sexta-feira, 3 de maio de 2024


 

Bruno Sobral: Crise financeira dos Estados - o problema é a dívida?

A renegociação das dívidas estaduais tende a ser tratada de forma isolada, como apenas uma restrição financeira. Isso impede de se indagar qual o papel dos governos estaduais e, logo, de suas finanças. Ou seja, essa discussão só faz sentido se estiver relacionada à questão federativa. Essa não se resume a distribuição de recursos, mas envolve a relação entre o poder estatal e a gestão estratégica do território no país.

Em meados da década de 1990, inicia-se o processo de renegociação das dívidas estaduais que vem sendo rolado até hoje. Esse processo transcorre quando a convenção de estabilidade (monetária) alcança hegemonia e torna o Estado nacional seu guardião, enquanto a adesão acrítica ao paradigma da globalização estimula a mudança para um federalismo competitivo na prática (a despeito do modelo cooperativo na constituição). Essas tendências tornam a relação da União e entes subnacionais pautada por uma predisposição para identificar potencial risco inflacionário no gasto desses últimos e desequilíbrio no contexto de crescente guerra fiscal.

Em 2018, quando se completava primeiro ano do Regime de Recuperação Fiscal – RRF, enfatizei em entrevista o quanto seu arcabouço reafirma uma lógica de agiotagem. Afinal, resume a relação entre União e ente subnacional como mera relação de credor e devedor, cuja preocupação central é dar condições de reorganização do fluxo de pagamentos para que continuasse. Como agiota, o credor não incluí em suas avaliações os efeitos socioeconômicos sobre a realidade subnacional de impor um ajuste de caráter recessivo, desde que seja perseguido o resultado fiscal.

No geral, a União assume um papel de controle restrito, resumido a sanções, enquanto poucos mecanismos de coordenação são efetivados. No limite, age como capital a juros que, voltado para critérios de valorização, desvincula-se de qualquer responsabilidade compartilhada com as políticas públicas dos entes subnacionais (já chegaram a ser interrompidas para priorizar pagamento da dívida).

Portanto, o problema fiscal dos governos estaduais não pode ser discutido tão somente como uma restrição financeira. Na verdade, o problema não é assumir uma obrigação, mas antes para qual finalidade ela serve. Ela pode ser um instrumento ideológico para impor a fórceps medidas de austeridade e reformas administrativas tão somente para aumentar poupança e maior capacidade de pagamento dela. Inversamente, ela pode ser um instrumento de planejamento indutor como uma das formas de financiamento de uma estratégia de desenvolvimento intrafederativa.

Portanto, a dívida só é o problema quando se revela uma relação assimétrica de poder que retira autonomia federativa, e sem nenhum conjunto de prioridades que se associe a uma gestão estratégica do território.

A Secretaria do Tesouro Nacional – STN (órgão vinculado ao Ministério da Fazenda) desempenha papel central nos processos de renegociação das dívidas estaduais. Em tese de doutorado defendida na FGV/SP, Rogério Ceron (2021, p.86), o atual secretário da STN, afirmou que: “[o Rio de Janeiro] é o caso de falência fiscal mais emblemático do Brasil na atualidade e não há horizonte de recuperação à frente e nem de solução para o endividamento (o Estado continua sem arcar com os encargos da dívida)”. Na mesma tese, se foi além e afirmou também: “como ocorreu em outros momentos do tempo, o Estado não tem endereçado soluções estruturais e aguarda mais um resgate e perdão de dívida por parte do Governo Federal. Caso também emblemático de resiliência fatalística, apostando mais uma vez no bailout (…)”.

A atual posição do governo fluminense parece não ser capaz de refutar essa avaliação, quando decide retaliar na opinião pública e judicializar a questão da dívida. O desespero se explica. Já no 1º ano de vigência do novo RRF, 2022, ficou em situação de inadimplência ao descumprir compromisso fiscal (meta de resultado primário prevista). Segundo legislação, além de sofrer multa, está sob risco de ser extinto o regime se ficar este ano novamente (ou seja, dois exercícios consecutivos).Preocupações não faltam quando a previsão de déficit é de R$ 8,5 bilhões para esse ano e de R$ 13,7 bilhões para 2025 (segundo a PLDO enviada à ALERJ recentemente).

Se é inaceitável a União assumir postura de agiotagem, assumir a posição sartreana de “o inferno são os outros” e ignorar o debate de contrapartidas beira o nonsense. Inclusive rejeitando rapidamente a proposta inovadora do Ministério da Fazenda de reduzir os encargos em troca de maiores investimentos estaduais em educação.

A história poderia estar sendo diferente. No mesmo ano de defesa da tese acadêmica do atual secretário da STN, o governo fluminense passou a construir um Plano de Recuperação Fiscal – PRF que, posteriormente, se desdobrou em um Plano Estratégico de Desenvolvimento Econômico e Social – PEDES. Sua principal originalidade está em não só apresentar uma solução desenvolvimentista de reequilíbrio fiscal (que recebeu aprovação técnica da gestão anterior da STN), mas buscar ser protagonista no debate nacional sobre uma mudança profunda no arcabouço do RRF e, se possível, até sua superação por uma nova política federativa. De lá para cá, o governo estadual desassociou um plano do outro, descaracterizou o primeiro e pouca efetividade deu para o segundo.

A pergunta que fica é: por quê?

A fim de realizar nova “fuga para frente” e disfarçar sua negação de seguir qualquer estratégia, prefere-se então chamar Raul Seixas e bradar: “nós não vamos pagar nada”. De fato, a tese acadêmica do atual secretário da STN não exagerou. O governo fluminense confirma o histórico de não priorizar soluções estruturais (mesmo tendo as apresentado antes no PRF e no PEDES). E mais, segue uma tradição de esperar o problema chegar a um nível crítico para apelar para nova injeção de liquidez, ainda que com sistemático descompromisso com resultados que demonstrem estar reduzindo sua insustentabilidade fiscal.

Nesse caso, o problema não é a dívida, mas uma fragilidade político-institucional que ela explicita como um limite para gestão técnica eficaz e de caráter estratégico.

Garantir maiores mecanismos de controle social é algo fundamental. Afinal, a população em geral e mesmo a maioria dos servidores desconhecem o PRF e o PEDES, e o que está em jogo por opções políticas. Como exemplo, a perda de recomposição inflacionária dos servidores estaduais que, após quase uma década, tinha voltado com a aprovação do PRF que a sustentava tecnicamente e não foi mais dada este ano.

 

¨      Cidades menores precisam fugir dos erros das metrópoles para crescer. Por Wagner de Alcântara Aragão

 

A retomada de políticas como Bolsa Família, microcrédito, Minha Casa Minha Vida, Programa de Aceleração do Crescimento, expansão dos institutos de educação e universidades, entre outras, deve fazer nos próximos anos o Brasil voltar a experimentar um fenômeno visto recentemente: a expansão econômica e urbana de municípios de pequeno e médio porte, em especial no interior e rincões do país.

Aos gestores públicos locais, regionais e nacionais, à academia e instituições de pesquisa, aos movimentos sociais, à sociedade de um modo geral é preciso atenção a um risco: o da repetição dos erros que vimos no surgimento de nossas metrópoles, décadas atrás. O crescimento desordenado, pautado pela especulação imobiliária, pela ideologia do automóvel, pelo desrespeito às condições naturais, pela destruição do patrimônio histórico e arquitetônico é inaceitável.

Mas, se não tomarmos cuidado, seguimos por esse caminho sem percebermos, só nos dando conta quando os prejuízos baterem à porta. Por prejuízos entendam-se não só os financeiros, e sim, sobretudo, os de ordem social.

Trago um exemplo, visto in loco. No início deste ano, estive em Nossa Senhora da Glória, um dos mais importantes municípios do Sertão de Sergipe. Tem na produção leiteira um dos motores de sua economia. Além da agropecuária, destaca-se pela pujança do comércio e serviços. Desde 2015, sobressai-se como polo universitário também, quando passou a contar com campus da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Entre os censos de 2010 e 2022, a população do município cresceu em mais de um quarto (27%), passando de 32,5 mil para 41,3 mil habitantes. Percentual quatro vezes maior que a taxa média de crescimento populacional do país (6,5%), no período. Mais de cinco vezes que os 5% da região metropolitana de São Paulo, para se ter uma ideia.

Como dito, estive por lá, em janeiro, depois de nove anos. O crescimento populacional é notado pela expansão da zona urbana. Os limites da cidade avançaram por áreas que, até menos de uma década, ficavam afastadas do núcleo central. Avenidas e estradas foram abertas, shopping center e hipermercado foram erguidos, lojas de rede e grifes se instalaram.

Contudo, córregos e rios foram aterrados. Fundos de vales ocupados. O município não conta ainda com um serviço de transporte público. O carro e as motos, principalmente, têm preferência absoluta no tráfego urbano. Calçadas não foram alargadas, e ficam espremidas por leitos carroçáveis de trânsito intenso. Letreiros e painéis das marcas tampam a arquitetura original, descaracterizando a paisagem histórica e causando poluição visual.

O crescimento do município sergipano se intensificou no atual decênio, resultado das políticas de distribuição de renda e descentralização econômica dos governos populares de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). Entretanto, tal decênio, como se sabe, foi marcado pelo desmonte acelerado do Estado, pós golpe de 2016. Ou seja, a expansão verificada foi coincidente com uma conjuntura de desgoverno.

O caso apresentado seguramente se repete em outros estados e regiões. Vivemos, como propaga o slogan, uma fase de reconstrução. Que ela seja caracterizada não apenas pelo retorno de ações, iniciativas e políticas públicas, mas que estas venham aperfeiçoadas, carregadas de aprendizados com os erros – e que constituam avanços, sustentáveis.

 

Fonte: Brasil Debate


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