Palestina:
em busca da difícil unidade
Desde os
ataques do Hamas no sul de Israel no dia 7 de outubro, a
Cisjordânia ocupada testemunhou um aumento da violência e da instabilidade. Nos
últimos três meses, enquanto a atenção mundial se concentrava na Faixa de Gaza
e os bombardeios de Israel prosseguiam, os soldados israelitas e as milícias de
colonos mataram mais de 300 palestinos na Cisjordânia, incluindo mais de 80 crianças, enquanto
mais de 4 mil palestinos foram detidos.
Os colonos
também intensificaram seu assédio e violência contra
os palestinos, em uma tentativa calculada de tomar as suas terras, movendo à força pelo
menos 16 comunidades isoladas nas últimas semanas. O território continua sob um
bloqueio estrito, com postos de controle militares que impedem os palestinos de
se deslocarem entre cidades e vilas.
Para
muitos palestinos, a sensação de completa ausência e inação por parte dos seus
próprios líderes é tão paralisante como o agravamento da ocupação. A Autoridade
Palestina (AP), liderada pelo presidente Mahmoud Abbas, tem se contentado em
condenar timidamente a escalada de violência e as punições coletivas
perpetradas por Israel, sem demonstrar qualquer capacidade real de
confrontá-las.
Isso se
tornou especialmente evidente depois de uma invasão
de dois dias das forças israelitas na cidade de
Jenin, no norte da Cisjordânia, no mês passado, transformando efetivamente a
cidade numa “mini Gaza”, como denunciaram muitos moradores. Esta operação foi
acompanhada por outras incursões militares em outras cidades da Cisjordânia nas
últimas semanas, como Tubas e Tulcarém.
Poucos
dias antes do ataque israelense a Jenin, Mustafa Sheta, diretor do Teatro
da Liberdade da cidade, disse à revista +972 que
os residentes de Jenin se sentem abandonados, especialmente quando todos os
olhos – incluindo os deles – estão voltados para Gaza. “A AP está em silêncio.
Não nos tranquiliza nem cura as nossas feridas”, declarou. Sheta foi detido
pelas forças israelenses durante a operação Jenin e enviado para a prisão de
Megiddo, onde passou seis meses em detenção administrativa,
isto é, preso sem acusação ou julgamento.
O
sentimento expresso por Mustafa Sheta é confirmado por uma pesquisa
recente conduzida pelo Centro Palestino de
Pesquisa Política e Enquetes (PCPSR) na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. De
acordo com a sondagem, o apoio ao Hamas aumentou para 44% entre os palestinos
na Cisjordânia, contra 12% em setembro. O apoio a Abbas, ao seu partido Fatah e
à AP diminuiu consideravelmente: mais de 90% dos inquiridos apelam à demissão
do presidente, enquanto o apoio à dissolução da AP – quase 60% na Cisjordânia e
em Gaza – nunca foi tão elevado em uma pesquisa do PCPSR.
A
crescente insatisfação pública com o silêncio ensurdecedor da AP face ao
bombardeio descarado de Israel sobre Gaza, aos ataques intensificados às
cidades da Cisjordânia e ao assassinato de importantes líderes palestinos
soma-se a anos de frustração devido às persistentes acusações de corrupção, à
incapacidade da AP de pagar seus funcionários e a sensação de que está cada vez
mais afastada da vida dos seus eleitores. Mais do que nunca, há um forte
sentimento de que a AP perdeu a razão de ser.
Assim,
para muitos palestinos, os atuais líderes são incapazes de representar as
aspirações e preocupações da população, impedindo-os de tomar medidas
significativas para acabar com a atual guerra em Gaza e avançar em sua luta
como um todo. Muitos insistem que é imperativo que uma nova liderança concentre
as suas ações nas necessidades urgentes da população e afirme a iniciativa
palestina autônoma no meio da cacofonia dos debates do “dia seguinte”. No
entanto, a Autoridade Palestina e os seus líderes fazem tudo o que podem para
permanecer no centro dos planos elaborados por outros.
·
Fim do status
quo
Desde 21
de outubro, os ataques militares israelitas a Jenin tornaram-se rotina, com
ataques quase todas as noites e confrontos com combatentes da resistência
baseados no campo de refugiados. Dos cerca de 500 palestinos mortos na
Cisjordânia durante 2023 – o número anual mais alto desde a segunda Intifada –,
pelo menos 137 eram de Jenin. Mas, para além da sua retórica condenatória e dos
apelos à proteção internacional, a destruição maciça da cidade não levou a
Autoridade Palestina a tomar qualquer ação.
Falando
sobre a situação em Jenin antes do ataque de dois dias, Mustafa Sheta disse que
“os residentes do campo estão completamente sobrecarregados pelos ataques
militares noturnos” que deixam os já exaustos refugiados ainda mais desolados e
as suas infraestruturas em condições cada vez mais precárias.
“Não
sabemos quando isso vai acabar”, lamenta. “O exército afirma que o objetivo da
operação é acabar com a resistência no campo, mas este não é um objetivo
realista. Eles não podem acabar com a resistência de um povo oprimido: o
homicídio leva ao homicídio e a violência conduz à violência”.
No meio
desta tempestade, os palestinos sentem o ônus do vácuo de liderança que vem
afetando sua ação política durante anos. Ashraf Ajrami, analista político e
escritor, criticou a abordagem atual da AP como “impotente e sem legitimidade
popular”. Ele observou que, num evento dedicado aos presos políticos palestinos
libertados em troca de reféns israelitas capturados pelo Hamas em 7 de outubro,
o ministro dos Assuntos dos Prisioneiros da AP, Qadura Faris, foi vaiado pelos
participantes.
Ashraf
Ajrami acusou os líderes da AP, especialmente os mais próximos ao presidente
Abbas, de agirem como se nada tivesse acontecido face à catástrofe de Gaza. Ele
destacou a falta de mobilizações significativas na Cisjordânia para apoiar
Gaza, especialmente considerando que a AP já se mobilizou em outras ocasiões,
enviando 40 bombeiros e 8 camiões para ajudar a extinguir incêndios florestais perto de Haifa em 2016.
Apesar das
suas críticas ao Fatah e ao Hamas, Ajrami acredita que o progresso é possível
através da criação de uma comissão tecnocrática independente para intervir
durante um período de transição, tanto para reconstruir Gaza como para preparar
o caminho para eleições. Ele sublinhou que o momento atual é uma oportunidade
potencialmente única, afirmando que o mundo por fim se mostra verdadeiramente
interessado na criação de um Estado Palestino: “A solução de dois Estados,
baseada nos parâmetros políticos estabelecidos pela comunidade internacional,
está sendo abordada seriamente pela primeira vez desde [o presidente dos EUA,
Bill] Clinton”. Mas, para aproveitar esta oportunidade, sublinhou, os líderes
devem mudar radicalmente o seu enfoque.
·
“Precisamos de alguém
que possa unir as pessoas.”
O
sentimento geral é de que é necessária uma figura política amplamente
respeitada para romper a paralisia. Num pequeno café cheio de fumaça de cigarro
em Al-Bireh, uma cidade perto de Ramallah, Abu Othman, um cliente palestino,
expressou a opinião de muitos: “Não podemos continuar nos perguntando o que
acontecerá com os atuais líderes. como Abu Ammar”, disse ele, referindo-se a
Yasser Arafat, o falecido líder palestino. “Alguém que consegue unir as pessoas
apesar de suas diferenças.”
O líder
mais proeminente é Marwan
Barghouti, preso político e líder histórico do Fatah
que, de acordo com a recente sondagem do PCPSR, derrotaria tanto Abbas como o
líder do Hamas, Ismail Haniyeh, se as eleições fossem realizadas hoje.
Barghouti ganhou destaque como ativista estudantil durante a primeira Intifada
e acabou ingressando no braço armado do Fatah, as Brigadas dos Mártires de
Al-Aqsa. Foi detido por Israel durante a segunda Intifada [em abril de 2001] e
um tribunal militar condenou-o a cinco penas de prisão perpétua pela sua
participação em ataques contra israelitas.
Atrás das
grades, Barghouti permaneceu ativo no movimento de prisioneiros e na política
palestina em geral, publicando artigos e declarações em que sublinha a
necessidade de reconciliação nacional. Muitas vezes conhecido como o “Mandela
da Palestina” [também pela duração excepcional das suas penas de prisão, 27
anos para Mandela, quase 23 anos até este momento para o líder palestino],
Barghouti manteve um amplo apoio popular como futuro líder do movimento
nacional.
Devido à
prisão de Barghouti, alguns palestinos também estão recorrendo a figuras
estabelecidas na AP como possíveis líderes. Mahmoud Aloul, vice-presidente do
Fatah desde 2018, é visto como um desses candidatos.
Preso e
deportado da Cisjordânia para a Jordânia após a guerra de 1967, Aloul retornou
à Palestina em 1995, no âmbito dos Acordos de Oslo, como assessor-chave de
Arafat, que então o nomeou governador de Nablus, cargo que ocupou por 10 anos e
que lhe rendeu a fama de homem do povo. Deixando para trás o seu passado
militar, Aloul tornou-se um defensor da resistência popular, especialmente
organizando manifestações e boicotando produtos israelitas. Ele agora
supervisiona os diretórios locais do Fatah como chefe do Comitê de Mobilização
e Organização do partido.
Num
modesto escritório aberto ao público, ele se senta ao redor de uma longa mesa
coberta de cadernos, canetas, óculos e celular. Consciente da gravidade das
consequências da guerra entre Israel e Gaza, declarou à revista +972:
“A prioridade agora não é defender a AP ou assumi-la. A prioridade é recuperar
a confiança do povo palestino na sua luta pela liberdade. Esta guerra é
dirigida contra toda a nação palestina: o genocídio em Gaza e o massacre e
destruição diária na Cisjordânia”.
Embora
reconhecendo o impacto da divisão entre o Fatah e o Hamas sobre o povo
palestino, ele continuou:
“O que eu
pessoalmente sinto é que estamos ‘tecendo a cesta errada’ quando falamos sobre
a popularidade das facções. A prioridade deve ser uma visão que impeça Israel
de assassinar os sonhos do nosso povo… superando todas as ameaças à tomada de
poder independente. Decisões palestinas. Estamos fazendo grandes esforços para
acabar com esta [divisão]”, acrescentou, sem dar mais detalhes.
“É por
isso que estamos fazendo todo o possível para nos reconectarmos com a população
e criarmos um ambiente propício às eleições, é disso que precisamos”,
continuou. “Ninguém finge que a situação é cor-de-rosa; há muitas coisas que
devemos corrigir, especialmente a relação com o nosso povo.”
Mahmoud
Aloul dirigiu-se ao público palestino através de mensagens de voz publicadas na
sua página oficial do Facebook em 13 de outubro e 8 de novembro, nas quais
sublinhou que a prioridade da liderança palestina deveria ser acabar com a
agressão israelita em Gaza e na Cisjordânia. Na sua segunda gravação, Aloul
delineou o caminho a seguir para os líderes palestinos: uma posição unificada
da OLP [Organização para a Libertação da Palestina] que inclua o Hamas e a
Jihad Islâmica, ambos fora da organização. Aparentemente estão sendo elaborados
planos para discutir seriamente esse acordo de unidade.
Mas muitos
palestinos querem mais do que apenas mais um acordo elitista. Fadi Quran,
ativista político de 35 anos, acredita que há necessidade de uma nova
iniciativa palestina inclusiva que transcenda a divisão das facções. Para
complementar essas mudanças políticas de cúpula, Fadi Quran prevê um movimento
popular, semelhante à primeira Intifada, no qual as pessoas também possam
participar do trabalho político a partir das bases:
“A energia
está aí, o apoio público está aí e as ideias estão aí. Basta organizá-las. Há
descentralização e as pessoas estão começando a criar suas próprias redes de
ação. Esperamos que isso continue a se desenvolver e leve a algo.”
·
Cenários diplomáticos
para o “dia seguinte” em Gaza
Nas
últimas semanas, representantes governamentais de estados árabes, incluindo os
Emirados Árabes Unidos, Catar e Egito, bem como os Estados Unidos, o Reino
Unido, membros da União Europeia e Israel, reuniram-se a portas fechadas para
estudar diversos cenários para o pós-guerra em Gaza, de acordo com fontes
diplomáticas familiarizadas com as negociações. As conversações não incluíram
nenhum compromisso direto com a Autoridade Palestiniana ou o Hamas.
Diplomatas
que falaram à revista +972 sob condição de anonimato
explicaram que os cenários planejados tendiam para a criação de uma nova
entidade administrativa, excluindo expressamente o Hamas, designado como
organização terrorista pelos Estados Unidos e pela União Europeia. A AP, liderada
pelo Fatah, tem sido amplamente criticada como corrupta e antidemocrática.
Fontes
diplomáticas delinearam várias propostas para “o dia seguinte” que foram
discutidas nestas reuniões, todas destinadas a assegurar uma transição pacífica
para uma liderança democraticamente eleita, permitindo ao mesmo tempo a
reabilitação de Gaza. Existe um amplo consenso a favor de um período de
transição durante o qual uma certa força seria formada para governar o
território após o fim da guerra e até que as eleições possam ser realizadas.
Esta força, segundo estas fontes, seria composta principalmente por membros do
aparelho de segurança palestino e figuras conhecidas da comunidade palestina.
Fala-se
também em reduzir o tamanho da Faixa de Gaza através da criação de uma zona
tampão militar israelita ao longo do “Corredor Filadélfia” – uma área ao longo
da fronteira entre Gaza e o Egito – que Israel insiste agora em controlar. Até
o momento, o Egito não se opôs a esta ideia.
Uma proposta egípcia de três etapas para acabar com a guerra, conhecida localmente como
“iniciativa egípcia”, vinha ganhando terreno nas últimas semanas antes de ser
declarada morta após o assassinato do vice-chefe do escritório político do
Hamas, Saleh al-Arouri, em Beirute, em 2 de janeiro.
A
iniciativa, apoiada por mediadores do Catar, previa uma cessação gradual das
hostilidades, começando com uma trégua temporária que permitiria a libertação
de reféns israelitas em troca de palestinos detidos em prisões de Israel, e
eventualmente conduzindo a um cessar-fogo permanente. Também previu uma mudança
de liderança em Gaza, para que o Hamas deixasse de governar a Faixa, mas não
mencionou a Autoridade Palestina.
O comitê
executivo da OLP, presidido por Mahmoud Abbas, rejeitou publicamente a
iniciativa na sua forma inicial na semana passada. Bassam al-Salhi, membro do
Comitê, disse à revista +972 que o principal objetivo da
liderança palestina é “um cessar-fogo imediato e um marco para um caminho
político global que ponha fim à ocupação, após o qual poderemos abordar
questões internas, tais como unidade, reformas e eleições. Não temos nenhuma
garantia de que a comunidade internacional vá reconhecer os resultados das
eleições que estamos organizando, com base no que vimos em 2006”, acrescentou.
Nos
bastidores, porém, a AP recebeu uma injeção de oxigênio: um alto funcionário do
Fatah disse à revista +972 que o Egito lhe tinha assegurado
que o papel da AP no processo de transição era aceito por todas as partes sem
necessidade de detalhá-lo.
A AP
apelou por uma alteração na proposta, que o Egito aceitou, para que um governo
de unidade nacional fosse estabelecido por um acordo de reconciliação entre as
facções palestinas, e não por meio de um órgão tecnocrata. Os responsáveis da AP temiam que o último cenário permitisse o
regresso dos adversários pessoais de
Abbas, como Mohammed Dahlan, hoje em Abu Dhabi, e o antigo representante da
OLP, Nasser al-Kidwa, sobrinho de Yasser Arafat.
Vendo esta
iniciativa como uma forma de permanecer no jogo, e procurando assim manter os
Estados Unidos ao seu lado, a AP também pediu aditamentos à proposta no que diz
respeito às reformas dos seus mecanismos de governo, segurança, justiça e
administração. As autoridades dos EUA deixaram claro à AP que estas eram as
suas exigências, assim como a ideia de reciclar uma força de segurança da AP
para fornecer segurança na Faixa de Gaza após a guerra. O Egito parecia ser
favorável a essas mudanças, antes das negociações serem interrompidas em razão
do assassinato de al-Arouri.
À luz
destas conversações, a AP sublinhou publicamente o seu compromisso com os
princípios democráticos, defendendo eleições nacionais livres e justas para
determinar a representação. Nas suas poucas – e muito criticadas – aparições
públicas desde 7 de outubro, Mahmoud Abbas reafirmou a vontade da AP de assumir
o governo de Gaza e sublinhou que a retomada das negociações para uma solução
de dois Estados continua a ser uma prioridade.
A posição
oficial de Abbas baseia-se em três pilares: acabar com a expulsão dos palestinos de Gaza do enclave, a retomada do controle total da Cisjordânia e
de Gaza sob a égide da OLP (à qual se juntaria o Hamas e a Jihad Islâmica) e o
início de um processo de paz global. Os observadores dizem que, nas condições
atuais, nenhum destes planos é realista.
Para o
Alcorão, estas palavras vazias dos líderes palestinos, sem legitimidade
política ou poder para os apoiar, demonstram a necessidade de uma abordagem
mais abrangente para restaurar a agência palestina. Chegamos a um ponto em que
os palestinos dizem: “Queremos ser representados. Queremos que a nossa política
seja inclusiva e queremos pessoas competentes”. “À medida que avançamos em
direção à nossa libertação, começaremos a criar unidade.”
Fonte: Por
Fatima Abdul Karim para Contretemps - Tradução: Maurício Ayer, para Outras
Palavras
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