp pelo governo paulista e a
repactuação da prestação de seus serviços aos municípios são preocupantes, a
forma pela qual a mudança vem sendo imposta também tem sido contestada. “A
cidade de São Paulo, que tem o poder concedente do serviço segundo a
Constituição Federal, abre mão da autonomia em relação a água e esgoto”, alerta
Eliseu Gabriel, referindo-se às Unidades Regionais de Água e Esgoto (URAEs),
constituídas pelo Governo do Estado para agrupar os municípios paulistas em
blocos de concessões dos serviços.
Para o vereador, ainda
que formalmente as exigências da Justiça para que se retome a votação do PL
163/2024 sejam cumpridas, o processo é insatisfatório. Na sua avaliação, as
audiências convocadas em curto espaço de tempo não cumpriram seu papel, pois faltaram
a devida antecedência e subsídios ao debate. “Não prepara, não dá texto para
estudar; é para cumprir tabela, vergonhoso”, criticou. “A maior dificuldade
será mostrar qual o impacto orçamentário, estamos assinando um cheque em
branco. Vamos ter que fazer outras ações na Justiça, e a sociedade precisa
acordar”, completa ele.
Na opinião do
engenheiro Amauri Pollachi, mestre em Planejamento e Gestão do Território pela
Universidade Federal do ABC e conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos
à Água e ao Saneamento (Ondas), o que não faltam são questionamentos a serem
feitos à Justiça quanto às iniciativas voltadas à privatização da Sabesp,
processo que está longe de ser consolidado, na sua visão.
Entre as
irregularidades, há o fato de a Assembleia Legislativa ter autorizado o
Executivo a vender parte das ações da companhia e, com isso, renunciar ao seu
controle acionário por meio de projeto de lei, embora fosse exigida uma emenda
à Constituição Estadual que determina que o saneamento seja público. A própria
adesão da cidade de São Paulo a uma URAE, afirma ele, é ilegal, pois foi
determinada por ato da Prefeitura, sem aprovação do Legislativo municipal. Há
ainda problemas, acrescenta, que se referem ao patrimônio público estadual.
“Tudo isso está sendo questionado”, enfatiza.
Ponto que vem chamando
a atenção desde o início do processo foi o estudo de viabilidade da
privatização encomendado pelo governo à empresa International Finance
Corporation (IFC). De antemão, estava definido que a consultoria receberia R$
45 milhões caso sua conclusão fosse a favor da desestatização. Se a avaliação
fosse contrária ao processo, o pagamento à empresa seria de R$ 8 milhões. Além
disso, como denunciou a vereadora Luna Zarattini (PT) nas redes sociais, o
contrato foi feito sem licitação. “Não dá para confiar”, afirma a
parlamentar.
- Engenharia e cadeia produtiva em risco
Pollachi, que integra
o time de consultores da edição “Cidades inteligentes” do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”, que
será lançado em junho próximo, joga luz ainda sobre o impacto da desestatização
da Sabesp na cadeia produtiva do setor. “Em todos os locais onde houve
privatização, há uma tendência muito forte a um processo de verticalização
dentro do próprio grupo que obteve o controle da prestação do serviço”, afirma.
Com isso, explica ele, os contratos de obras, serviços e equipamentos se dão
com subsidiárias diretas ou com firmas que têm interesses comuns. “Isso leva à
destruição do bioma empresarial que se formou em torno da Sabesp, que hoje tem
cerca de 70 mil empresas em seu cadastro de fornecedores. O que irá ocorrer é a
concentração em um número muito inferior”, detalha.
O resultado esperado
nesse cenário, pondera, “é a terceirização desenfreada, sem qualidade e apenas
com empresas de seu relacionamento, como aconteceu com a Enel”, distribuidora
de energia que atende São Paulo e outras cidades da Região Metropolitana, cuja
operação é marcada pela elevação de tarifas acima da inflação e atendimento
ruim, a exemplo do apagão ocorrido em novembro de 2023.
Na avaliação de
Pollachi, haverá prejuízos diretos também para a área tecnológica. “Todo esse
bioma empresarial está assentado na engenharia. A Sabesp sempre foi uma empresa
com grande presença de engenheiros e outros profissionais da área tecnológica.
No momento em que se faz esse processo de venda com viés meramente financista,
a tendência é mandar embora aqueles que têm maior experiência e qualificação”,
critica.
Segundo Pollachi, a
dizimação do corpo técnico já está em andamento com a dispensa de 1.862
empregados no último Plano de Demissão Voluntária (PDV). “Após a privatização,
a tendência é haver outro PDV, saindo o mesmo perfil. Por óbvio, os engenheiros
mais experientes estão saindo, perdendo-se conhecimento técnico, sem sucessão.
Não vai ter incentivo para progressão dentro da empresa, porque o objetivo é
manter o nível salarial mais baixo possível. Para quem deseja fazer uma
carreira no setor de saneamento, é muito obscuro”, completa.
- Contratos duvidosos e municípios em xeque
A migração para esse
modelo de negócios entre amigos, explica o especialista, terá repercussões mais
amplas, já que também serão abandonadas as licitações públicas e suas balizas
técnicas e financeiras, além de critérios relativos a normas de segurança do
trabalho, ambientais e de preferência à indústria nacional.
Com isso, aponta, o
controlador da Sabesp poderá contratar “com qualquer qualidade e qualquer
preço”, especialmente porque será alterada “radicalmente” a forma de se regular
o serviço de saneamento. “A tarifa hoje é calculada a partir de uma projeção de
investimento nos próximos quatro anos, avaliada pela Arsesp (Agência
Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo), que coloca
indicadores de melhorias, como redução de perdas. [O novo modelo] será quanto
foi feito no ano passado para calcular a tarifa no seguinte. Se não tenho mais
limitações, posso contratar a preço muito maior, porque será justificativa para
aumento de tarifa. Se contrato por uma qualidade não tão boa, lá na frente tem
uma justificativa para contratar de novo”, explana.
Além de pesar sobre o
consumidor, segundo o engenheiro, esse montante vai se transformar em dívidas
para os municípios, com a supressão, na nova formatação, da cláusula que prevê
amortização dos investimentos ao final dos contratos.
Eliseu Gabriel reforça
a crítica: “Não é clara qual a modelagem da privatização. Hoje todo
investimento é amortizado ao longo do contrato. Nesse novo, nada é falado, o
município vai ficar endividado com a empresa que comprar a Sabesp. Não tem nada
garantido em relação à tarifa.”
Em meio a tantas
desvantagens, muitos municípios que poderiam preferir resguardar seu poder
concedente constitucional veem-se pressionados a aderir aos blocos regionais
por não terem condições de romper contratos que ainda têm décadas de vigência
e, portanto, dívidas a quitar, avalia Pollachi. Exemplo é a cidade de
Botucatu, cujo contrato vai até 2040. “O Prefeito e a população são
radicalmente contrários à privatização, mas a Sabesp apresentou uma dívida da
ordem de R$ 500 milhões, um orçamento anual”, ilustra.
Em alguns casos, com o
fim dos contratos previstos para os próximos anos, como Osasco e Hortolândia,
cita ele, seria possível exercer a autonomia. O outro grande exemplo é São
Paulo, que, embora tenha ainda amortizações de alto valor a quitar – cifra que
está sob auditoria do Tribunal de Contas do Município (TCM), de acordo com o
conselheiro do Ondas –, poderia fazer frente à nova modelagem e à privatização
por representar quase metade da arrecadação da empresa. “Em 2023, foi de cerca
de R$ 10 bilhões”, informa.
Tal performance,
acredita o engenheiro, permitiria à capital operar o próprio serviço de
saneamento. Essa poderia ser uma alternativa melhor que a privatização, para
que houvesse avanços e não retrocessos no serviço paulistano, hoje próximo de
alcançar a universalização. Procuradas por meio de suas respectivas assessorias
de imprensa, Prefeitura e Câmara Municipal, até o fechamento da edição, não se
dispuseram a responder as indagações relativas às críticas e ponderações feitas
pelos muitos que se opõem à privatização.
Fonte: Por Rita
Casaro, para Outras Palavras
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