Na Bahia, quilombolas de Jequié temem
violência, mas buscam direitos nas eleições
Desempregada há seis
anos, Ivonildes Soares, de 44, caminha com medo, devagar, sob a quentura do sol
de Jequié, município baiano a 360 km de Salvador, enquanto distribui santinhos
de candidatos a vereador. Ela está na comunidade quilombola urbana do
Barro Preto, que fica em área periférica do município. Ivonildes vai ganhar R$
600 pelo mês de serviço depois que passar a eleição. Mas ela diz que a
caminhada pela cidade precisa ser com “muito cuidado” e apenas durante o dia.
Quem mora mais
afastado do centro tem ficado em sobressalto com a atuação de grupos ligados ao
tráfico de drogas, incluindo braços
do Comando Vermelho e do Primeiro Comando da Capital. Os moradores da
comunidade têm ouvido sons de tiros com recorrência. Jequié se tornou uma
das cidades mais perigosas do Brasil.
Em 2022, segundo o
Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Jequié era a mais perigosa do Brasil,
com 88,8 mortes para cada 100 mil habitantes. Segundo o último anuário, de
2023, o município ficou em terceiro lugar nacional, com um total de 134 vítimas
de mortes por assassinato no ano passado e 84,4 a cada 100 mil pessoas.
<><> Por
que isso importa?
- Jequié foi apontada como a cidade mais violenta do Brasil
em 2022 pelo Anuário Brasileiro da Segurança Pública. Em 2023, das dez
cidades com mais mortes violentas do Brasil, seis estão na Bahia.
- Pessoas negras são a maior parte das vítimas de mortes
violentas causadas por policiais.
Outro agravante é que
74 desses crimes (55,2%) tiveram participação de policiais. “A gente sente
que a polícia vê o cidadão na periferia como um inimigo”, lamenta uma moradora
que pediu para não ser identificada. Aliás, no cenário de violência que a
cidade vive, as pessoas têm receio de falar com jornalistas ou pesquisadores.
A comunidade
quilombola do Barro Preto tem 22 ruas reconhecidas como de povo remanescente,
onde vivem 3.549 pessoas em cerca de 350 residências. Um problema que deixa a
comunidade mais vulnerável é que apenas cerca de 20% das pessoas têm alguma
ocupação profissional regular. Como a área urbana devorou o quilombo, quem
trabalhava com agricultura perdeu espaço.
·
Tiros, medo e compra de votos
Os tiros que são
ouvidos pela madrugada, o medo de sair à noite, a falta de oportunidades de
trabalho e o racismo de todo dia formam um amplo cenário de violência que,
segundo pesquisadores, deixam a comunidade quilombola cada vez mais vulnerável
ao assédio dos políticos.
Agente comunitária de
saúde há 20 anos, Manuella Ribeiro, de 41 anos, é liderança da associação de
moradores do Barro Preto. Ela relata que candidatos batem de porta em
porta tentando comprar votos na comunidade, mais reconhecida por ser periférica
e pobre do que quilombola. “Tem candidato que vê adesivo nas casas e oferece
uma cesta básica ou mesmo R$ 200 para mudar de ideia. Tem assédio eleitoral em
todo lugar”, denuncia.
Foi percebendo isso
que, nas últimas eleições, Ribeiro resolveu se candidatar a vereadora e tentar
ser a primeira quilombola a ocupar uma das 19 vagas na Câmara Municipal. Em
2020, teve apenas 134 votos e não se elegeu. “A gente é usado como periférica, minoria,
mulher. Políticos prometem tudo no período eleitoral e chamam para caminhadas.
No dia seguinte da eleição, a gente não encontra eles mais. Temos tentado
conscientizar a comunidade sobre isso e sobre a necessidade de se identificar
como quilombola, mas muita gente tem vergonha.” Durante a pandemia, ela foi
de porta em porta para tentar convencer os moradores que seria importante
se identificarem como quilombolas para fazer jus à prioridade da vacina contra
a covid-19.
Ribeiro diz que uma
dificuldade é que, por se tratar de um quilombo urbano, as raízes também vão
sendo desfeitas e a memória se perde. Um dos trabalhos é o de divulgação do que
é ser quilombola em um cenário urbano. “A gente tem tentado mostrar para a população
a importância de ser autodeclarado para preservar e cuidar do nosso quilombo.”
Ativista pelos
direitos quilombolas e hoje universitária, Milena Silva, de 39 anos, defende
que a área quilombola é muito maior do que as 22 ruas reconhecidas
pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Ela é uma das
coordenadoras da Associação de Trabalhadoras e Trabalhadores Urbanos de Jequié.
Segundo o Incra, a
comunidade Barro Preto não possui processo aberto para regularização fundiária
do território. “Para a abertura do processo, a comunidade precisa encaminhar um
documento ao Incra com a certidão da Fundação Cultural Palmares, acrescidas de
informações que já dispõem sobre a comunidade”, explicou o órgão em nota à
reportagem.
A ativista diz que o
período eleitoral expõe as barganhas feitas com uma localidade carente de
políticas públicas. Por isso, gestores optam, na avaliação dela, por oferecer
mais serviços e investir em obras de reformas normalmente abandonadas durante o
mandato. “Aqui mesmo tinham muitas ruas sem calçamento. Aí as pessoas ficam
felizes porque a rua foi calçada”, exemplifica. “O nosso trabalho de
conscientização é muito devagar.” Ela acrescenta que uma das prioridades é
conversar com as mulheres sobre direitos sociais e luta contra violência
doméstica.
No centro de Jequié, a
universitária quilombola Mariana Soares, de 24 anos, balança a bandeira para o
candidato da situação durante todo o dia. Fora do período eleitoral, ela ganha
a vida com um estúdio de beleza que montou em casa. Até outubro, ela foi contratada
para fazer campanha. “Acho que a situação melhorou ultimamente. As ruas foram
até asfaltadas”, diz.
“Quem é servidor
público, principalmente as pessoas periféricas, nessa época de eleições, muita
gente que trabalha no município, é obrigado a vestir a camisa do prefeito”,
afirmou um funcionário terceirizado, de comunidade quilombola, que pediu para
não ser identificado. “Tem muita pressão para votar em quem já é vereador ou
prefeito. Quem é contratado fica pressionadíssimo”, acrescenta.
Questionada sobre o
tema, a prefeitura de Jequié, atualmente chefiada por Zenildo Brandão Santana,
o Zé Cocá (PP-BA), não respondeu à reportagem sobre as denúncias de
obrigatoriedade do uso de camiseta pelos funcionários públicos.
·
Instalação de penitenciária ajudou a mudar
cidade pacata
Pesquisadora do Órgão
de Educação e Relações Étnicas (Odeere), da Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia (Uesb), a assistente social Ariadiny Dócio assinala que é necessário
contextualizar fatores históricos que transformaram a região em um dos municípios
mais violentos do Brasil. Para ela, a instalação do presídio de Jequié em
1997 e o crescimento da cidade alteraram o cenário de lugar pacato.
Ela relembra que, nas
eleições da década de 1990, os candidatos anunciavam que as instalações trariam
emprego para as áreas periféricas, incluindo os quilombolas. “Esse presídio foi
apresentado como uma obra que iria trazer desenvolvimento para os mais pobres”,
diz.
Dócio explica que as
pessoas que acompanham os detentos se instalaram nas periferias, incluindo
áreas vizinhas à comunidade quilombola, e assim deixaram lugares já
vulnerabilizados ainda mais estigmatizados pelo poder público.
Professor e
pesquisador da Uesb, Marcos Lopes de Souza, coordenador do Odeere, pontua que a
população negra na cidade ficou nos espaços de periferia, com menos condições
sociais de vida, incluindo a dificuldade com iluminação, tratamento de água e
acesso a postos de saúde e educação com qualidade. “Não é uma cidade que tem
empregos. Há ocupações informais e mesmo o comércio não consegue
empregabilidade significativa. Quem é de periferia sofre mais.”
·
Casas trazem marcas da violência e pobreza
A maioria das casas na
comunidade do Barro Preto é feita de alvenaria, mas as construções apresentaram
problemas quando vieram as enchentes de 2021 e 2022. As enchentes tiveram seus
piores efeitos no dia 25 de dezembro de 2022, com o transbordamento dos rios de
Contas e Jequiezinho. Segundo foi registrado à época pela prefeitura, foi a
pior cheia desde 1981. Na ocasião, mais de 200 pessoas ficaram desabrigadas. A
Defensoria Pública da Bahia estimou que mais de 30 mil pessoas foram atingidas
direta ou indiretamente pela enchente daquele ano.
No ano anterior,
também em dezembro, diversos bairros ficaram alagados. “A gente mostra para os políticos. Eles
balançam a cabeça. Mas não vão estar aqui quando a água subir”, critica um
morador. Não houve perdas de vidas, mas impacto em toda a cidade, com mais
reflexos nas áreas pobres.
A pesquisadora
Ariadiny Dócio recorda que os mais atingidos pelas cheias foram os mais
vulneráveis, incluindo as construções da comunidade quilombola, particularmente
aquelas sem alvenaria. Ela explica que eles precisaram de recursos da
assistência social do município. “Em 2021, houve problema de manutenção. A
cidade não estava preparada para aquilo. No período colonial, muitas áreas que
hoje são urbanas eram locais alagadiços que foram aterrados e com construção de
casas.” Ela contextualiza que, em 2022, houve problema no gerenciamento da
barragem da cidade, e impactou as periferias e o centro comercial. “Aqueles que
estão mais vulneráveis precisam de mais apoio.” A rua Nazaré, no quilombo
do Barro Preto, foi uma das mais afetadas, conforme salienta a pesquisadora.
Manuella Ribeiro
explica que a maior parte da comunidade vive dos benefícios sociais, embora as
pessoas tenham vergonha disso. “Tenho certeza de que trocariam qualquer
benefício por um emprego.” A falta de recursos faz com que a população opte por
comprar alimento e não tenha recurso para manter a estrutura da casa.
Uma das moradoras diz
que não conseguiu recuperar a parede da marca de uma munição depois de um
tiroteio na comunidade. “Soube que foi troca de tiros entre as facções.
Passamos a ter medo até em lugares que nos sentíamos mais seguras. Antes,
tínhamos mais grupos de jovens cantando e se reunindo nas igrejas. Hoje mudou.
Nem as religiões conseguem mais concentrar os jovens”, afirmou.
Leia Nascimento, de 36
anos, atua numa organização chamada Consulta Popular, que se apresenta como
“antirracista e antipatriarcal”. Ela lamenta ouvir sons de tiro em vários
momentos do dia e de chegarem ao seu conhecimento notícias de crimes no entorno
da comunidade. “Os barulhos estão fazendo os mais jovens irem embora da cidade,
além do que a maioria das vítimas da violência também são jovens.”
Jefferson Rosa,
diretor da escola Milton Santos, unidade de ensino estadual voltada para
comunidade quilombola e que hoje tem 700 alunos, defende que os projetos
desenvolvidos no ambiente escolar, como clube de leitura e capoeira, reforçam a
identidade da comunidade.
A cozinheira Indaiara
Barbosa foi aluna da escola quando a escola ainda tinha o nome do patrono do
Exército, Duque de Caxias. Para ela, os alunos estão mais engajados que na
época dela. Que o diga a filha, Melissa, que vai votar pela primeira vez na
vida. “A gente precisa se informar mais. O meu sonho é fazer o curso de direito
para um dia poder defender a minha comunidade.”
·
Outro lado
A respeito da
violência, o prefeito Zé Cocá, em entrevista à Agência Pública, afirmou
que a comunidade quilombola do Barro Preto é “bem unida e organizada”. “Tinha
uma estrutura de creche ali muito ruim. A comunidade vivia em uma área com
esgoto a céu aberto, com nenhuma infraestrutura. Nós urbanizamos. Ali, a
iluminação era muito precária e trabalhamos para a gente fazer um trabalho
maior da segurança. O município deve fazer esse trabalho educacional mais
forte”, afirmou Zé Cocá.
Se for reeleito, o
candidato entende que é necessário garantir geração de emprego. “O mercado de
trabalho indireto tem crescido. Nós estamos vendo se a qualificação é uma das
maiores necessidades que nós temos. Nós já qualificamos muita gente que era chamado
de indigente”, lamentou. Ele garante que, sobre a violência, o município cedeu
três carros para a ronda escolar.
“Nós temos Guarda
Municipal. Estamos monitorando as escolas e aumentando o ensino para tempo
integral, justamente para evitar que os alunos estejam nas ruas”, explicou. “A
intenção, de fato, é que a gente dê saúde, educação e qualificação naquela
comunidade para que a gente tire o risco dos filhos de caminhar com o lado
negativo”, disse o prefeito.
O rival nas urnas do
atual prefeito é Alexandre Margoti. A reportagem pediu o projeto do candidato
para os quilombolas, mas não obteve resposta.
A respeito da ação do
crime organizado em Jequié, em resposta à Pública, a Secretaria da
Segurança Pública do Estado da Bahia não particularizou a situação da cidade
nem das comunidades vulnerabilizadas como são os quilombolas, mas defendeu as
ações tomadas no estado.
Segundo o último
anuário Brasileiro da Segurança Pública, das dez cidades mais violentas, cinco
são baianas (Camaçari, Jequié, Simões Filho, Feira de Santana e Juazeiro).
Entre as cidades em que a polícia mais matou, Jequié está em primeiro lugar. A
despeito disso, a secretaria alegou que as ações policiais no estado são
pautadas pela “integração dos esforços, foco no trabalho de inteligência e na
ampliação dos investimentos”.
O governo do estado
ponderou que, em 2023, houve contratação de 2,5 mil novos policiais e
bombeiros, compra de softwares para investigação e a implantação da Força
Integrada de Combate ao Crime Organizado (Ficco) Bahia.
“O combate às facções
foi reforçado. As mortes violentas apresentaram redução de 6% no estado”,
destacou a secretaria, que acrescentou que mais de 6 mil armas foram
apreendidas no ano passado, entre elas 55 fuzis, mais de 12 toneladas de drogas
foram retiradas das ruas e cerca de 20 mil criminosos foram capturados, entre
eles 54 líderes de facções.
A respeito de 2024, a
secretaria argumentou que manteve os investimentos, com a contratação de
mais mil policiais civis. “Entre janeiro e agosto, as mortes violentas recuaram
14%. Cerca de 80 líderes se facções foram localizados.” A secretaria ainda
acrescentou que as ações preventivas, ostensivas e de inteligência, para
proteção de vidas, continuarão sendo desempenhadas com prioridade em todos os
municípios baianos. Também questionadas, as assessorias das polícias Civil e
Militar não responderam aos questionamentos em relação à situação da violência
em Jequié.
Fonte: Agencia Pública
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