Prefeitura de SP suspendeu serviço de
aborto legal sem denúncias de irregularidades
Um dos argumentos que
a prefeitura de São Paulo usou para encerrar o serviço de aborto legal no
Hospital Vila Nova Cachoeirinha – a unidade que mais fazia atendimentos na
maior cidade do país – foi a suspeita de que alguns dos procedimentos teriam
sido irregulares, ou seja, fora da lei que permite a interrupção da gravidez em
casos de violência sexual, anencefalia do feto ou risco de vida da gestante.
Logo após a suspensão,
no fim do ano passado, o secretário de Saúde, Luiz Carlos Zamarco, disse que ia
mandar a sua equipe fazer um levantamento dos abortos feitos na unidade,
suspeitando de que havia alguma coisa errada. E a Secretaria de Saúde chegou a
copiar os prontuários dos pacientes – o que é ilegal, pois os dados são
sigilosos e só poderiam ser acessados pelos próprios pacientes ou por ordem
judicial. “A equipe técnica, junto com o Cremesp [Conselho Regional de Medicina
de São Paulo], tem autorização de verificar prontuários onde existe suspeita de
irregularidade”, disse Zamarco na época.
Por que isso importa?
• Em dezembro do ano passado, a prefeitura
de São Paulo suspendeu atendimentos de aborto legal no Hospital Vila Nova
Cachoeirinha alegando suspeita de irregularidades. Mas informações obtidas pela
reportagem comprovam que a prefeitura nunca recebeu denúncias sobre o hospital,
que é referência em procedimentos de interrupção da gravidez na capital
paulista.
No entanto, informação
obtida pela Agência Pública via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostra que a
secretaria não registrou nenhuma denúncia de aborto ilegal no Vila Nova
Cachoeirinha nos últimos anos. Em outras palavras, não havia nenhum motivo para
suspeitar de ilegalidades no serviço a ponto de suspendê-lo.
“A Secretaria
Executiva de Atenção Hospitalar da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo
informa não ter registrado denúncia de aborto ilegal no hospital municipal Vila
Nova Cachoeirinha abrangendo o período solicitado (desde 2019)”, diz o texto
enviado à reportagem pela Comissão Municipal do Acesso à Informação, órgão que
delibera em última instância sobre pedidos de informação na gestão municipal,
após o pedido ter sido negado duas vezes pela Secretaria de Saúde.
“A ausência de
denúncias deixa claro que não existe motivo para fechar o serviço de aborto
legal e demonstra que decisão do prefeito Ricardo Nunes foi ideológica e,
portanto, ilegal. Cabe lembrar que o serviço fechado pelo prefeito atendia na
maioria dos casos jovens vítimas de estupro. Vamos recursar até conseguir que o
serviço volte”, disse a deputada federal Luciene Cavalcante, do PSOL, uma das
autoras de uma ação popular que pede que o serviço seja retomado.
Na ação popular movida
por ela e pelo vereador Celso Giannazi (PSOL), a prefeitura recorreu duas vezes
na Justiça, e ganhou, para que o serviço se mantivesse fechado no Vila Nova
Cachoeirinha. A decisão favorável à prefeitura diz que a suspensão do aborto
legal na unidade não é ilegal porque pacientes seriam encaminhados a outros
hospitais da cidade. Os autores da ação recorreram mais uma vez, argumentando
que os outros hospitais negam o atendimento para pessoas em fase de gestação
avançada. Ainda não houve nova decisão. Enquanto isso, o serviço permanece
fechado.
Além das supostas
irregularidades, a prefeitura argumentou
também que a suspensão do serviço faria parte de uma “reorganização” com
objetivo de realizar no local mutirões de cirurgias envolvendo a saúde da
mulher, como de endometriose. No entanto, profissionais consultados pela
Pública dizem que os atendimentos relacionados a aborto não prejudicam a
realização de outros procedimentos, porque as equipes não seriam as mesmas e o
número é relativamente baixo. O Vila Nova Cachoeirinha realizou em média nove
abortos legais por mês em 2023 – o ano com mais atendimentos de sua história.
O hospital é o que
mais realizava abortos legais na cidade de São Paulo – bem mais que todos os
outros autorizados a fazer o procedimento na capital. Foram 419 atendimentos na
última década. Os outros quatro que prestam o serviço, somados, atenderam 190 casos
no mesmo período.
• Hospitais recusam atender pessoas em
gestação avançada
Apenas o Vila Nova
Cachoeirinha fazia a interrupção da gravidez em meninas e mulheres com mais de
20 semanas gestacionais. A prefeitura alega que o Hospital Municipal e
Maternidade Prof. Mário Degni, Hospital Municipal Tide Setúbal, Hospital
Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo) e Hospital Municipal
Dr. Cármino Caricchio ainda fazem o atendimento em casos de gestação avançada.
A Pública apurou, com
profissionais de saúde e entidades que atuam pelo direito das mulheres, que
isso não está ocorrendo. Em março, já contamos o caso de uma mulher que foi
vítima de violência sexual e teve o direito negado. Ela precisou sair do seu
estado para ser atendida em um hospital de Salvador, na Bahia.
A Defensoria Pública
de São Paulo recebeu o caso de uma mulher, vítima de violência sexual, que teve
o direito negado no Hospital do Campo Limpo – uma das unidades que deveria
fazer o atendimento na capital paulista. Com 24 semanas de gestação, ela foi informada
de que o serviço não poderia ser realizado por falta de preparo da unidade. Em
vez de indicarem que ela fosse a outro hospital, a equipe recomendou que ela
procurasse diretamente a Defensoria, porque só teria o direito garantido se
entrasse na Justiça.
O pedido foi concedido
e a juíza que analisou o caso ordenou que o aborto fosse realizado. Mas, nesse
meio-tempo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou uma resolução que
proíbe médicos de fazerem assistolia fetal, um
método aprovado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de
aborto acima de 20 semanas, que seria o caso dela. Então a decisão foi
revertida. Uma liminar chegou a suspender a resolução do CFM, mas ela foi
derrubada na última semana.
Com esse vai e vem, a
mulher, que tem o direito constitucional de interromper a gravidez por ter sido
em decorrência de estupro, ainda tem o destino incerto.
• Ofensiva contra um direito
constitucional
Nesta segunda-feira
(29), o Cremesp votou, por unanimidade, pela interdição cautelar de duas
médicas do Vila Nova Cachoeirinha. Outro caso será analisado na sessão desta
terça. Os profissionais teriam praticado tortura, tratamento cruel,
negligência, imprudência e assassinato de fetos, segundo apontou a Folha de
S.Paulo.
Os casos teriam
chegado ao conselho de forma ilegal, pelo acesso aos prontuários das pacientes,
ainda de acordo com o jornal. Os documentos também teriam sido encaminhados à
Secretaria de Segurança Pública e à Polícia Civil, o que suscita o temor de que
profissionais de saúde e pacientes sejam alvos de investigações criminais.
A manutenção da
suspensão do atendimento de abortos legais no Vila Nova Cachoeirinha e a
perseguição a médicos têm gerado um clima de tensão entre os funcionários da
unidade e de outras que ainda fazem aborto legal. Segundo relatos ouvidos pela
Pública, há o entendimento de que a alta cúpula da prefeitura não concorda com
a interrupção de gestações avançadas por motivos morais e de que vai dificultar
os atendimentos apesar de estarem previstos na lei.
A gestão Ricardo Nunes
chegou a indicar uma médica abertamente antiaborto e filiada ao PL, partido de
Jair Bolsonaro, para ser diretora da unidade, mas recuou após o caso ganhar
repercussão na imprensa.
A bancada feminista do
PSOL na Câmara Municipal enviou uma representação à Organização das Nações
Unidas (ONU), à OMS e à Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) apontando que
o fechamento do serviço no Vila Nova Cachoeirinha, a resolução do CFM e outras
medidas recentes representam “expressa vedação ao acesso ao aborto legal a
meninas, mulheres e pessoas com útero vítimas de violência sexual”.
As vereadoras pedem
que os órgãos internacionais “intervenham e exortem o Brasil a garantir o
acesso irrestrito ao aborto legal para as vítimas de violência sexual, conforme
previsto na legislação nacional e nos tratados internacionais de direitos
humanos ratificados pelo país”.
Perguntamos para a
prefeitura sobre os pontos citados nesta reportagem, mas a resposta enviada foi
protocolar. “A Secretaria Municipal da Saúde informa que o programa Aborto
Legal está disponível em quatro hospitais municipais da capital. São eles:
Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio (Tatuapé); Hospital Municipal Dr.
Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo); Hospital Municipal Tide Setúbal;
Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni (Jardim Sarah). O serviço
ocorre dentro das premissas de segurança e qualidade conforme prevê a
legislação vigente”, diz a nota.
Fonte: Por Amanda
Audi, da Agencia Pública
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