25% dos sarcomas, tipos raros de câncer,
são diagnosticados incorretamente
“Eu tinha uma vida
comum e ela passou a ser extraordinária após a descoberta do sarcoma.” Foi com
essas palavras que a auxiliar em contabilidade Patrícia Figueiredo, 35 anos,
descreveu como foi receber o diagnóstico de sarcoma – o termo utilizado
para definir um conjunto de tipos raros de câncer, com cerca de 100 subtipos,
que atingem especialmente ossos e partes moles, como músculos, células de
gordura, cartilagens e vasos sanguíneos. Eles representam cerca de 1% dos casos
de tumores sólidos descobertos anualmente.
Os sarcomas são
tumores das células mesenquimais, que são as de apoio e suporte físico e
estrutural ao nosso corpo, como músculo, gordura e ossos. Em geral, eles surgem
nas extremidades (pernas e braços), no retroperitônio (entre os órgãos
abdominais) e nas paredes torácica ou do abdômen. A doença pode acometer
pessoas de qualquer idade. Alguns subtipos que afetam os ossos são mais comuns
na infância e adolescência, enquanto outros subtipos, especialmente os sarcomas
de partes moles, em sua maioria, atingem mais os adultos acima de 50 anos.
A doença é tão incomum
e difícil de ser diagnosticada que sua incidência não é registrada pelo
Globocan (Global Cancer Observatory), pelo Cancer Incidence in
Five Continents (CI5) e nem pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca).
As estimativas de casos novos são baseadas em registros de câncer de
países desenvolvidos, como os Estados Unidos e algumas nações da Europa, o que
complica ainda mais o controle epidemiológico da doença. A literatura estima
que até um quarto dos diagnósticos (25%) sofrem atrasos ou estão errados por
causa da dificuldade de identificação correta do subtipo do tumor – e isso tem
um impacto direto no tratamento do paciente.
A auxiliar em
contabilidade é um exemplo de dificuldade diagnóstica inicial, o que afetou a
conduta do seu tratamento. O seu primeiro sintoma foi um sangramento menstrual
intenso, com a perda de coágulos, que não cessava e lhe causava dores fortes.
Após consultar seu ginecologista, ela foi diagnosticada com miomas no útero e
recebeu a recomendação de retirada do órgão. Depois da cirurgia, as dores
passaram e ela conta que ficou aliviada por poder retomar a rotina. Como de
praxe, um fragmento do útero foi enviado para biópsia e a conclusão do material
surpreendeu a todos: ela tinha um sarcoma, que foi classificado inicialmente
como de baixo grau.
“Quando perguntei se
isso era câncer, o médico balançou a cabeça dizendo que sim. Nesse momento, eu
soube que aos 34 anos, com dois filhos pequenos, que tinha um câncer raro, que
representa menos de 1% dos casos. Não conhecia ninguém com a mesma doença e meu
médico não sabia muito bem como conduzir o tratamento, por ser algo
extremamente raro. Comecei a chorar. Mas minha fé é inabalável, independente do
que o papel diga”, conta Patrícia. O ginecologista a encaminhou para iniciar o
tratamento com um oncologista no sistema público de saúde, em um hospital de
referência em câncer no interior de São Paulo.
Mas foi justamente a
classificação equivocada do tipo de sarcoma dela que atrapalhou a conduta
médica e fez o câncer avançar rapidamente. De acordo com Roberto Pestana,
oncologista clínico do Hospital Israelita Albert Einstein e pesquisador da
Equipe de Sarcoma do Grupo Cooperativo Latino-Americano de Oncologia (Lacog),
como são tumores muito raros e há poucos dados disponíveis sobre esse tipo de
câncer no Brasil e no mundo, ainda existem dificuldades para o diagnóstico.
“Isso faz com que a
história desses pacientes envolva, em geral, um tempo longo entre os sintomas
iniciais e até ele procurar um médico. Depois disso, pela raridade dos tumores,
muitas vezes o diagnóstico de sarcoma não é considerado. E, por serem tumores
raros, quando o exame é enviado para biópsia, há o risco de erro: são mais de 100
tipos, muitas vezes semelhantes entre si no microscópio. O diagnóstico final
ainda pode depender de testes moleculares adicionais, que nem todo lugar faz”,
explica o oncologista.
Segundo Pestana, a
demora na identificação correta da doença pode fazer o paciente perder um tempo que é extremamente
importante para o controle da doença. “Cada passo da jornada desse paciente é
um desafio. Muitas pessoas nunca ouviram falar de sarcoma, então é difícil até
saber onde elas podem receber o tratamento”, ressalta.
Com o diagnóstico de
sarcoma de baixo grau, Patrícia foi orientada a apenas monitorar a evolução da
doença. Entre idas e vindas, ela voltou a sentir fortes dores abdominais e
novos exames mostraram um pequeno nódulo no pulmão, outro no abdômen, outro no retroperitônio,
o que indicava metástases. Ela foi encaminhada então para o serviço de cuidados
paliativos do hospital e começou a usar uma medicação hormonal oral. “Após o
início da medicação, os nódulos dobraram de tamanho e eu continuei com dores
absurdas.”
Diante da piora do
quadro clínico, a jovem resolveu ouvir uma segunda opinião, repetiu os exames,
refez a análise patológica do tumor e descobriu que tinha sim um sarcoma, mas
ele não era de baixo grau – era um tumor de alto grau, estágio 4 (mais agressivo
e já avançado). Um PET scan mostrava mais de 20 nódulos somente no pulmão.
“Eu parecia um
dálmata, de tantos pontos pretos”, diz. Foi preciso mudar completamente a
conduta do tratamento, com o início imediato de ciclos de quimioterapia a cada
21 dias. Cinco dias após o início, já havia a melhora dos sintomas. No terceiro
ciclo, o PET scan já mostrava a redução significativa de todos os nódulos.
·
Poucos centros especializados
Pestana e outros
oncologistas fizeram uma ampla revisão de estudos sobre sarcomas publicados nos
últimos 30 anos e constataram que existem vários obstáculos que levam ao
diagnóstico tardio e à falta de cuidados adequados para o paciente. O trabalho
foi publicado na
revista médica The Lancet Regional Health Americas.
A pesquisa aponta que,
de 1.941 estudos clínicos sobre sarcomas, somente 29 deles estavam disponíveis
em países da América do Sul. Considerando os 632 ensaios em andamento
atualmente, somente oito incluíam países da América do Sul – menos de 2% do
total de pesquisas. Segundo o oncologista do Einstein, essa limitação dificulta
o acesso a novos tratamentos e o desenvolvimento de abordagens personalizadas
para o tratamento desses pacientes nessa região.
Outro ponto destacado
pelo médico é que a literatura mostra que esses pacientes recebem um tratamento
melhor e vivem mais se forem tratados e acompanhados em centros especializados
em sarcoma, o que praticamente não existe no Brasil e em outros países da
América Latina.
“Ainda é incipiente
essa organização da rede de cuidado, de forma a garantir que os pacientes sejam
encaminhados para centros especializados. Em alguns países, especialmente na
Europa, existem redes diagnósticas e de tratamento que organizam a jornada desses
pacientes e centralizam em locais específicos, o que melhora o desfecho”,
reforça.
A auxiliar em
contabilidade terminou os seis ciclos de quimioterapia e atualmente faz o
acompanhamento do câncer com exames de rotina a
cada dois meses. “Entendi o meu propósito por meio da dor. Mas nada seria
possível sem a minha rede de apoio familiar e a minha fé. Hoje minha vida é uma
folha em branco e escrevo cada página diariamente. Assim como tenho um câncer
raro, que representa menos de 1% dos casos, posso dizer que sou o 1% que
sobreviveu a ele”, finaliza.
Fonte: CNN Brasil
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