Nunca esqueça o que os fascistas fizeram
81º aniversário da
derrota do nazismo deveria ter sido motivo de comemoração. Esse foi o
pensamento do centro cultural russo em Sofia, ao anunciar uma exposição na
capital búlgara intitulada “O caminho para a vitória”. Em vez disso, a
iniciativa provocou uma tempestade de protestos e, dias antes da inauguração
planejada para 9 de setembro, o Ministério das Relações Exteriores da Bulgária
emitiu uma declaração acusando os russos de “se intrometer nos assuntos
internos da Bulgária”.
Mas por que uma
comemoração da derrota do nazismo deveria ser considerada uma intrusão
indesejada? A resposta se deve ao aniversário específico que está sendo
comemorado – os eventos de 9 de setembro de 1944, o dia em que a Frente da
Pátria assumiu o governo. Reunindo uma coalizão antinazista de comunistas,
camponeses, social-democratas e militares, a Frente Pátria chegou ao poder
tendo como pano de fundo a chegada das tropas soviéticas. Essa data é,
portanto, geralmente considerada o início do socialismo na Bulgária, abrindo
caminho para a tomada do poder pelo Partido Comunista em 1947.
Todo ano, esse
aniversário (conhecido como 9/9) provoca debates e censuras. Os liberais nunca
perdem uma oportunidade de lamentar os acontecimentos de 1944 e o “desvio
criminoso da história” que o socialismo búlgaro supostamente representava. Mas
este ano, a exposição russa acrescentou uma dimensão internacional ao
tradicional “debate sobre o 9 de setembro”. O problema, para muitos, foi que a
derrota da Bulgária – um país aliado dos nazistas, mas soberano – foi integrada
a uma celebração geral da libertação da Europa do centro-oriental na ocupação
nazista.
“Como explica a
socióloga Lilyana Deyanova, na ausência de um confronto político significativo
após o eclipse das grandes narrativas, ‘a guerra civil da memória’ começa a
agir como uma política substituta.”
O Ministério das
Relações Exteriores da Bulgária reagiu com raiva a essa narrativa. Ele
argumentou que, independentemente da contribuição indubitável da União
Soviética para a derrota do nazismo, o Exército Vermelho não trouxe à Bulgária
a liberdade, mas a opressão totalitária, o desvio da dinâmica econômica do
mundo desenvolvido e assim por diante. Os russos ficaram perplexos: eles
perguntaram, com razão, como alguém ousaria condenar uma exposição que eles
ainda não tinham visto.
Mas parece que a
explicação estava na intensidade do próprio debate. Mesmo sem um movimento
forte da classe trabalhadora ou da esquerda na Bulgária, as forças da classe
dominante continuam obcecadas em demonizar o comunismo. Como na moção do
Parlamento Europeu sobre a equivalência de todos os “totalitarismos”, uma
batalha de direção política que parece impossível no presente é travada no
terreno da memória histórica, condenando ou reabilitando os demônios do
passado. Diante de uma esquerda ausente, é a mensagem da direita que está
vencendo.
Memória histórica
Areação do Ministério
encapsula uma posição típica da direita búlgara e, na verdade, dos liberais: a
de que o Exército Vermelho não foi o libertador e que o socialismo falsamente
chamou de Exército Vermelho, mas que era na verdade uma força de ocupação que
impôs o “antifascismo” de fora, como um falso pretexto para seu próprio
controle. Eles baseiam essa afirmação no fato de que apenas alguns dias antes
do 9/9, a Bulgária havia mudado de lado e declarado guerra à Alemanha nazista.
Os soviéticos não se abalaram com essa súbita mudança de opinião: em 8 de
setembro de 1944, o Exército Vermelho entrou na Bulgária pelo Danúbio e, no dia
seguinte, a Frente da Pátria se autoproclamou o novo governo.
A proclamação coroou
uma tomada bem-sucedida das principais instituições do Estado por um pequeno
grupo de comunistas com uniforme militar na noite anterior, seguida por
mobilizações guerrilheiras em cidades de todo o país (incluindo um levante
liderado por guerrilheiros e prisioneiros políticos no porto marítimo de
Varna). Com uma classe dominante enfraquecida, em caos e dividida entre o Eixo
e os Aliados, e a invasão soviética garantindo o fim do regime existente, não
era de surpreender que os guerrilheiros tivessem aproveitado a oportunidade
para tomar o poder. De fato, o Partido Comunista, que liderava o movimento,
nunca escondeu seu desejo de revolução na Bulgária.
“Em setembro de 1944,
o exército soviético entrou na Bulgária sem disparar um único tiro, sem
enfrentar nenhuma oposição de sua contraparte búlgara – o que dificilmente
acontece em uma ‘invasão’.”
No entanto, até mesmo
a legitimidade que poderia estar implícita na palavra “revolução” agora lhe é
negada. Se durante a era socialista o 9/9 foi celebrado como uma revolução,
depois de 1989 ele foi rebatizado como um “golpe”. Como observa o historiador Alexander
Vezenkov, esse “golpe” em particular teve a característica incomum de que o
poder foi imediatamente entregue a uma força civil – a Frente da Pátria. Mas
negar que isso tenha sido uma “revolução” tem outro objetivo. Apesar de anos de
vilipêndio, a palavra “revolução” ainda invoca a participação das massas e,
portanto, implica um grau de consentimento democrático, enquanto “golpe”
geralmente se refere a alguma tomada de poder ilegítima e faccional.
A direita não pode
admitir que houve uma “revolução”, porque isso seria reconhecer que os
acontecimento de 1944 responderam de alguma forma às aspirações da massa dos
búlgaros, e não apenas dos “ocupantes” russos. Isso também está aliado a uma
tendência proeminente na esfera pública liberal pós-1989 – na origem de um
revisionismo histórico contínuo – que nega que tenha existido um fascismo
búlgaro, contra o qual fosse necessário lutar. Essa negação da legitimidade
básica do antifascismo torna mais fácil retratá-lo como uma política
fraudulenta e antidemocrática imposta por uma potência imperial estrangeira.
Esse revisionismo
histórico necessariamente tem pouca importância para os fatos – afinal, a
Bulgária pré-1944 era tudo, menos democrática. Além de ser um aliado nazista,
era uma monarquia constitucional com uma vida parlamentar fraca, interrompida
por golpes, suspensões da constituição, violência paramilitar e uma ditadura
real que suspendeu a vida política partidária de 1934 a 1944. Em janeiro de
1941, dois meses antes de se juntar ao Eixo, a Bulgária elaborou uma Lei para a
Proteção da Nação que privou os judeus búlgaros de direitos civis e políticos e
lançou um terror estatal contra eles.
Como aliada do Eixo, a
Bulgária enviou todos os judeus dos territórios que ocupou na Grécia e na
Macedônia para o campo de extermínio de Treblinka. Embora o governo búlgaro não
fosse explicitamente nazista, ele tinha tendências fascistas evidentes e criou
ou tolerou várias organizações fascistas. Se a Bulgária, de fato, evitou cair
sob a chibata nazista, como a vizinha Iugoslávia ou a Grécia, o regime interno
era certamente pró-fascista e forneceu motivos suficientes para que a oposição
interna lutasse contra ele. De fato, uma resistência antifascista surgiu antes
mesmo de a Bulgária entrar para o Eixo: ela certamente não foi apenas
“importada” pelas baionetas do Exército Vermelho.
Isso nos leva a outro
fato crucial que o revisionismo omite – a escala da oposição doméstica ao
fascismo. Devido à natureza ilegal de suas atividades, é difícil chegar a uma
estimativa definitiva do número de militantes. De acordo com a historiadora
Iskra Baeva, o movimento partisan búlgaro contava com 5.000 a 9.000 pessoas;
Vezenkov coloca o número na ponta mais baixa, mas mostra que esses combatentes
eram auxiliados por cerca de 12.000 “ajudantes” que forneciam comida,
alojamento e outros tipos de assistência aos partisans. Em conjunto, esses
números são impressionantes, já que o país não estava enfrentando uma ameaça
existencial sob a ocupação nazista como seus vizinhos.
De fato, apesar de seu
destino sombrio hoje, a esquerda na Bulgária foi historicamente uma grande
força. Vezenkov observa o paradoxo de que o chamado “governo personalista” do
rei – que baniu todos os partidos políticos em 1934 – ajudou o Partido Comunista,
pois enquanto a atividade dos outros partidos dependia de sua base no
parlamento, que agora estava destruído, os comunistas estavam muito mais
adaptados à construção de estruturas de massa clandestinas.
“O exército búlgaro
participou de forma comprometida da fase final da Segunda Guerra Mundial,
ajudando a expulsar os nazistas do sudeste da Europa – um fato também
curiosamente negligenciado pela direita búlgara.”
No entanto, havia
também outras tradições locais de esquerda, desde o Partido Agrário de
Alexander Stambolijski (o primeiro verdadeiro partido de massa nos Bálcãs, que
promovia um socialismo voltado para os camponeses) até o Partido Social
Democrata dos Trabalhadores. Uma narrativa que vê a queda do rei apenas como o
efeito da “ocupação estrangeira” deve necessariamente ignorar essas forças
socialistas locais e sua oposição à guerra e ao antissemitismo. E,
inadvertidamente, acaba se tornando uma apologia ao fascismo, porque
pouquíssimos países europeus se libertaram do fascismo sem intervenção externa.
O revisionismo anticomunista também deve ignorar o fato de que não apenas os
soviéticos, mas também os britânicos e os norte-americanos, apoiaram os partisans.
·
Totalitarismos gêmeos?
Adeclaração do
Ministério das Relações Exteriores também reitera outro ponto de vista comum da
direita, ou seja, que em 1944 um totalitarismo substituiu outro. Qualquer
comemoração da derrota do nazismo é substituída pela reclamação de que a
Bulgária foi “excluída à força da Europa pela invasão soviética”.
A suposta equivalência
moral entre os “totalitarismos” nazista e socialista justifica um segundo
movimento, alegando que o socialismo foi o pior dos dois, pois 1) durou muito
mais tempo; e 2) ao contrário do nazismo, violou o direito sagrado à propriedade
privada. Esse último ponto foi defendido por políticos como Zhelyu Zhelev, o
primeiro presidente búlgaro eleito democraticamente e um filósofo liberal que
introduziu a noção de totalitarismo na Bulgária. É claro que os fascistas no
poder violaram algumas propriedades privadas, como, por exemplo, a dos judeus,
mas parece que esse foi um preço pequeno a ser pago pela adesão da Bulgária ao
Eixo e pela preservação do capitalismo em geral.
Se várias declarações
do Parlamento Europeu colocaram explicitamente o comunismo e o nazismo em pé de
igualdade, as ações dos liberais revelam uma preferência por um “totalitarismo”
em detrimento do outro. Um dos patrocinadores da recente e polêmica moção do
Parlamento Europeu sobre memória histórica, o deputado búlgaro Andrey
Kovatchev, chegou a convidar Dyanko Markov – membro do grupo paramilitar
nazista do período entre guerras conhecido como Legiões Nacionalistas Búlgara –
para o Parlamento Europeu. Markov aproveitou a onda de reabilitação dos
fascistas do período entre guerras nos anos 1990: em uma ocasião solene, em
homenagem às “vítimas do comunismo”, ele justificou a deportação dos judeus
para Treblinka chamando-os de “população inimiga”. Ele disse essas palavras no
Parlamento búlgaro, nada menos que isso.
“Com o futuro
impossibilitado, os confrontos simbólicos sobre o passado se tornam o único
terreno significativo para expressar diferenças políticas.”
O outro eurodeputado
búlgaro que patrocinou a moção do Parlamento Europeu, Alexander Yordanov – um
político da antiga oposição liberal anticomunista – insiste publicamente que
nunca houve fascismo na Bulgária. Vale a pena enfatizar que esses eurodeputados
são membros do Partido Popular Europeu, no poder – a respeitável “centro
direita” – e não de algum partido extremista.
Além de criar as
condições para essa apologética fascista, um dos principais becos sem saída do
revisionismo liberal que equipara os “dois totalitarismos” é que ele torna
impossível entender por que os soviéticos se deram ao trabalho de lutar contra
os nazistas. Ou, de fato, por que os búlgaros lutaram ao lado do Exército
Vermelho nessa causa. Em setembro de 1944, o exército soviético entrou na
Bulgária sem disparar um único tiro, sem enfrentar nenhuma oposição de sua
contraparte búlgara – o que dificilmente acontece em uma “invasão”. Depois
disso, o exército búlgaro participou de forma comprometida da fase final da
Segunda Guerra Mundial, ajudando a expulsar os nazistas do sudeste da Europa –
um fato também curiosamente negligenciado pela direita búlgara.
Podemos nos perguntar
o motivo pelo qual, mais de trinta anos depois de 1989, o comunismo continua
sendo uma questão tão polêmica na Bulgária. A ausência de um movimento
organizado da classe trabalhadora ou de um forte partido de esquerda lutando
pelo poder parece torná-la irrelevante. No entanto, a obsessão da classe
dominante com esse assunto persiste, seja nas iniciativas legislativas que
criminalizam o comunismo ou nas constantes reclamações de que os livros
escolares não estão dizendo a verdade sobre o comunismo.
Mais recentemente, o
elogio ao passado comunista foi até mesmo declarado uma “ameaça à segurança
nacional” por um novo think tank euro-atlântico, fundado pelo antigo “segundo
homem” do partido no poder após sua expulsão do partido por escândalos de corrupção.
Uma maneira de entender essa obsessão paranoica com o passado é como uma
estratégia da direita para costurar sua hegemonia em desintegração e combater o
cansaço crescente com o consenso neoliberal. Os búlgaros não se apressaram em
abraçar o Partido Socialista ou qualquer alternativa hipotética de esquerda,
mas também não estão entusiasmados com a decadência da centro direita.
Em um contexto no qual
o consenso está em declínio, mas não há alternativas, o anticomunismo se torna
ainda mais intenso, expressando não a força da direita, mas sua fraqueza e
capacidade de mobilização em declínio. O anticomunismo disfarça o distanciamento
dos eleitores de uma classe dominante ossificada, incapaz de oferecer um futuro
que não seja a repetição interminável das mesmas políticas antissindicais e de
austeridade em um modelo de desenvolvimento degradante baseado em baixos
salários e baixos impostos.
Com o futuro
impossibilitado, os confrontos simbólicos sobre o passado se tornam o único
terreno significativo para expressar diferenças políticas. Como explica a
socióloga Lilyana Deyanova, na ausência de um confronto político significativo
após o eclipse das grandes narrativas, “a guerra civil da memória” começa a
agir como uma política substituta. Mas com o anticomunismo e o
antitotalitarismo liberal em marcha, o único resultado disso será o de ajudar o
fascismo a se aproximar cada vez mais da sua restauração.
¨ Órgão ligado a ministério brasileiro solicita R$ 2,5 mi para
apurar alta de células nazista no país
O Conselho Nacional de
Direitos Humanos (CNDH) já realizou uma missão em Santa Catarina e outra no Rio
de Janeiro neste ano sobre o tema. O valor solicitado tem como base um cálculo
feito pelo órgão de quanto custará o projeto, que tem previsão para durar dois
anos e ganhará um relatório final sobre o tema.
De acordo com a Folha
de S.Paulo, o CNDH busca conseguir R$ 2,5 milhões para financiar uma apuração
sobre o aumento de células nazistas no país. O conselho planeja 15 missões in
loco para a promoção de agendas junto a órgãos públicos, autoridades e entrevistas
com supostas vítimas, relata a mídia.
A denúncia diz que
existe um "alarmante cenário de crescimento" de células neonazistas
no Brasil, "com aumento do discurso de ódio especialmente direcionado às
mulheres, à população negra e à população LGBTQIAP+".
Ainda segundo a mídia,
o valor do projeto inclui também a realização de uma pesquisa, feita em
parceria com uma universidade federal, para mapear o crescimento das células e
de discurso de ódio nos estados brasileiros.
O órgão, vinculado ao
Ministério dos Direitos Humanos e tem autonomia, está articulando com deputados
federais do PSOL do Rio de Janeiro para que esse recurso seja destinado via
emendas parlamentares, entre eles, Tarcísio Motta, o qual já confirmou que vai
enviar recursos.
Fonte: Por Jana
Tsoneva, com tradução de Gercyane Oliveira, em Jacobin Brasil/Sputnik Brasil
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